O Matheus (Vila Madalena)

Meu filho estava cada vez mais distante. Ele me procurava apenas episodicamente. Berenice também reclamava de vê-lo cada vez menos. Será que estava preferindo ficar com o pai biológico, tentar recuperar o tempo perdido com o pai ausente? Será que se soubesse que Raul não queria que nascesse, mudaria de atitude? Quando tinha esse tipo de pensamento me sentia desprezível. Não seria assim que voltaria a ter a atenção de Matheus. Além do que o rapaz já era adulto o suficiente para escolher como viver a sua vida. Matheus era muito bom estudante. Mais dois anos, se tornaria Bacharel em Direito. Sua maior diversão era ir a espetáculos de música e a peças de teatro. Colecionava amigos da área – músicos e atores. Tocava um pouco de violão, se bem que há algum tempo não cantava uma canção nova para mim e Berenice nas tardes de domingo.

Decidi ligar para Ella para sondá-la a respeito de como estava a convivência com o filho. Disse que ele estudava muito, mas estava com alguma atividade paralela, a qual não sabia dizer qual fosse. Por isso, quase não parava em casa. Perguntou se estava ficando no quarto dele em meu apartamento. Devolvi que também estava menos presente. Por isso, liguei.

— Bem, talvez seja a faculdade esteja o absorvendo mais do que antes…

Raul está ressabiado, achando que estivesse preferindo ficar com você.

— Devo confessar que a recíproca é verdadeira! Rs…

— Vamos confiar! Ele é um menino incrível!

— Sim, ele é! Obrigado, Ella!

Igualmente, Chico!

Esse diálogo pareceu frio e distante assim colocado, mas havia carinho de parte a parte. Ella sempre que podia me agradecia por minha postura compreensiva. Não sabia o quanto fiquei magoado, comendo o pão que o diabo amassou. Foi um período em que a autopiedade me absorveu de tal maneira que me sentia um trapo. A volta por cima se deu quando larguei o escritório e enveredei pela escrita como atividade profissional. Foi uma época difícil, mas consegui segurar a barra.

Com o tempo, minha atitude sem reservas me aproximou de bons amigos e profissionalmente carreio um certo prestígio. Não ganho tanto quanto antes, mas usufruo muito mais da vida. Como frequentar ambientes como o Bar do Pereira, onde voltaria a ver mais um show da Fábia, acompanhada do Carlos e outros músicos. Ele me disse que ela apresentaria um repertório novo, apesar do sucesso que fazia com o antigo. Tinha certeza de que traria gratas surpresas. Desde a primeira apresentação, ficara impressionado com o talento da intérprete de olhar iridescente. As nuances que emprestava à voz de timbre emadeirado, feito flauta doce. Mal sabia que teria outras surpresas.

Cheguei meia hora antes do início da primeira entrada e entre os amigos que estavam na sala reservada aos músicos, encontrei Matheus. Sorridente, meu filho parecia conhecer a todos e conversava, quando entrei, com Fábia, entre olhares e sorrisos cúmplices.

Matheus, que faz aqui? – o meu sorriso carregava curiosidade e espanto.

— Sou amigo do pessoal. O filho do Benê, o tecladista, estuda comigo.

Olhei para o Carlos, sorridente como se tivesse cometido uma peraltagem.

— Olha, meu irmão… só hoje eu soube disso. O que sei é que o filhão fará uma participação especial na segunda entrada.

Matheus me abraçou e disse que o Carlão havia estragado a surpresa.

— Vou tocar uma canção da Maria Bethânia com a Fábia. Nos tempos livres na faculdade, eu e o Tico, filho do Benê, brincávamos numa das salas do curso de música – voz, piano e violão. Quando viemos num ensaio visitar o Bar do Pereira, o Bianco me deixou tocar na guitarra dele e gostaram do meu estilo. Quem teve a ideia de fazer uma participação especial foi a Fábia.

— O seu menino é muito talentoso, Chico! Desculpa chamá-lo dessa maneira, mas falamos tanto de você que mais parece um amigo íntimo.

Fábia e Matheus trocaram olhares cúmplices que me causaram frêmitos de ciúme. Apenas não soube identificar de quem… ou se dos dois. A diferença de idade de uns dez anos não seria um empecilho para uma mútua paixão. Quando novo, só tinha olhos para as mulheres mais velhas. Talvez fosse uma maneira de mantê-las distantes, mas tenho por mim que fosse admiração de um elã que demonstravam no olhar, no gestual, na postura. O que não faltava para Fábia – uma mulher absolutamente atraente – mesmo que não emitisse sua bela voz.

