Fevereiros

QUARTA

2016. Quarta-feira de cinzas — que nome apropriado! Quase que automaticamente, os nossos olhos começam a devassar a realidade e perceber que o colorido evanescente das fantasias apenas escondia o concretismo do cinza… Ou, não! A esperança é de seja somente a típica sensação da ressaca, marca registrada de quem bebeu sonhos demais…

Hanna (à esquerda) & Marina

O PRAZER DA DOR

2021. Ubatuba. Qual o prazer de ser lido? Como escritor, só teria prazer se ou quando fosse, de alguma maneira, compreendido. E mesmo assim, resta saber se a minha palavra permanecerá na memória de quem me leu e/ou compreendeu o meu texto; se fez diferença de alguma forma ou tenha causado, ao menos, alguma passageira emoção — um sorriso ou uma lágrima. Eu diria que, como escritor, devo me desapegar de qualquer expectativa. O que já é um pouco de dor…

INDECÊNCIA

2021. Ubatuba. Hoje, o azul imperou durante a maior parte do dia. E o Sol, posto a nu ou desanuviado, queimou peles e pensamentos. De manhã e à tarde, no entanto, as nuvens o vestiram, deixando a temperatura menos indecente.

ANIMOTEL

2013. Santa Isabel. “Pela estrada afora, eu vou tão sozinho”… mas, caso eu esteja bem acompanhado, sempre haverá o Motel do Cowboy, na Via Dutra. Já imagino o barulho de esporas das botas dos cavaleiros, rivalizando com o relinchar dos cavalos. Logo depois, vim a me lembrar que os modernos cowboys perderam a graça e só devem chegar ao local montados em roncos de motocicletas e pick-ups robustas. Para passar o tempo, começo a pensar em um novo negócio no ramo da satisfação animal — o ANIMOTEL — em que poderão adentrar ao local quem estiver montado em cavalos. Nada impediria que dois amantes ou mais chegassem em um só, mas como sou defensor dos direitos dos bichos, não incentivaria tal prática. Para evitar especulações fora de propósito, a montaria (o cavalo) deverá ficar em um pasto reservado, usufruindo de boa alimentação e água. Viajei demais?…

Vida Normal*

Dia de folga de um dezembro corrido. Passaram muito rápido todos os meses de 2017. Vou ao Correio, passo no supermercado, me desloco para uma visita técnica, levo um aparelho para o conserto. 

Escritor em busca de temas que sou… por onde passo encontro personagens. O clima de final de ano de pinheiros e decorações típicas de tempo frio, se faz presente a cada quadra que caminho. É o assunto principal das pessoas nos ônibus e trens de Metrô.

No Correio, tenho que devolver um produto que veio com defeito. Pelos corredores e gôndolas do supermercado, cenas cotidianas igualmente explicam nossa triste realidade. Uma menina sentada no carrinho de compras, recebe de seu irmão um saco de salgadinhos. O menino, com idade suficiente para saber que fazia algo indevido, o abre com o cuidado necessário para não ser percebido. Um ato de amor… escuso. A mãe, ao lado, finge que não vê.

A caminho da reunião, uma mulher conversa ao celular. Explica ao interlocutor que não poderá encontrá-lo naquele dia porque “o seu amigo está desconfiadíssimo!”. Quem caça, às vezes, veste roupas claras, quase diáfanas.

Depois da visita técnica, me desloco à região da Santa Efigênia. Visito algumas lojas, enquanto espero o reparo do aparelho. Em uma delas, acredito reconhecer o senhor por detrás do balcão… um cantor tal de uma banda de sucesso anos antes o próprio… levantou a cabeça, a olhar para um ponto indefinível, talvez o passado. Exibiu um sorriso enigmático. Soube que ganhou muito dinheiro, bateu muita cabeça, perdeu prestígio, deixou de ter visibilidade e voltou a trabalhar na loja do Seu Gaspar — onde teve o primeiro emprego. Ele ainda canta aos finais de semana, em um barzinho — voz e violão, público cativo, que sabe as letras de suas antigas canções. Percebo, no entanto, que não tem mais a ilusão do sucesso. O cumprimento e saio cantarolando uma de suas músicas.

