24 / 11 / 2025 / Blogvember / Chegou Outra Carta No Quarto De Hora

passava quinze minutos depois da meia-noite a carta
chegou colocada por debaixo da porta do quarto
estava acordado e percebi uma sombra se afastando pelo corredor do hotel
não era a primeira vez e me levantei do sofá a tempo de ver alguém dobrando a esquina
era mais um texto quase indecifrável porque a letra era trêmula e oscilante
não sei qual a pretensão do autor ou autora do texto
mas entendi se tratar de um aviso sobre a minha esposa que ficou em casa
o fato de ser uma carta tradicional deu um tom de coisa solene e grave
feito um drama de novela de amor daqueles com sobressaltos e revelações
de traição e denúncia de amores não correspondidos ciúme e dor
nada disso eu senti
sabia que mariana tinha alguém com quem se reunia nas minhas ausências
por viagem de negócios
eu mesmo deixei de amá-la há algum tempo
mas não tenho ninguém apenas casos avulsos encontros fortuitos
mulheres que são amigas e com quem tenho identificação
mariana de saber aliás ciúme já não há levamos a vida dessa maneira solta
sem ataduras compreensão de nossas faltas e predicados
amigos casados e satisfeitos com a desunião de corpos…

Participação: Lunna Guedes

Foto por Jess Bailey Designs em Pexels.com

BEDA / Pais*

nos anais memoriais
de minha mãe
meus pais se casaram em bela cerimônia
ela de branco virginal
ele de preto solene
ateu na igreja
talvez quisesse outras cores
formato alternativo
sua raiva crescia
pelos grilhões que o prendia
anéis trocados
juras convencionais
primeira noite o marido diz
vou logo lhe passar o pinto
depois sairei em nome da luta política
o revolucionário se ausenta
um dois dias
volta tarde no terceiro
ela pergunta porque demorou
ele responde com um tapa
no rosto de pele macia
homem de esquerda vanguarda macho
sem contestação
de pesada mão
buscava uma parideira faz filhos
casou por causa da macumba
da esposa dizia
mulher não se confia
a deixou na periferia
com filhos casa simples
longe da família
três crianças vivas oito abortados
vida dura desesperançada
época difícil regime militar
fugia da polícia o senhor meu pai
o índio paraguaio
preso sem definido paradeiro
pequenos íamos aos quartéis
lembro do japonês
falava com mamãe mentia não sabia
pai torturado esmagado como homem
liberto do cárcere
morreu para aquela vida comunista
ajudado por madrasta kardecista
família quatrocentona
nasceu pela segunda vez
pela mão da capitalista
mamãe morreu tantas vezes
renasceu muitas dezenas
nunca a vi esmorecer
vivia a se desmerecer
trabalhou em bares
vendedora de galinhas
comprar meus livros coleções enciclopédias
limpar casas não se impedia
soube tanto tempo depois
choro choro de remorso
porque nada me tornei
ela a amar sua culpa
eu incriminado por ser amado
aos 70 pediu separação legal
o marido ausente se diz apunhalado
pelas costas
nada quis deixar à ex aos filhos seus
pediu a deus deu procuração ao diabo
roubou um milhão o advogado
restou uns caraminguás
sobrou um cara minguado
tentou surrupiar a própria família
morreu mais uma vez por última
no pau-de-arara lei civil
no choque elétrico dos torturadores
sua descendência sobrevivente
quando nos deixou fisicamente
nunca chorei
espero chorar antes de eu mesmo fenecer
então terei perdoado e me perdoarei.

Imagem por pt.pixix.com

*Poema de 2021

Participam: Alê Helga / Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Cláudia Leonardi Suzana Martins Dose de Poesia / Lucas Armelin / Danielle SV

Vila Madalena / O Carlos

– Me paga uma cerveja?

Levanto os olhos do meu computador, onde escrevo o meu novo artigo e vejo Karl Marx… ou alguém muito parecido. A luz que vinha da janela do bar onde, num canto, eu tenho uma mesa cativa quase debaixo da pequena escada caracol, lhe emprestava uma aura de eternidade. Não o conhecia, mas lhe indiquei a cadeira à frente, sempre vaga para os meus encontros profissionais ou amigáveis. Chamei à Cíntia com a mão e pedi para que lhe trouxesse uma caneca com uma cerveja que eu gostava, artesanal.

