Ao passar por uma rede social, surgiu para mim uma entrevista de Marília Gabriela com Arnaldo Antunes — ex-componente dos Titãs à época. Logo depois, ele viria a participar dos Tribalistas com Marisa Monte e Carlinhos Brown, outro projeto exitoso. Mas o melhor ficou para o final quando a entrevistadora pergunta: “Arnaldo Antunes por Arnaldo Antunes“. O olhar que o entrevistado fez foi icônico. Aturdido, respondeu que não esperava tal questão e de que não tinha ideia do que poderia responder: “Não sei!”, respondeu finalmente.
Fiquei pensando sobre a minha própria autodefinição e conclui que também não poderia responder decididamente quem eu seria aos meus próprios olhos. As informações que poderia passar são apenas relativas: “estou em busca de equilíbrio físico e mental, me coloco como alguém de tendência política à esquerda, acredito na transcendência do ser e não sou obcecado por dinheiro”. Mas a certeza máxima é de que sou um escritor. Tudo o que acontece ao meu redor presencio como história e vejo as atores como possíveis personagens.
E isso deriva do fato que acredito que o planeta seja um grande cenário em que os seus habitantes participam de uma grande espetáculo. Se há um diretor central e ou se todos nós participamos de uma grande dinâmica coletiva em que somos levados de um lado para o outro por movimentos internos e/ou compartilhados, é algo a se definir. A todo momento surgem supostos líderes que assumem a responsabilidade de comandar o fluxo e refluxo das situações. De modo geral, as forças que engendraram o enredo no qual estamos envolvidos, em dado momento tentou ser guiada por grupos hegemônicos através da violência.
Logo depois do evento Arnaldo Antunes, a Lunna me fez uma pergunta retórica: se eu havia mudado muito de opinião ultimamente. Avaliei que sim. Aliás, surpreendentemente até para mim. Eu me julgava uma pessoa estável em termos de postura, mas no decorrer dos anos, agi de maneiras diferentes do que faria antes em várias ocasiões. Concluí que Raul Seixas acertou quando se proclamou uma “Metamorfose Ambulante” — uma definição que (agora) adoto cabalmente, principalmente porque estou a envelhecer na cidade…
Ao me debruçar sobre o tema acima, fiquei imaginando quais imagens poderia colocar dentre as muitas que produzi de lugares e pessoas. Mas como estou a me sentir um tanto introspectivo sobre a passagem do tempo, decidi colocar a mim como alvo de elocubrações quanto à passagem do tempo marcado no olhar.
Nesta imagem de Janeiro de 2018 estou no camarim de um clube em Campinas, onde logo mais à noite, haveria um baile de salão. Faria a sonorização da Banda Ópera Show. Formada por Tânia Mayra e João Soares como cantores (dos melhores no estilo), permanecemos por mais dois anos, até o advento do isolamento social para conter a temível Covid-19. O resto é uma triste história, incluindo a passagem de João Sorriso, como o chamava, por causa de um câncer no Pâncreas.
Esta segunda foto ocorreu em Fevereiro de 2016. Usei um aplicativo para criar o tom rubro da imagem que já se destacava pela incidência dos raios solares do crepúsculo. Gosto dela porque prospecta o meu olhar de quem quer enxergar para além do imediato, apesar de tentar viver o agora.
Foto da minha primeira identidade com cara de terrorista. Eu a retirei em Março de 1979, tinha 17 anos e uma nascente barbicha. Logo, por efeito de ter me tornado vegetariano, começaria a emagrecer bastante até ficar um tanto irreconhecível. Depois de me adaptar pouco a pouco à alimentação sem carnes de qualquer tipo, consegui ficar menos magro. Essa fase, durou cerca de dez anos, até me casar, em 1989.
Esta imagem tem três anos. Talvez estivesse tentando me levar mais à sério naquele Abril de 2022. Apesar de ser séria a situação do País em que as ações do então (des)governante estava a progredir para a tentativa de Golpe de Estado colocada em pauta dia sim, dia não. A estratégia então empreendida era a de esticar a corda e agir no sentido de alicerçar a sua continuação no poder, obstada por aquele que hoje é o seu algoz quando estava no TSE. O interessante é que, preocupado com um eventual Golpe de Estado por parte da esquerda, promulgou no ano anterior a Lei 14197 que acabou por levar a ele próprio às barras do tribunal do STF.
Um pouco antes do início do Inverno em Maio de 2023, o País já havia superado uma tentativa de Golpe de Estado em 08 de Janeiro. Os raios do entardecer me aqueciam às primeiras brisas frias. Tanto eu quanto a Bethânia apreciávamos os crepúsculos que espero continuar a usufruir num Futuro mais promissor.
Chegamos a Junho de 2025 e esta é a minha última mutação. Envelheço com certa dignidade, escrevendo planos para o Presente, que é como eu vejo o Futuro. Sinto-me bem, mas algumas dores se fazem evidentes no corpo que são menores que as da alma. Assim como no Passado, nada de novo…. Vamos em frente!
Além das marcas do tempo, marcas da máscara de um tempo pandêmico…(Bar Leadrini-SCS)
Envelheço na cidade. A referência à canção do Ira! não é aleatória. Eu sou contemporâneo da banda paulistana e, por uma dessas coincidências, era da mesma turma no curso de História da USP de Nasi, seu vocalista. Mas principalmente, vivo e morro em São Paulo, meu berço e provavelmente meu túmulo. Não encaro essas etapas com melancolia, ainda que eu seja basicamente um ser melancólico. Tenho plena consciência do tempo que passa (ou vice-versa), mas não consigo apreendê-lo conscientemente. Como se não existisse. Minha memória é randômica e momentos envoltos nas brumas do passado se intrometem em meu presente aleatoriamente. Talvez por isso, ainda que tenha ficado anos fugindo de registros fotográficos, passei a fazê-lo sempre que podia. Não por vaidade. Apenas. Tem mais a ver com certas circunstâncias ligadas a um episódio crucial — o surgimento da Diabetes, que viria a fazer parte da minha rotina a partir daquele Outubro de 2007, aos 46 anos. Um dos meus marcos mais importantes.
