Livre Pensador*

Alexandre, O Pequeno (resgatado na rua) e eu…

Sou franciscano. Porém, não sou católico. Tenho certeza que São Francisco me permite essa rebeldia. Ele mesmo se rebelou contra o que era imposto como regramentos que impedissem viver o que o seu coração mandava vivenciar. Homem do mundo, foi transformado pelas experiências do mundo. A violência, a fome, a precariedade da vida, todas essas facetas vividas enquanto servia em uma das guerras de ocasião, o transformaram. Ele começou a se conectar consigo mesmo, a se abrir para as coisas tangíveis e intangíveis, a ouvir vozes interiores e exteriores – expressões para quais normalmente fechamos os sentidos d’alma.

Ele teve coragem para empreender a viagem mais árdua, que quando se inicia, não há volta – ser pequeno. Um dia, pensei em seguir o seu caminho. Tentei seguir os mandamentos da Igreja para tal percurso. Cheguei a visitar um seminário franciscano que me influenciou de maneira decisiva. Gostei do ambiente, dos estudantes, dos objetivos propostos, mas… ainda mantinha dúvidas de qual sentido seguir. Lá mesmo, em um canto dos muitos corredores do prédio estava uma maquete que mostrava os vários caminhos para chegar a Deus. Um desses caminhos era a formação de uma família. Eu tinha 26 anos e desde os 16 havia enveredado profundamente por uma religiosidade que não respeitava limites. Estudei o Cristianismo, o Maometismo, o Hinduísmo, o Budismo, as demais filosofias orientais, as crenças africanas e tudo mais que dissesse respeito à transcendência do espírito. Construí uma crença amalgamada que só fazia sentido para mim. O que fizesse o meu coração bater mais forte eu me identificava. Percebi que a Verdade tem muitas facetas, tal qual um diamante que reflete uma luminância diferente dependendo da forma que a luz o toca.

Naquela altura da minha vida, eu estava dividido entre a vida monástica e o conhecimento do mundo que havia rejeitado até então – a familiar. Sabia que enfrentaria grandes obstáculos para manter o controle sobre a minha sanidade ao escolher tanto um quanto outro caminho. Hoje, depois de estabelecer uma profissão, conhecer a minha mulher, Tânia; conceber as minhas três filhas – Romy, Ingrid e Lívia –; construir uma casa, cuidar de cães, passarinhos, tartarugas, porquinhos da Índia e plantas – formei um lar. É um desafio constante manter o equilíbrio entre tantas demandas pessoais e profissionais, mas creio que tenho caminhado cada vez mais para dentro de mim e para fora do meu próprio corpo. É como voltar da guerra todos os dias e me reformular. Sei que sou, fundamentalmente, um franciscano em meu procedimento. Desde que ouvi o chamado de Francisco de Assis, nunca deixarei de ser, idealmente, um frade menor…

*Texto de 2016

Eu E Os Bichos

Jojo Todynho em sua teia

Dia de intensa chuva, ao sair para rua, vi junto ao muro um rato correndo em minha direção. Passou por debaixo do portão e subiu em uma pedra de granito junto à entrada. Fez menção de continuar seu trajeto para dentro da garagem e o impedi com o meu pé. Falei para o bicho:

Descansa um pouco, mas nem pense em entrar. As cachorras vão lhe atacar!

Antes que terminasse de argumentar, a Dominic surgiu como um azougue e abocanhou o pobre rato! Ainda que ela o largasse quase imediatamente alertada por meu grito, logo deixou de se mexer.

Em outra ocasião, após mais um dia de chuva, a porta da sala estava aberta e vi uma barata caminhando lentamente do quintal para dentro. Enquanto escrevia, reparei que ela estava naquele estado em que a energia que movimentava as suas patinhas se esvaia. Tempo de morrer. Tivessem as cachorras acordadas, ela já teria sofrido um ataque. Baratinada, buscava um cantinho para terminar seus dias. Eu apenas a afastei de volta para o quintal e não voltou a entrar.

Vez ou outra, em situações limites, espalmo pernilongos mais atrevidos, mas na grande maioria das vezes, ligo o ventilador para que não tenham equilíbrio no voo, além de esfriar o ar em meu entorno, condições das quais o inseto não gosta. As minhas filhas preferem usar inseticidas e repelentes na pele.  Tanto em relação aos pernilongos, quanto às baratas, elas não gostam que eu aja dessa forma. Respondo:

– Meninas, sou franciscano!

Certa vez, varria o quintal e uma conversa entre mim e um marimbondo moribundo, gerou um conto. Na verdade, era Deus, em uma de suas incursões pelo mundo material. Falou comigo porque o respeitei. Ainda que chame de conto, o diálogo interno realmente ocorreu. 

O meu ano começou com outra conversa. Dessa vez, com formigas. Estava terminando de carregar o equipamento do Réveillon realizado num hotel em Águas de Lindóia quando fui recolher doces que havia separado e pretendia levar para o pessoal de casa. As atentas formiguinhas estavam rodeando os invólucros dos objetos de desejo de ambas as espécies. Logo que as coloquei num saco plástico, longe do alcance dos insetos. Imediatamente, o sentimento de culpa me assomou. Pedi para que elas esperassem e fui buscar possíveis restos na mesa de doces.

