30 / 11 / 2025 / Blogvember / Desci As Escadas Do Dia

… tentei buscar um pouco de refrigério para a minha dor…
tantas vezes me vejo magoado por ser como sou
queria infringir minhas próprias regras
matar a imagem que fazem de mim e que assumi como se fosse eu
mas estou preso à minha própria mentira
de tal maneira que não saberia viver sem ela a me dar suporte
como se reconhecesse o meu fracasso em não ser aquele que me reconhecessem
aquele que não sou que sou
desalentado
recebo a luz que se esvai por trás do horizonte na esperança
de me deitar e sonhar comigo não sendo…
amanhã…

Participação: Lunna Guedes

13 / 04 / 2025 / BEDA / Em Busca Da Fantasia*

CADA UM LUTA PELO QUE LHE FALTA

Desde garoto, fantasiava. Em determinado momento, comecei a colocar esses arroubos excessivos da imaginação em papeis amarrotados com tocos de lápis e canetas usadas. Nas redações escolares, as minhas professoras-leitoras me incentivavam a continuar a escrever. Mas cria que fossem incentivos costumeiros. Fora as tarefas, escrevia por compulsão ou necessidade textos que não mostrava a ninguém. O meu primeiro ouvinte foi o meu irmão, para quem lia histórias aventureiras que abusava de seres excêntricos, recheados de sustos e finais inesperados. Ele adorava. Cem por cento de aprovação.

Aos 14 anos, comecei a ousar mostrar para outras pessoas o que criava e obtinha certa aceitação. No Segundo Grau — o antigo Colegial — em outra realidade de relações, ficava a poetizar a minha vivência, impulsionada pela imersão na religiosidade. Era comum eu versar sobre a luta entre o desejo sexual e a contestação de sua expressão. O casto experimentava fantasiar sobre o sexo, ao mesmo tempo que se sentia um transgressor que desrespeitava regras autoimpostas. O devaneio com requintes de extravagância transformava tudo em ficção, a realidade adivinhada pela imaginação. Conseguia, talvez por isso mesmo, alcançar a verdade circunstancial do momento, em lúcida loucura. O que constatei ao ler alguns desses escritos depois de algum tempo, já experiente. Eu me sentia como que encantado.

Compreendi que o que poderia chamar de instinto estrutural me dava ferramentas para que a fantasia ficasse bem perto da veracidade dos fatos. Os escritos internamente obedeciam a uma lógica de tal maneira que dificilmente deixava pontas soltas. Embriagado de ficção, me descuidei. Professava a empáfia dos autossuficientes e a realidade dos homens aproveitou a minha distração para me socar na boca do estômago. Fui a nocaute. Permaneci na lona, beijando a morte por alguns anos. Quando me levantei, o sonho parecia ter acabado. Ou se apartado de mim e atravessado uma porta que se fechou. Comecei a desejar reencontrar a capacidade de sonhar feito um poeta doido que perdeu seu amor pelo caminho. 

Sinto falta de fantasia. Uma espécie de senso para o fantástico que se diluiu na nebulosidade dos tempos que envelheceu a mão, endureceu as articulações e empoeirou a eloquência da minha fala. Falhei. E falho a todo instante que deixo de crer na ilusão. Grávido da realidade dos homens, sangro a parir nulidades. Luto para reaver o deslumbrante movimento de estar incompleto em saberes e existir pleno de intuições. Quanto mais me abstenho de sonhar, mais eu me sinto longe da verdade pessoal. Cresci inversamente, para baixo, abismado, enquanto caía. Não acredito em esperança e o presente é como se fosse um limbo. Seco. Se antes fosse úmido feito a vulva da Quimera…   

*Texto participante do Coletivo CADA UM LUTA PELO QUE LHE FALTA, pela Scenarium Livros Artesanais

#Blogvember / O Que É Teu

Falar do que é teu, não posso (Lua Souza)

Registro do casal de Outubro de 2021, em Paraty-RJ

Querida, falar do que é teu, não posso. O que te pertence, apenas tu saberás. Tento sempre me colocar no lugar das pessoas, interpretar sentimentos, emoções, senões, apesares… Contigo, é diferente. Mesmo depois de tanto tempo de convivência, tu és outra do que quando te vi pela primeira vez. E continua a te desenvolver. O que é bom. Vejo que evoluíste em tantas convicções, que não percebe-te uma pessoa parada no tempo.

