A Última Carta

“Meu amor,

foi muito bom reencontrá-la após tanto tempo afastados. Essa pandemia matou tanta gente… sobrevivemos fisicamente, mas acho que o que tivemos parece ter sido contaminado por algum vírus oportunista. Seria o da distância, o da palavra mal entendida, o do ciúme por termos ficado em casa com os nossos companheiros?

Duas semanas após voltarmos a trabalhar juntos presencialmente, eu a percebi lacônica, esquiva, tentando não ficar no mesmo lugar que eu. No refeitório, eu a vejo sorridente, falante, trocando palavras com amigas e colegas de trabalho. Sequer olha para mim… Eu me sinto quase se tivesse exalando o odor dos mendigos. E da maneira que tento chamar a sua atenção, não deixo de me sentir como um por mendigar um tostão de seu olhar por cima da máscara na chegada e na saída.

Tantos anos na empresa, se lembra como nos conhecemos? Você, na época era uma das secretárias do DP e me deu toda a atenção possível. Eu me senti distinguido, especial, mas nunca imaginaria que tivesse me visto de outra forma até conversamos sobre como desejávamos crescer na profissão, sobre os estudos e ambições. Quantas vezes eu quis estar a sós com você até aquele dia em que deu uma carona… Ao me deixar no Metrô, você me deu um beijo no rosto. Fiquei como um garoto que ganhou uma bola de futebol no Natal. Quer dizer, eu me senti dessa maneira porque você sabe como adoro futebol. Eu fiquei tão feliz!

Em vez de um e-mail afinal nem tinha um computador na época eu deixei uma carta no seu porta-luvas depois de outra carona. Sabia que punha ali a chave do apartamento e que a veria quando a pegasse. Nessa carta eu falava da minha devoção e de como a sua presença me afetava. Como eu a queria mais do que uma amiga e colega. Que o que eu sentia era muito maior do que o simples desejo de somente tê-la em meus braços. Na carta revelava como me sentia inseguro por não ser correspondido. Que estava mal por querê-la tanto apesar de sermos casados com outras pessoas. Que imaginava um futuro para nós dois juntos… mesmo sabendo que fosse quase impossível! Sabia que estava agindo como um garoto inexperiente, mas me permiti ser sincero e franco.

E foi isso que a cativou. Foi o que disse no dia seguinte. O mesmo da nossa primeira vez. E de quando nos apaixonamos intensamente. Quantas vezes conversamos sobre os nossos filhos, nos aconselhando mutualmente até em relação aos companheiros. Oferecendo palavras de consolo quando da morte de parentes ou doença nas famílias. E o sexo incrível que parecia ser sempre como na primeira vez. Depois de sete anos juntos, a pandemia nos separou. Não tínhamos mais desculpas para os nossos encontros, já que o trabalho havia se tornado apenas virtual. Aumentou a demanda pela atenção de nossos companheiros. Hotéis e restaurantes fechados. A preocupação para não contaminarmos a nós e às nossas famílias. As mensagens cada vez mais escassas…

Eu estou sofrendo muito, meu amor! Não suporto mais encontrá-la na empresa sem receber um olhar de reconhecimento. A sensação que eu tenho é de ser um cão sem dono. E não gosto nem um pouco da ideia de ser somente um colega de trabalho, tendo ciúme de cada homem com quem conversa. Estou deixando a empresa, deixando a sua vida. Já enviei uma carta de demissão ao Sr. Travis. Não se preocupe. Ficarei bem. Vou para outro Estado. A sua atitude me ajudou a decidir. Há um mês eu recebi uma proposta para dirigir a filial de outra empresa na mesma área de atuação que a nossa… Quer dizer, não é mais minha…

Você sempre disse que namorou bastante até se casar e que ficou amiga de todos os seus “ex”… Não serei um deles, não quero ser mais do que um amiguinho! Se não tem coragem de terminar definitivamente, eu tenho! Com muita dor! Esta é a segunda e a última carta que lhe escrevo. Você foi o grande amor da minha vida!

Adeus!”

Quadrado Amoroso

Dizem que chumbo trocado não dói e os amantes sabiam que isso não era verdade. Porém, se fiavam nessa máxima para se sentirem mais confortáveis com relação ao caso que mantinham há praticamente dois anos. Eles se conheceram através dos respectivos cônjuges, Bernardo e Bianca, que eram colegas de trabalho e que se tornaram amantes durante o período em que estiveram juntos no mesmo departamento da empresa. Os mesmos dois anos em que o dela e Cassiano prospera desde então.

Bernardo apaixonou-se por Bianca, a ponto de querer terminar o casamento de vinte anos com Laura. Ela soube disso quando ambos tiveram uma conversa definitiva acerca do que ocorria entre a colega de trabalho e ele. Naquela ocasião, Bernardo se mostrou realmente arrependido e jurou que nunca mais a veria. Pediu e lhe foi concedida transferência de unidade como parte do acordo que foi estabelecido entre o casal – afastamento em definitivo da amante.

Em uma festa de fim de ano da firma, chegou aos ouvidos de Laura, em conversas captadas ao acaso, o caso entre Bianca e o seu marido. Em vez de confrontá-lo imediatamente sobre o fato, decidiu entrar em contato com Cassiano de maneira sigilosa. Ligou para ele, se apresentando como esposa de um colega de trabalho de Bianca. Disse que precisava tirar a limpo certos rumores sobre os quais tivera conhecimento e que envolviam os dois. Marcaram de se encontrarem em um local discreto e durante algumas horas conversaram sobre como encarariam aquela situação constrangedora.

Com a longa conversação, vieram a perceber que tinham mais pontos em comum do que com quem conviviam por tanto tempo – Laura e Bernardo, por 22 anos e Cassiano e Bianca, por 15. Os dois decidiram confrontá-los separadamente, sem dizer como souberam dos fatos. Perceberam que não seria interessante saberem de que se conheciam. Após o momento doloroso da confrontação circunstâncias que envolviam as relações extraconjugais, ambos os casais decidiram continuar juntos. Filhos, casas, cachorros, familiares e amigos comuns pesaram nas decisões tomadas.

Laura se pega rindo sozinha ao lembrar-se de como tudo começou. Cassiano ligou e a convidou para almoçarem. A desculpa dada seria o de conversarem sobre a convivência com os respectivos esposos. O seu coração bateu forte com a chamada recebida. Falou alto consigo mesma: “Finalmente!”. Durante o almoço, pareciam velhos amigos que se reencontravam depois de muito tempo. Citaram apenas de passagem os companheiros e se permitiram se referirem apenas a eles mesmos durante o tempo todo. Quase que naturalmente, se abraçaram e se beijaram ao saírem do restaurante. Rumaram a um motel próximo. Não confessavam para eles mesmos que estivessem se vingando de Bernardo e Bianca, mas o cheiro de desforra parecia aumentar o apelo sexual da situação.

Daí por diante repetiam os encontros a cada dez dias ou menos. Os novos amantes se permitiram ousar em desempenho como nunca fizeram na união oficial de cada um. Não cogitavam se separar de seus respectivos consortes. Concordavam que os amavam, pelo menos, de outra forma. Sentiam, em seus corações, que os perdoavam pelo antigo relacionamento, principalmente porque dera ensejo que tivessem se encontrado. Pressentiam que aquela fora a condição “sine qua non” para que vivessem aquele misto de felicidade pecaminosa e aceitação das próprias contradições amorosas que faziam tão bem a eles.