Quanto a Matheus, um jovem bonito, corpo bem torneado de quem se mantinha em atividade constante – surfe, bicicleta e escalada – inteligente, culto e com evidente dom artístico, certamente interessaria a alguém como a cantora-arco-íris, como a intimamente a chamava. Um tanto desconfortável, cumprimentei Fábia com um beijo no rosto e me arrependi. Seu perfume impregnou as minhas narinas de indefinível sensação de enlevo. Não havia dúvidas. Estava apaixonado. Sorri inadvertidamente pela eventual situação de encontrar um competidor por sua atenção na figura do meu filho. Fábia, atenta, percebeu e me perguntou da razão do sorriso. Disfarcei e disse que era de orgulho por Matheus tocar para ela.

— Seu filho é muito talentoso! – disse, olhando para Matheus com carinho.

O show foi muito bonito. Não sei se os sentimentos envolvidos me deixaram mais sensível, mas a intervenção de Matheus em “Olhos Nos Olhos”, do Chico (o bom) foi linda – precisa, econômica e, ao mesmo tempo, expressiva. Cada nota entregava uma chance para Fábia brilhar. O meu filho me surpreendeu totalmente. Do garoto tímido que emitia os primeiros acordes de músicas antigas – a sua preferência desde sempre – para sua mãe e eu, até o músico que demonstrava personalidade e talento, tudo foi muito rápido. Não pude evitar de derramar lágrimas que marcaram a toalha de minha mesa com o desenho tortuoso da estampa entre ciúme e orgulho, entre flores.

A cada gestual de Fábia buscava encontrar o verdadeiro sentimento que a unia a Matheus. Sem dúvida, algo havia entre eles. Após o final do show fui ao encontro da banda, cumprimentá-los. Estava receoso de não entregar a confusão de sentimentos que me conduzia, quase tropecei umas três vezes. Quando cheguei, perguntaram se havia bebido. Ri e disse que era apenas emoção. Elogiei a performance de todos genericamente, mas um abraço forte em Matheus foi inevitável. Quando me aproximava dele, pude vê-lo abraçado à Fábia, seguido de um beijo dela no rosto dele, carinhoso, mas não tão efusivo que parecesse algo mais íntimo que amizade.

Caramba! Estava me sentindo tão ridículo! Toda a minha inabilidade no relacionamento com as mulheres aflorou em pleno cinquenta anos, mesmo depois de um casamento de quinze. Afora os encontros esporádicos em breves relacionamentos que ocorreram em série como se quisesse recuperar o tempo perdido após a separação, desisti de viver casinhos pelos anos seguintes. A consequência foi vivenciar uma solidão amistosa cercada de pessoas por todos os lados. Matheus volta e meia tentava me apresentar amigas mais velhas. Em algumas ocasiões, dizia que eu tinha que esquecer Ella, desde sempre apaixonada por Raul. Não faltou momentos que percebia o olhar de pena do meu filho. Seria muito estranho encontrá-lo como rival neste quadrante da minha vida.

Quando fui cumprimentar Fábia, fui pego de surpresa por um abraço nada protocolar de mais de trinta segundos. Parecendo quase um pedaço de madeira, fui relaxando a musculatura até me sentir envolvido por uma emoção de adolescente e retribuí a força que empregava. Torci para que ela não tivesse percebido uma ereção inesperada. Mas ao afastar seu rosto do meu, com um sorriso entre divertido e sarcástico, sem que eu não dissesse nada, falou em meu ouvido:

— Obrigado pelo elogio!

Ciúme*

Bethânia, mais próxima e Indie, em seguida, posicionadas para me verem na casa da minha irmã, Marisol.

Ciúme, o seu nome é Maria Bethânia. Quando começo a acarinhar as outras, ela logo se põe a protestar veemente! Chega a morder a minha mão e atacar fisicamente as demais do grupo, não importando o tamanho dos alvos, diante de sua contrariedade desmedida!

Quando quero chamar a sua atenção ou quando a chamo e ela não me atende imediatamente, uso sempre o expediente de passar a mão pelas cabeças das amigas, o que é suficiente para transformá-las em oponentes, vindo em nossa direção, a enfrenta-las, ainda que saiba que são maiores e mais fortes do que ela.