A pé, vou encontrar minhas filhas e mulher, no bairro de Santa Cecília. Caminho pelas ruas do Centrão, pelo qual tenho paixão de viajante. A arquitetura variada, em épocas e formas, é como se fosse um palimpsesto em alto relevo. Presencio o entrechoque de identidades diversas. A mudança de paisagem humana é drástica, de um lugar para outro. Parece que há sempre um novo ângulo a ser explorado, personagens a serem encontradas, histórias a serem contadas.

Ao chegar ao apartamento de minha filha, levo para passear o cachorro de sua amiga que vez ou outra fica hospedado por lá. Toddy é carinhoso e alegre.  Por algum motivo, lembro do Desinquieto, nome dado por um morador de rua do Centrão ao companheiro de jornada. Ele o carregava no carrinho e a pessoa de quatro patas agia como se fosse um marajá em sua liteira. A diferença entre os dois, Toddy e Desinquieto, era total, tanto em conformação física quanto em condição social. Porém, o olhar dos dois era a de seres que se sabiam amados, sendo amáveis. Toddy faz amizade por onde passa. Exceto por uma enciumada cadelinha de andar arrogante que quis lhe atacar.

Compro bolo de cenoura, tomo o chá da tarde com a família e percebo que tenho cumprido o mandamento pessoal de viver um dia de cada vez. Vivo o primeiro terço de um dezembro de um feliz ano velho, que foi intenso, pleno de acontecimentos, grandes e pequenos, que trouxeram a mim a certeza que a vida segue seus dramas, seus prazeres e dores, desafetos e amores independentemente das efemérides que promulguemos.

Em meu passeio com o Toddy, ouvi o trecho da conversa entre duas mulheres. Uma delas diz que odiava àquela época do ano e que não via a hora de janeiro chegar. Eu agradeço se puder viver apenas o próximo dia.

*Texto que compõe o Coletivo Feliz Ano Velho, de 2017, pela Scenarium Livros Artesanais.

#TBT Do #TBT

No Dia das Bruxas e da Poesia (em homenagem ao nascimento de Drummond) de 2011, fiz uma pequena postagem que achei pertinente. Desde então, sinto que não mudou muito o meu estado mental.

À época, há exatos doze anos, fazia o 5°. Semestre do curso de Educação Física na UNIP-Marquês. Escrevia algumas crônicas postadas no Facebook, mas por respeitar muito a função da escrita, apesar de meu espírito de escritor, eu não me assumia como tal.

“Gosto de pensar enquanto ando. Hoje, pensei bastante… Coisas do coração… Ainda bem que temos a cabeça para tal mister! Como já disse Pessoa, ‘se o coração pensasse, pararia’.”

Em 2015, ao ser chamado por Lunna Guedes para compor o time da Scenarium, “saí do armário” para me anunciar como escritor. O que significa transformar em palavras a vida que acontece. Registros que podem cair no ostracismo por falta de qualidade ou por exigir o esforço da leitura e da interpretação. O que é uma construção mental. Em tempos em que a distração é o objetivo, focar seus olhos e pensamentos em desenvolver uma interação, vai contra a modernidade de simplesmente ver a vida acontecer, sem se envolver. Levamos a arte do voyeurismo à quintessência. E dá-lhe fórmulas prontas e imagens manipuladas para nos dirigir a atenção…

BEDA / Do Virtual Para O Real*

Luiz Coutinho & eu

Em 2015, o que era virtual se tornou real. Das páginas do Facebook, saltaram personas que se encontraram pessoalmente, principalmente através de um ser sofisticado e de intricada personalidade – Luiz Coutinho – um veneziano nascido em Minas. Depois, o visitamos em Brasília, onde se esconde e onde se expõe por trilhas da escrita. Lá, redimensionei a cidade estranha, de arquitetura transcendente e povoada por uma gente incrível, onde encontramos menos brasilienses de nascimento do que por opção. De forma indireta, o meu percurso de escritor ganhou direcionamento nessa época quando, ao visitarmos o estúdio de Maria Cininha, a maravilhosa criadora das Marias, Edward Hopper me uniu à editora da Scenarium Plural – Livros Artesanais, Lunna Guedes. O mestre da solidão visualmente escancarada foi, pessoal e simbolicamente, o patrono de um grande encontro.