Tive sorte e encontrei restos deixados por humanos. Algumas pessoas abocanharam metades dos doces e os deixaram espalhados. Levei uns três pedaços que achei suficientes para alimentar o formigueiro inteiro. Nem podia imaginar onde se localizaria a colônia, assim como não sabemos de onde surgem as formigas que habitam as nossas casas. Enfim, terminado de carregar o equipamento, fui me certificar que as bonitinhas estivessem fazendo o bom trabalho de carregar pedacinhos para a turma. Satisfeito, voltei para São Paulo pensando o quanto devo parecer fora de órbita, a ponto de relutar em escrever este texto.

Esse comportamento desenvolvo desde pequeno. Minhas paredes eram habitadas por lagartixas, bichinhos que admirava. Desenvolvi, durante um tempinho, um relacionamento de confiança com uma aranha-pega-moscas. Muito inteligentes, em vez de caçarem com teia, essas aranhas saltadoras têm uma excelente memória e detectam as suas presas com a sua excelente visão. Normalmente precavidas contra movimentos bruscos, aquele bichinho em especial confiava em mim.

Conheci várias outras, desde as de abdomens mais desenvolvidos até as de patinhas mais longas. Fascinados por artrópodes, pensei até fazer o curso de Zoologia, mas como as plantas também eram atraentes por considerá-las seres (de funções) superiores, sonhei em ter um sítio para a produção de alimentos naturais, aos 14 ou 15 anos. Um livro ampliou para além da suposição a minha impressão em relação aos seres do Reino Vegetal  ̶  A Vida Secreta Das Plantas. Com esse estudo, percebi que toda a vida na Terra estava interligada. Através de GaiaMãe-Terra – os seres viventes são potencializados pela energia material, abrigo da anímica.

Ainda sobre as aranhas, mais recentemente, tivemos uma moradora de tamanho mais avantajado – a Waleska. A visão que ela tinha do crepúsculo era a mesma que eu buscava e compartilhamos vários momentos e ideias. Viveu alguns meses na varanda e desapareceu sem deixar vestígios. Mais recentemente, surgiu uma outra, em uma área mais abrigada, a qual as meninas batizaram de Jojo Todynho. Está conosco há alguns meses e parece ter feito um lar em que comida não falta e seus descendentes podem prosperar. Se bem que o equilíbrio natural impedirá que cresçam em número.  

Consciente de minha excentricidade, não posso deixar de agir como penso a existência. Somos apenas uma das espécies que vivem neste planeta. Não somos os seus únicos senhores. A Natureza parece estar mostrando que nossas ações negligentes acarretam sérias consequências, podendo nos levar à extinção. Muito cedo para nós. Muito tarde para vários de nossos companheiros de jornada de outras espécies, extintas por nós…

BEDA / Intacto

Quem ama de paixão, sabe —
antes de morrermos mil vezes —
nos despedaçamos dez vezes mil…
Quem permanece intacto em uma relação —
sem perceber a falta de algum pedaço —
não está a amar…

Cabeça, tronco e membros —
nada escapa à desconstrução de nosso ser…
Quando amamos,
quem nos vê caminhar pelos lugares,
apenas se ilude que ali se move alguém integral —
a respiração foge dos pulmões
ou falta o coração —
que bate em outro peito…

Tocados pelo outro,
enquanto o sangue circula fora do corpo,
os olhos se perdem em cada nuvem que passa
e as pernas seguem por ruas
pelas quais passeiam o ser amado…

No auge da paixão
é doloroso amar,
porque não estamos onde estamos…
Desconcentrados de nós,
variamos de senso,
contrariamos o consenso,
o equilíbrio é penso,
o desejo é imenso
de estar no outro,
com o outro,
pelo outro,
pelo com pelo
peles unidas…

Quando nos perdemos em nós,
destroçados e trocados
de corpos e mentes,
ganhamos todo o Universo
— o Inferno e o Céu —
destino incerto,
a terminarmos como solitárias moléculas dementes
ou a renascermos amorosas sementes…

Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Darlene Regina / Alê Helga /
Claudia Leonardi / Adriana Aneli / Mariana Gouveia

O Caminhante

Passou por mim um rapaz muito alto que caminhava de fora inusitada. Usava chinelos gastos, talvez pequenos demais para os seus grandes pés, que escorregavam toda a vez que pisava a calçada. Apesar da discrepância de seus passos com o padrão comum, que fazia com que chamasse a atenção para si, somado a alguns risos, percebi certa composição jazzística, uma nota de harmonia assimétrica em seu andamento. Configurava-se como uma dança imprecisa e contundente, que o fazia seguir muito mais rápido do que eu, com o meu andejar regular e simples. Os braços subiam e desciam uniformemente em contraponto ao movimento criativo, propiciando equilíbrio e coesão, como a compor um contratempo na surda canção que parecia ouvir. Eficiente, o rapaz muito alto vencia os metros diante de si com um avanço impiedoso de quem coreografava o seu percurso com um destemor do incomum. Atuava, como caminhante, de forma diferente da maioria. Com um simples ato de andar, destoava da multidão que marchava ao lado. Bailava enquanto se deslocava. Com as suas pernas compridas e seu corpo desproporcionalmente grande para o seu rosto de menino e, muito provavelmente, inconsciente de tal fato, acabava por revolucionar o mecanismo de trasladar o espaço. Rápido, isolou-se à minha vista e ganhou uma distância suficiente para dobrar uma esquina em alguma rua adiante e desaparecer, sem que eu soubesse onde, exatamente. Restou o registro de minha memória e uma foto roubada daquele caminhador. Uma imagem que registra um milésimo de segundo congelado, a demonstrar como a vida pode ser ludibriada por instantes isolados e incompletos da nossa visão.