– Bom dia! Como você se chama?

– Ah! Bom dia! Desculpa a falta de educação! Fico assim quando estou com fome… Meu nome é Carlos

– Quer comer alguma coisa?

– Oh, não! A cerveja já me basta como alimento… O senhor é escritor?

– Nada de “senhor”! O meu nome é Francisco. Sou escritor, sim…

– Desculpa em interromper o seu trabalho. Eu o vi de fora e fiquei fascinado por sua “ausência”. Como se fosse um pianista executando uma partitura em seu momento de transe.

– Gostei da sua imagem. Também escreve?

– De outro modo. Sou compositor, mas atuo apenas como músico. Lançar composições autorais no mercado do jeito que está – concorrido e parcial – é só para os mais fascinados pelo sucesso comercial… e que não se importam em fazer concessões. Prefiro tocar em barzinhos…

– Que instrumento toca?

– Baixo, guitarra, violão… o que estiver precisando.

– Sabe o que é interessante? O meu artigo é sobre a letra de uma música. Não é o caso de decifrá-la, mas interpretá-la. “O Quereres”, do Caetano

– Eu amo “O Quereres”! É quase perfeita! Dentre os vários versos, há um que até entendo o que Caetano quis dizer, mas não acho que não sejam tão opositores assim…

– É? Qual passagem?

– “Onde queres família, sou maluco / Onde queres romântico, burguês”…

– Por que, não?

– Olha, só um doido para querer formar uma família nos dias de hoje… E o romantismo é uma criação burguesa. Surgiu no Século XVIII, com a Revolução Francesa, ascensão da burguesia, da liberdade individual. Nada mais burguês, já que não estar preso às convenções é algo apenas reservado às classes econômicas mais aquinhoadas, que não precisam seguir regras. Já estão com a vida ganha… Trabalhador não pode transpor certos limites…

– Você fala bem… como um professor…

– Ah, não queria parecer professoral. Já dei aula antes de viver como instrumentista. Sou formado em Sociologia.

A cada frase terminada, Carlos pontuava tomando um pequeno gole de cerveja, como se quisesse economizar.

– Você deve andar na corda bamba. Ser professor ou músico não deve ser fácil… Mas olha quem está falando… Tenho que produzir bastante para pagar as contas. Às vezes, trabalho no automático. A dona do bar é minha amiga. Permite que ocupe esta mesa. Disse que dá uma um certo ar intelectual ao lugar. Na verdade, ela gosta da minha presença. Sempre que recebo uma visita, a pessoa se torna freguês.

Um belo rapaz se aproxima da minha mesa e se posiciona ao meu lado. Ao virar o rosto, ele me dá

uma bitoca.

Fala, querido!

– Tô indo para o apartamento, tá bom, Chico?

– Fica à vontade! Berenice está com saudade de você!

– E eu, dela! Ela melhorou das dores nas pernas?

– A mesma coisa… se puder, faça uma massagem nas suas pernas e pés, tá bom? Esse é o Carlos, músico. Estamos discorrendo sobre um artigo que tenho que entregar.

– Olá! Tudo bem?

– Sim! Prazer em conhecê-lo…

Matheus! O meu nome é Matheus!

– O prazer é meu!

– Até mais, Chico!

– Inté!

Trocamos outro beijo leve nos lábios. Logo após a saída de Matheus, Carlos sorriu e perguntou a quanto tempo conhecia o Matheus.

– A vida toda, dele…

Diante do olhar entre espanto e censura, expliquei.

– Ele é meu filho. Ele sempre me chamou por meu apelido. Nos cumprimentamos com selinhos desde que ele era bem novinho. Gostava de beijar todo mundo. A mim, minha ex-mulher… os tios, primos…

– Ele tem um porte atlético! O que faz?

– Estuda Direito. Fica um pouco comigo, um pouco com a minha ex-mulher e o pai biológico dele. Mas é a mim que considera como pai e assim me chama quando quer conversar sobre algo mais íntimo.

– Quantos anos ele tinha quando você se casou com a…?