Fotos: Deborah Matt

*Texto de 2015, participante de BEDA: Blog Every Day August

Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Bob F / Lunna Guedes / Suzana Martins / Cláudia Leonardi / Denise Gals

BEDA / Escritor*

aos 6 leio toco violão canto desenho
aos 7 versão hey jude
garoto que amava beatles rolling stones
jovem guarda ronnie roberto erasmo
assistia namorava vanderléa
30 anos trabalho com ela
aos 8 desenho animado filme novela clair
aos 9 amava dança não danço
musicais programas calouros
zorro batman super-homem
aranha de ferro demolidor
aos 10 maysa eliseth elis gal nara
dolores milton caetano gil meu guru
aos 11 verne wells lobato
bach beethoven stravinky list
aos 12 poetas fim do século
barreto azevedo dias alencar
castro abreu varella freire sousândrade
decorava declamava sozinho
aos 13 mautner tom gonzagão tom zé
gonzaguinha djavan lupicício macalé
letras que mergulhava dos anjos
mundo descoberto alternativo
sofria como se fosse comigo
pintura arquitetura história
picasso van gogh hieronymus dali
aos 14 machado se impôs
quem viesse o servia depois
mas amei amado muito
capitães de areia me afetou
escrever ler concorria com vida
era mesma mas outra
para quê por que?
aos 15 não interessava resposta
feliz mistério
infeliz realidade pouco a pouco
tentava reescrever bíblia li inteira
sinais vida extraterrestremeus irmãos
jesus filósofo avatar
mestre emissário outra dimensão
eu ateu emoção com a sua paixão
fé intrigante poderosa talvez vazia
significado conspurcado
ofender lutar matar destruir seitas
orar ação subordinada ao medo
da maior atração da terra morrer
aos 16 escrever ver descrever antever
reverter transcrever transcender
minha forma de ser
quem sou não sou
quem fui serei passei
antes falecer depois nascer
outra vez aos 17
tempos de seca mão não impunha caneta
caçador de dores queria me ferir
me dedicar a outros me salvar
instinto sobrevivência
servir ser a vir melhor autopunição
vaidoso feito santo antão
criminoso por matar amores no nascedouro
de experimentar escapava
vampiro experiências alheias servia
como tema temor ao amor despedaçava
coração infantilizado
maduro mais duro sem flexão
como evadir de mim perpétua prisão?
sozinho casa vazia cães companheiros
acordava dormia quando queria escrevia
madrugadas inteiras escola futebol
síndrome do pânico
crises de ansiedade não sabia
apenas ultrapassava vivia
imaginava que fosse covardia
meus escritos não mostrava cria
fosse somente para mim artesão arte tesão
amava corpos não conhecia pavor culpa
confrontar peles pelos lençóis olhos bocas
penetrar recônditos recantos encantos impossíveis
literatura indenizava a vida
literária sem ser literal de frei sem hábito
a casado decidido a liquefazer o escritor
entre fraldas trabalho som luz movimento ação
20 anos sem compor personagens cenários
tramas vidas mortes sortes
aos 46 educação física voltei a estudar
entre jovens fui aluno professor divisor
de águas textos técnicos prática escrita
sem tempo atração pela palavra comoveu
corpo deslocamento pés cabeça me moveu
prazer escrever como comer
respirar inspirar não expirar
inspiração escritor voltei exalar
redes sociais perfurei crosta
atravessei bolha pessoal defesa descomunal
transpus campos ataquei aldeias
sentimentos emoções alcancei ideias
inéditas sobre mim me conheci desgostei
qual curiosidade maior viver partir?
sem decidir continuo por amor a escrita
finjo amor pessoas?
mas deus é verbo
aos 54 novo cenário publiquei artesanal
nunca pronto tonteio caio levanto deslizo
deito palavra dentro gozo reproduzo
conto cena crônica poema aprendiz
de fecundação aos 56
veio à luz minha realidade
continuei rua 2 confissões
sigo curso de rio caminho do mar
cometo crimes senzala
mentiras ainda que diga a verdade…

*Poema de 2021

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelin / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Dose de Poesia / Claudia Leonardi / Alê Helga