De onde deriva esse ciúme, afinal? Sou aquele que não deve dividir a minha dedicação e zelo com mais ninguém? Ela se sente minha proprietária? Um sentido de territorialidade natural exacerbada talvez explicasse a sua reação, no entanto, o seu cuidado não se estende tão fortemente à sua cama nem ao pote de comida, aliás, quase nada.

A contrariar o fato aceito de que somos a nós a possuí-los (a determinar-lhes o destino), quem decide levar a cabo os melhores cuidados a esses seres especiais, sabe que somos nós a sermos possuídos por eles. Será que chegam a ter consciência que seja um pecado sério dispensar atenção a mais alguém além deles, da família dos canídeos e de outros seres humanos?

O meu desejo de expressar em palavras as minhas suposições foi motivada por um episódio. Quando fui à casa da minha irmã, que mora ao lado, logo na entrada acarinhei a Vitória e a Dominique. Qual não foi a minha surpresa ao ouvir um latido lastimoso vindo da minha varanda. Lá estava a Bethânia, a demonstrar o seu desacordo em relação à minha afetividade por aquelas que conheço há anos! O seu olhar era quase desesperado! As suas orelhas eriçadas quase tocavam o céu!

Maria Bethânia foi resgatada da rua por uma das minhas filhas humanas a pedido da minha mulher. Ela a viu a correr sem rumo por nossa vizinhança e quase entrar debaixo de seu carro, condoeu-se de sua condição. Era um sentimento novo para ela, que nunca foi tão achegada aos cães. A experiência de acompanhar a Dorô em sua jornada de combate ao câncer que finalmente a vitimou, lhe trouxe a inesperada percepção da imensa conexão conosco desses seres únicos.

O meu interesse pela origem do ciúme de Maria Bethânia é quase antropológico – no sentido que o cão é um ser que tem, ao longo dos tempos, adquirido comportamentos assemelhados ao do Homem. De modo geral, além da inteligência básica, são seres-repositórios de emoções e sentimentos puros e sem medidas. Amor e ciúme, sem dúvida, estão entre eles. Nos cães, a força da irracionalidade se expressa, então, de maneira mais acintosa. Amor, ciúme, posse – onde começa um e termina outro?

Há a eterna discussão se o amor é uma construção sociocultural ou uma condição intrínseca aos seres humanos; se a sua base é espiritual ou físico-química; se é algo substancial a ponto de ser verificado expressamente ou uma ilusão mental… Creio que a ligação que desenvolvemos com os outros animais, principalmente os mais próximos de nós, “aculturados”, possa dizer muito sobre a própria condição humana. Talvez possa vir a desvendar se amor e as suas emoções subsidiárias, como o ciúme, revelá-nos animais básicos ou, basicamente, que somos animais confusos demais para sabermos o que sentimos, quando sentimos…

*Texto de 2017, constante de meu primeiro livro de crônicas — REALidade — lançado pela Scenarium, no mesmo ano.

BEDA / Só

L., minha cara,

já lhe disse em outra oportunidade de que somos sós. Mas estarmos fisicamente sós é mais complicado do que ser só. Buscar a solitude em tempos em que somos atordoados por massas sonoras motorizadas, por feéricas luzes artificiais e gente, muita gente, é quase impossível. Somos seres gregários, buscamos estar junto aos outros humanos, mas acabamos por formar comunidades que produzem grupos contra grupos, grupos que servem grupos, grupos que matam grupos. Transformamos a Sociedade em algo que abduz a nossa individualidade, valorizada apenas se exteriormente seguirmos suas regras comportamentais, mesmo aquelas que só deveriam dizer respeito à nós mesmos.

Para nos isolarmos realmente devemos abdicar de nossos anteparos sociais, deixarmos os grupos, buscar nos sustentarmos sem o auxílio de outras pessoas que fazem parte de toda a complexa estrutura que nos serve, enquanto servimos de combustível para seu funcionamento. Devastamos o bioma natural do qual somos dependentes e deveremos extingui-lo se continuarmos nesse ritmo, vindo a extinguir a nós mesmos, transformados finalmente em átomos desaglomerados, sem energia vital.

Aliás, qual seria a energia que nos move? Não passamos disso mesmo união de proteínas (enzimas), carboidratos, lipídeos e vitaminas interagindo em órgãos funcionais que formam nossos corpos? Desenvolvemos o cérebro e a consciência de estarmos vivos; criamos a roda e desenvolvemos a civilização para dizermos que não passamos de unidades de carbono sem uma energia mais sofisticada que nos move para além de sentir o que apenas pode ser visto, tocado, ouvido, degustado e cheirado?