Estamos há mais tempo juntos do que separados em nossas vidas íntimas. Nos transformamos mutuamente. Compartilhamos idades diversas, perrengues que já conheces, mas não divulgamos para que não recaiam sobre nós olhares de condolências ou invídia. Somos altivos, apartados de amizades com outros casais e até um pouco misantropos. Nossas atividades são díspares em significados, alcance e valorização. Sabes que te admiro como profissional e abençoo o dia em que escolhi me entregar à mais inteligente. Temos divergências, tantas quanto é possível dentro do limite aceitável para não joguemos fora as alianças (a minha está em lugar incógnito).

Sagitariana, guerreira, meio humana, meio animal, está sempre em movimento, ainda que saiba dormir como poucos. Mas mesmo adormecida, ao despertar relata sonhos que teve, estranhos, coincidentes com acontecimentos externos e vibrações internas. Intuitiva, resvala na verdade, mesmo sem querer. Descreve, como poucas pessoas, procedimentos técnicos de teu trabalho. Excelente, a exceder o normativo, cria viabilidades ao que já é conhecido. Eu, que te conheço (mais ou menos) de perto, não tenho expectativas aonde chegará, porque tu és surpreendente. Sei que crescerá para além de tuas próprias expectativas. Chegou a lugares que a menina do interior do Rio nunca imaginou chegar – ao Cabo da Boa Esperança – tanto física quanto metaforicamente.

Do Atlântico ao Índico e, mais recentemente ao Pacífico, vislumbraste diferentes águas de Oceanos. E isso é apenas um exemplo. Falar do que é meu, eu posso – o desejo que continue a ser autêntica – ainda que me irrite quando exageras na franqueza. Quero-te tão bem quanto desejaria a alguém que construiu uma vida inteira ao teu lado. Nossas bençãos não são materiais, mas estão materializadas nos frutos que geramos e cuidamos para que se tornassem as mulheres incríveis que são.

Feliz, 60, querida!

Participam: Mariana Gouveia / Lunna Guedes

Ode Aos Últimos Dias*

Não é pregação ou advertência —
algo têm que morrer,
ainda que na aparência,
para outro renascer.

Digo com o coração pleno de paz:
apenas os mais egoístas
dirão que o amor se desfaz
sem deixar marcas ou pistas.

Porque se há um sentimento
que seja eterno é o amor
porquanto não haja consentimento,
mesmo que surja o rancor.

Eu sei que o que sinto é infinito,
assim como os átomos que me compõe,
como é efêmero o corpo que habito,
como é perpétuo o universo-mãe.

Quebramos o espelho — foram sete anos de sorte,
o perfume que se perdeu o reencontramos no 102,
vivemos a entrega, as brigas, cortejamos a morte
porque nada poderia ser deixado para depois.

Eu a manterei na lembrança
ainda que sem as minúcias que tanto preza,
mesmo que não tenha mais esperança…
Vê-la mais uma vez, seria uma surpresa.

Porém você está em mim — sua voz, sua boca,
olhos de esmeralda que passeiam em minha mente,
sua linguagem pajubá, vertigem de leoa louca —
alma de loura, cabelo gris e corpo de serpente.

A memória da areia branca, o braço rumo ao céu,
a carta lida no metrô — que a fez perder a direção,
os toques dos saltos no corredor do hotel
e sapatos de naja — carinho por declarar sua paixão.

Quando você dizia que tudo terminaria, eu não previa,
tão apaixonado, tão absorto em centros alternativos,
que o tempo se esgarçaria, que o templo ruiria
na rua da marquesa onde nos tornávamos deuses redivivos.
 
O meu desejo lhe pertence — é dona de um rei…
Sinto pena que ele nunca mais possa colher da rosa
a cor, a dor, o mel, o prazer que nunca imaginei…
Já, o escritor, sei que nunca perderá a musa de verso e prosa.

*Poema-delírio de 2020 — tempo pandêmico
Imagem: Lilith, a primeira mulher, entidade de origem judáica-mesopotâmica. 

O Dia De Quem Ensina São Todos Os Dias

DIA DE QUEM ENSINA SÃO TODOS OS DIAS

Todos nós, em algum momento da vida, assumimos mesmo sem pretensão, a função de professor. Ainda que de forma indireta, por erros que cometemos ou por ações afirmativas e conscientes que servem como exemplos. Jovem, ao projetar o meu futuro, eu me vi como um professor. Escolhi História porque percebia que nessa seara eu poderia cultivar assuntos que me inspiravam – Filosofia, Geografia, Sociologia, Economia, Literatura, Biologia, Psicologia – e tantas outras vertentes do saber humano.