Eu estava vivenciando um péssimo estado mental e físico — variação ciclotímica de humor e dos processos orgânicos — aumento da irritabilidade e da ansiedade, gradual queda da acuidade visual e perda de peso. Quando entrei no hospital, estava em glicêmica com 715 mg/dL (quando o normal é 100) e uns 10 Kg menos dos 105 Kg de peso corporal ao qual havia atingido um pouco antes. E sentia sede, muita sede. Eram desordens fisiológicas autoalimentadas num ciclo vicioso — efeitos da Diabetes que repercutia já há algum tempo. Após a saída da internação, passei a tomar insulina injetável durante alguns meses. Fiz uma rigorosa dieta com perda consciente do excesso de peso — um terço de meu corpo, cerca de 30 Kg. Isso propiciou que deixasse as injeções e passasse apenas a ingerir medicação oral para o controle da glicemia. O que faço até hoje.
Em consequência do advento da Diabetes, senti-me obrigado a refazer a minha trajetória. Isso implicava ter que reformular não apenas a minha dieta alimentar, mas a maneira de encarar a vida em todos as suas facetas. Menos de dois anos após, eu comecei a fazer o curso de Educação Física. O que eventualmente poderia ser uma opção de atividade profissional, encarei mais como uma incursão na compreensão do funcionamento orgânico e no entendimento dos processos fisiológicos. Compreendi que a vida é movimento. No espaço físico e mental. Oxigenação das ideias e dos músculos esqueléticos. E que não há conflito entre uma coisa e outra. Que o corpo apto não faz o cérebro inapto. Ao contrário. Mesmo parado, o corpo está em atividade contínua — o coração bate, o sangue circula, os pulmões trabalham, o peristaltismo atua nos órgãos digestivos, bilhões de seres circulam por nosso ecossistema interno, moléculas e átomos perfazem miniuniversos paralelos aos macros — nossa energia vital a vibrar em consonância com a do entorno e o interno infinitos.
Outro marco, em 2015, dois anos depois de concluir o Bacharelado Em Educação Física, continuava com a minha atividade profissional usual, ao mesmo tempo que começava a atuar na Scenarium Livros Artesanais como escritor, função que assumi como primordial na minha identidade pessoal. Além de ter se tornado a maneira de escapar para além das minhas fronteiras pessoais e me encontrar tão múltiplo em possibilidades de ser como sabia que era. Aparentes contradições se tornaram marcas concretas. A estranheza de não me reconhecer ao espelho que tem perdurado desde a crise diabética, impulsionou a minha reiterada evocação imagética tanto do meu rosto quanto do ambiente em que a luz ou a sua falta são estimulantes para buscar-me exteriormente.
Tem sido interessante envelhecer. As marcas no meu corpo e na minha face se acumulam gradativamente. A queda lenta de meu antes vasto cabelo propiciou que eu a enfrentasse com galhardia. Passei a usar bonés e chapéus para a proteção da pele da cabeça cada vez mais exposta ao sol, no verão e ao frio intenso, no inverno. A barba (branca) passou a fazer parte definitivamente de meu visual. Chegarei à sexta década da minha vida dentro de um mês. Terei vivido mais que o dobro de idade com a qual morreu Janis Joplin (aos 27 anos) pintada na parede atrás de mim. Eram os anos do lema “viva rápido, morra jovem”. O que sei é que a velhice é um estado de espírito. Morrerei jovem, ainda que chegue ao 80.
Com o temporizador da câmera do celular, faço mais um registro de minha face. Como contemporizar o tempo com o corpo e a mente? Como, quando muitas vezes a mente voa para além e o corpo começa a sentir o peso dos anos, retardando o meu passo? Como temporizar a dor, para que saiba o meu tempo e lugar? Como continuar, quando em tantas oportunidades, priorizo o compromisso marcado no tempo para depois apostar no dia em que poderei estar junto de quem amo? Ao final de tudo, creio que haja um temporizador universal que adia o tempo fatal para o meu corpo, enquanto eterniza o meu espírito — chama-se Amor.
Até o outro dia, eu vivia em minha cidade Quem caminhava por aquelas calçadas Tinha oito, dez, doze anos de idade Sonhava cantar entre bocas caladas
Queria ser ginasta olímpica ou acrobata Seria bailarina, atriz, cantora e modelo Corria, saltando por sobre o muro do meu castelo Princesa que eu era, moleca, brincava de pirata
Corria de carros e de touros, de gansos e de moços Até que cresci e o perigo começou a me atrair Descobri o poder que tinha de conquistar sem esforços Lançava olhares ao redor, possuía e tinha vontade de partir
E parti em busca de sentimentos profundos e do mundo Vivi amores, senti dores, provoquei desmoronamentos Alcancei o céu e chafurdei no lodo imundo Fui considerada excelente e fomentei lamentos
Eternamente apaixonada e quase sempre apaixonante Capturei vítimas e me vitimei, fui muito amada e muito amei Na curva da rua a menina que fui não mais ouviu o vento sussurrante Deixou de subir em árvores e de ouvir respostas que clamou
Envelheci ao encontrar o meu amor definitivo? Ao sentir que pertenço a alguém, deixei de sonhar? O meu corpo, compartilhado, se sentirá permanentemente cativo? Por que, em vez de certezas, agora só tenho o que perguntar?