Nós nos emocionamos, sentimos algo que, na falta de melhor palavra, chamamos de sentimentos. Nós nos expressamos pela condução de forças que muitas vezes não controlamos. Em grupo, tanto amar quanto odiar demais é intolerável se colocarmos a Sociedade em risco de não sobreviver. Mas somente apresenta valor se estamos unidos pelo fio condutor da companhia mútua. Estar só significaria que não amamos ninguém ou odiamos a todos, menos a nós? Ou que amamos tanto a nós que nos bastamos?

Eu fiquei sozinho muitas vezes desde a adolescência. Por uma série de fatores, permaneci afastado da minha família em duas ocasiões. Na primeira oportunidade, a minha mãe teve um bar que demandava bastante a sua atenção. Eu devia ter uns 14 ou 15 anos e ela passou a dormir no quarto dos fundos. Meus irmãos, depois de um período, passaram a ficar com ela. Com o meu pai já distanciado há algum tempo, me vi só por um período que não sei determinar, mas que durou pelo menos dois anos, na companhia dos cachorros e gatos. Nessa fase, a minha vocação para ser um sujeito isolado se aprofundou. Começar a ter receio em falar com as pessoas, como se fossem ameaças a serem evitadas, se tornou cada vez mais agudo.

Demorou, mas superei esse comportamento e logo após o fechamento do bar, minha família voltou para a nossa casa. No entanto, pouco tempo depois, com o adoecimento de minha avó paterna, a minha mãe foi cuidar dela. Com a sua morte, continuou a residir na casa. Hoje, eu tenho por mim que ela receava que fosse ocupada por pessoas indesejáveis e lá, continuou. Meus irmãos voltaram a acompanhá-la e permaneci um período bem maior isolado de familiares. Entrei para a faculdade de História e permaneci sozinho na casa da família até conhecer a Tânia, com a qual formei o meu próprio núcleo familiar.

A minha aproximação com uma fêmea da espécie foi um imperativo categórico Kantiano. Evitei o quanto pude entrar para o Sistema, mas a solidão não me dava mais as respostas necessárias que passei a buscar justamente quando me sentia menos só. A minha filosofia de vida me ocupava o suficiente, produzindo crises existenciais em série que nunca me deixava solitário. Em determinado momento, passei a sentir necessidade de estar unido a outras pessoas para se anteporem a mim. E me salvarem de mim. A mulher, o mais complexo dos seres, ao qual sempre amei sem conhecer, seria o enigma a ser desvendado para que seguisse às profundezas de ser humano. E compreender que a solidão pode se ampliar na presença de quem acompanhamos… quando nos falta.

Eu achei interessante você citar o termo não-solidão. Eu me lembro de um antigo poema que escrevi em que a personagem tinha a solidão como companheira, Quando inesperadamente passou a não se sentir mais só, morreu de não-solidão. Será que a solidão é tão necessária e preciosa que morreríamos se em algum instante deixarmos de vivenciá-la?

Imagem: Foto por Jeswin Thomas em Pexels.com

Participam do BEDA: 
Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia / 
Cláudia Leonardi 

Viagem Aos 70

Jairzinho, na Copa de 70, agradecendo após um gol

A viagem que pretendo fazer não é aos meus 70 anos de idade, no futuro, mas aos anos 70 do século passado — XX. Mais propriamente, a 1970, tecnicamente, o último ano da década de 60. Ao ver uma reportagem sobre os 50 anos da Copa de 70, não deixei de me arrepiar. Emoções à flor da pele, explosão de sentimentos marcado pelo coração acelerado são prenúncios de que a paixão se faz presente e é irrefreável.  

Por mais que soubesse que vivíamos os anos de chumbo, sendo o meu pai um dos perseguidos pelo regime de exceção democrática (ainda que essa fosse a regra desde a instauração da República), os lances protagonizados pelos jogadores daquele timaço realmente me emocionou. Cheguei a me sentir um bobo. Mas o efeito físico não deixava dúvidas sobre a importância daquele fato em minha vida.