Na FFLCH-USP, dei de frente com a complexidade de como a História se desdobrava em compartimentos que deveriam por fim integrar o conhecimento da matéria que deveria retratar a Realidade. A partir da visão de estudiosos, vi formulações de teorias de como a vida do Homo sapiens na Terra em Sociedade se formou através de provas documentais, visando preencher lacunas sobre fatos desconhecidos. Para além da Epistemologia – ou teoria do conhecimento – surgiram defensores de caminhos que tornassem os meandros de nosso desenvolvimento social não somente mais compreensíveis, mas mais aceitáveis. Nesse instante, surgem ideologias que deveriam “explicar” a soberania dos donos do poder e, em contraponto, a razão das relações humanas caminharem para serem mais justas e equânimes.

Daí, chegamos à história da História, a perceber que a manipulação dos fatos se dá desde sempre. Quando entrei na faculdade, me surpreendi com a ideia de a matéria em questão ser uma Ciência. A própria ideia do que seja Ciência é revisada ao colocá-la como Humana. Aqui, me permito rir ao lembrar da frase que “errar é humano”. Errar também pode ser sinónimo de caminhar (sem destino). O embate ideológico naturalmente faz parte do próprio ensino. Sou daqueles que defende que a Educação, a meu ver, tem que caminhar no sentido de tornar a Sociedade menos tensionada. Isso só se dará ao colocar o Conhecimento como prioridade capital. Não se trata de defender a minha classe, tendo em vista que a minha renda familiar, neste País depauperado, me coloca na “Média”. A mesma classe média que quer que a situação continue do jeito que está.

Que uma parte significativa da população defenda o nosso atual status de “Pátria Pária”, não me surpreende mentalmente, mas me instabiliza psicologicamente. Os argumentos que utilizam para se manterem com o pescoço sob a bota do Capitão do Mato são baseadas em “conhecimento” apreendido por mecanismos modernos de desinformação. Porém, a explicação tem as suas raízes bem mais profundas. Tem muito a ver por ter sido esta Nação formada por discrepâncias como a defesa religiosa da dominação e posterior escravidão dos povos originários, quando da invasão do território de Pindorama por europeus. Nomeá-la de Santa Cruz é icônico por si só – símbolo do calvário de Cristo. Como os escravizados não suportavam o jugo e logo pereciam, recorreu-se à mão-de-obra trazida de outro continente. A escravização dos africanos e o modo “industrial” de como foi feita a operação de captura, transporte e venda das “peças” é algo que deveria nos envergonhar dolorosamente todos os dias.

Ao colocar alguém que conscientemente estipula em arrobas – a forma antiga de pesagem no Brasil – a um homem preto chamou para si a simpatia daqueles que, como ele, pensam de forma idêntica. E são tantos… Tanto que continua a agir impunemente com a anuência de colaboradores de ocasião e simpatizantes permanentes. São filhos de nossas mazelas em que o período da Escravidão representa seu cerne de formação e desenvolvimento.  Dos um pouco mais de 500 anos de “existência” do Brasil, quase 400 foram vividos sob a égide da escravização de homens, mulheres e crianças. Pessoas usadas como objetos como são os móveis, os automóveis, talheres e roupas. Pessoas que foram punidas quando se rebelavam contra o desmando, a ignomínia, a dominação sexual e a venda de seus filhos, pais e irmãos. Sem colocar em pauta esse período tenebroso para a nossa História, não há como superarmos o atual desiquilíbrio social. Quem defende o contrário disso, se filia como (com o) algoz de nosso povo, assim como foram nossos antepassados.

Quando estive me Parati, o guia que nos guiou pela riqueza da vegetação, quedas d’água e fazendas produtoras de aguardente, citou o termo “escravizado” em vez de “escravo” ao se referir às pessoas que compunham a população de servidores nos engenhos, no transporte do ouro, nas tarefas mais pesadas. Qual seria a diferença? A meu ver, quando se é escravo é uma decisão tomada por si mesmo, muitas vezes. Eu escolho ser “escravo” de minha sensibilidade, apesar da dor permanente. Quando se diz “escravizado”, é algo que é imposto por terceiros, mesmo que se rebele. Como o que acontece com a obrigação que o Sistema que discrimina, alija e pune os cidadãos que não alcançaram ainda a cidadania plena, presente na Constituição.

Por isso, devemos valorizar os professores todos os dias. Esperança de um País melhor, não para mim, que vivo a parte final de minha vida terrena, mas para quem vier depois. Esperançar é o verbo oculto a cada vez que um professor ou professora toca o giz na lousa.