Ao ouvir e ver o depoimento emocionado de Gilberto Gil, ele também um perseguido pela Ditadura, me lembrei que ainda que estivessem privados de sua liberdade, os homens e mulheres em suas celas ouviam a transmissão radiofônica e comemoravam os gols e as vitórias da “Seleção Canarinho”. Para ajudar a tornar aqueles dias oásis de relativa alegria no deserto de ódio, entremeados por gritos de dor e choro, por causa dos jogos não ocorriam os chamados “interrogatórios” — alegoria usada para retratar a ocorrência de “torturas” — onde o objetivo não era o de obter informações, mas o de construir uma narrativa imposta para configurar o ataque ao Estado (que havia), mas não na proporção que estabeleceram. Além disso, as torturas serviam para quebrar o espírito dos acusados-encarcerados. Os mais resistentes, eventualmente sobreviviam. Outros, desapareciam…

Na Copa do Mundo de Futebol do México, em 1970, eu tinha de 8 para 9 anos. Foi a primeira transmitida pela TV para o Brasil. Tínhamos um televisor Bandeirante de 14” PB, porém estranhamente a minha memória dos jogos é colorida. Obviamente porque os revi várias vezes no padrão que entrou em operação no Brasil apenas em 1972. Ou porque a criança vê tudo colorido. Mas nem sempre. Eu me lembro do meu pai, ainda que tivesse um carinho especial pelas coisas da União Soviética, ao me convidar a ver a descida do homem na Lua, em 1969, transmitido pela televisão (ou talvez fosse uma das outras missões), ficou chateado por meu desinteresse em relação ao evento, já que a movimentação era lenta, a imagem granulada e a emoção dos filmes de ficção ajudaram a sabotar o meu olhar para a realidade que presenciava.

Mas hoje, ao rever as jogadas dos jogos da seleção, um arrepio perpassou por minha espinha e se espraiou por meus braços e pernas. Cada lance era perfeito em si. Os passes eram precisos, as ações consequentes, a movimentação era coreografada como se fosse um balé, os gols eram obras primas, mesmo aquele em que Jairzinho errou o chute depois da bola bater em seu joelho e entrar direto. O “Furacão da Copa” — epiteto dado pelos mexicanos, que entendem de furacão — protagonizou lances de força, destreza e rapidez. Tostão, mesmo depois de uma cirurgia no olho, parecia enxergar o jogo feito um ninja vendado. Félix, o goleiro, para mim era inseguro. O capitão Carlos Alberto, um portento de lateral-atacante. A defesa formada por Brito, forte como um touro, e Piazza, um médio-volante recuado que atuava como líbero, era completada por Everaldo, mais postado na retaguarda para dar liberdade ao meio de campo formado por camisas 10 em seus times: Gerson, no São Paulo e Rivelino, no Corínthians, além de Pelé, no Santos. O médio-volante Clodoaldo jogava como os atuais meias mais modernos. Na final contra a Itália errou por preciosismo no gol da “azzurra”, porém no quarto gol, iniciou a jogada com quatros dribles antes do meio de campo, deixando os italianos tontos. Foi um dos protagonistas do gol mais bonito de todos os tempos pela formação da jogada, pela participação de quase todos os jogadores do time em campo e pelo desenvolvimento do meio para a esquerda até o meio para depois chegar à direita na entrada da área adversária culminando com o gol de primeira de Carlos Alberto, com o passe com o toque de mestre de Pelé.

Pelé, hoje é uma figura controversa por questões que envolvem a sua vida particular, como não ter reconhecido a paternidade de uma filha fora do casamento ou por ter se relacionado preferencialmente com mulheres brancas. Na vida pública, por nunca ter se pronunciado claramente contra o racismo. Pessoalmente, disse que nunca se sentiu discriminado, o que causou revolta pelos engajados politicamente na luta pelos direitos das minorias. Para mim a rejeição a Pelé envolve distorções por parte de quem a sente. O menino de Três Corações, criado em Bauru, vindo ainda garoto para Santos é preto, porém os pretos se sentem apartados de sua história. Muitos brancos não perdoam a sua genialidade e protagonismo numa sociedade racista. Os da direita até concedem que tenha existido, os da esquerda se ressentem que não fosse como um Cassius Clay / Mohamad Ali, assertivo em sua militância ou que dissesse frases de efeito como Maradona, morto recentemente. Este, um maravilhoso jogador que fazia com uma perna só o que a maioria não faz com as duas, se envolveu com a Máfia italiana, tornou-se usuário de drogas pesadas e era alcoólatra. Causou muitas confusões e alimentou polêmicas. Porém, também era charmoso, se posicionava à esquerda em suas declarações e foi festejado como um herói nacional argentino. Isso nunca acontecerá com o atleta mais completo que já existiu no mundo para a função de futebolista. Os brasileiros têm a estranha mania de desvalidarem os seus filhos proeminentes. Alguns nem chegam a ser reconhecidos como tal, a não ser que o sejam antes no exterior. Pelé só foi jogar fora, nos Estados Unidos, depois de ter ido à falência por responsabilidade de um sócio capcioso. Lá, conseguiu viabilizar o “Soccer” como esporte e negócio. Os Estados Unidos, apesar do time masculino ainda não ter se destacado, no feminino é considerado um dos melhores do mundo, sendo o atual campeão mundial.

Se tivesse acabado como Garrincha, pobre e com problemas de saúde causado pela bebida, talvez dessem ao melhor jogador de Futebol de todos os tempos (incluindo os que virão) o benefício de ser um homem comum, que erra tanto quanto acerta. Ao contrário de muitos incríveis criadores que têm a sua genialidade ligada à condição de serem péssimas pessoas, sendo incensados, Pelé é condenado porque, sendo tão especial, não deveria errar. Quando estava em campo, no entanto, não há como deixar de perceber que pelas quatro linhas correu um semideus.   

Ilusionistas

Ilusionista

Normalmente, o Ilusionista atua da seguinte forma – enquanto diz que faz alguma coisa, está a agir de outra, a desviar a atenção do público que o assiste. A intenção é que seja entendido como real a mensagem que expressa. Aquilo que não é visto, naturalmente não acontece abertamente, porém surge no final como verdade, porque é um fato. O bom Ilusionista surge com um simpático manipulador e é saudado como tal, apesar da diferença entre o que anuncia e o que resulta como concreto. Nesse caso, o encantamento com o Mágico é maior e mais efetivo do que a mágica que ele pratica. É como se ele dissesse: “vou enganá-los, vocês se sentirão gratos por isso, apesar de saberem, ao final de tudo, dos truques escusos que cometi para chegar ao resultado – ainda que artifícios de poder curto”…

É preciso um talento raro e natural para levar multidões ao engano por muito tempo, mas mesmo alguns mágicos meia-boca conseguem fazer os seus números ruins e iludir quem os acolhe por algum período, mesmo porque, as pessoas pagam para serem enganadas e preferem acreditar que o crédito que depositaram no seu enganador favorito não tenha sido de todo em vão… A máscara que o Trapaceiro autoproclamado usa, se fosse possível descrever, é composta por um matéria especial, montada com pele grossa e costurada com fios dourados, brilhantes como ouro de tolo, da mesma substância usada por ele para compor a sua linguagem simples, mas direta. Mais do que a mente, chega ao coração e ilude. E faz bem ao espírito de quem o toma como um Mestre dos Magos…

Para além do auditório privado ao qual se acostumou se apresentar, o Ilusionista percebe que tanto as pequenas quanto as grandes plateias podem ser levadas à ilusão coletiva da mesma forma. Aliás, quanto maior a audiência, melhor o efeito da fantasia. Com o treino que aprimorou desde cedo o seu engenho, consegue levar adiante projetos mirabolantes, truques velhos com novas roupagens, números cada vez mais espetaculares, para o júbilo do povo que o assiste. Diante de tamanho impacto de suas ilusões, empresários artísticos buscam contratar o Ilusionista-Mor para várias apresentações, com sucesso retumbante de público. A tragédia se dá quando o palco se agiganta e se torna um País inteiro…

Por mais que esses ilusionistas se repitam ao longo da história do Show Business, o público igualmente se renova, cada vez menos exigente, por consequência do decréscimo patrocinado da erudição da assistência. As ilusões mais chinfrins ganham a marca de extraordinárias e efeitos pífios repercutem na alma dos espectadores como uma inconteste versão da vida que deve ser vivida, embora falsa. Nesse triste espetáculo de ilusionismo para as massas, perde-se a oportunidade de apreciarmos a beleza da ilusão pela ilusão, uma brincadeira com os sentidos e as emoções – uma arte graciosa que se torna ilusória. Ao tomar o que não é verídico como fato, troca-se o sentido do real e perde-se a oportunidade de se ver crescer apreciadores da verdade como bem precípuo da existência humana. O sucesso aglutina em torno de si bajuladores e seguidores e serão eles, guiados pelo Mago, que dividirão a opinião dos espectadores entre fãs e críticos. Do aplauso entusiasmado para a violência do tapa, pode se passar em um rápido movimento das mãos…