Ella, com dois “eles”… Estávamos namorando e ela anunciou que estava grávida. Logo, providenciamos os papéis. Eu sempre quis me casar! Apesar de acalentar o sonho de ser escritor, eu trabalhava com comércio exterior, acredita? Ganhava bem… até que…

Inesperadamente, fiquei emocionado. Não esperava que a velha história ainda me tocasse daquela maneira. Mesmo sendo tão clichê…

Matheus tinha 14 anos e percebeu que a mãe estava se comunicando frequentemente com um tal de Raul, como ouviu chamá-lo. Ciumento, me falou sobre ela estar namorando pelo telefone, marcando encontros. Ao interpelá-la, me confessou que estava tendo um caso com o sujeito. Perguntei a quanto tempo. Respondeu que quando me conheceu, tinha acabado de romper com ele. Gostou de mim. Eu parecia ser cara legal, além de estável financeiramente. Achou que talvez o esquecesse… Preciso também de uma cerveja…

Sinalizei para a Cíntia para que nos trouxesse mais duas canecas. Carlos rapidamente tomou o que restava da primeira. Com os seus olhos de pensador alemão parecia me ouvir com um ar de real tristeza, como se fosse um velho amigo.

– Foi então que fez a revelação que me derrubou. Ella havia tentado ainda mais uma vez voltar com Raul. Saíram, foram prá cama e ela engravidou. Quando revelou sobre a gravidez, Raul disse que não se importava… Ela que tirasse! Pai e mãe religiosos, sem nenhuma outra opção, me usou. Foi a melhor coisa que poderia ter feito. Mesmo iludido por considerar Matheus meu filho natural, nunca me separaria dela. Estava apaixonado por minha família. Só ocorreu a separação porque voltou a encontrar a quem sempre amou. Raul havia se separado da esposa, deixando a casa para ela e o casal de filhos, irmãos do Matheus.

– Nossa! Que história! E Matheus, com quem ficou?

– Tivemos que contar tudo com muito cuidado, mesmo porque Raul queria conhecer o menino. Apesar de tudo, era seu direito, assim como era direito do Matheus saber. Mas menti quando disse que sabia desde o início não ser seu pai biológico. Mesmo porque, era estéril…

– Caramba! Até nisso mentiu?

– Sim e não! Sempre tentamos ter outra criança. De fato, era mais um desejo dela do que meu. Após a revelação, procurei fazer um exame que constatou a minha esterilidade. Quando Matheus soube de tudo, ficou desesperado. Disse que queria ser meu filho, não daquele sujeito que nem conhecia direito. Como já tinha 14 anos, apesar dos apelos da mãe, ele escolheu ficar comigo. A Berenice, nossa auxiliar, nos ajudou muito. Com a ausência tanto dos meus pais quanto os de Ella, que morreram quando Matheus ainda era pequeno, ela representou muito bem o papel de avó. Nós a amamos como tal!

– E quando mudou de atividade?

– Quase ao mesmo tempo em que ocorreu a separação. Acho que precisava de uma sacudidela para mudar. Dei sorte de ter conhecidos que me indicaram para a realização de artigos na área de comércio exterior. Gostaram de meu estilo menos pomposo para explicar o funcionamento do mercado, esse ser invisível. Logo, estava escrevendo sobre outros assuntos.

– Que legal! Nunca imaginei que teria uma manhã tão inspiradora apenas porque desejei matar a minha sede! Você é foda, Francisco!

– Pode me chamar de Chico! Nunca havia contado essa história para ninguém de maneira tão aberta! E para quem nem conhecia. Foi a cerveja mais bem paga que banquei! De repente, me senti aliviado!

– Olha, preciso ir ensaiar! Eu vou me apresentar junto com uma cantora ótima, na próxima quinta-feira. Lá no Bar do Pereira, conhece? Vai lá me visitar! E sempre que tiver chance, virei aqui com segundas intenções…

Após engolir de uma vez um pesado gole de cerveja, testemunhei o sisudo Karl Marx a rir desbragadamente. Saiu, caminhando rua abaixo. Há 1 Km, ficava o Bar do Pereira. Vila Madalena confirmou que continuava a ser um país incrível!

Imagem ilustrativa do Bar São Cristovão, na Vila Madalena.

O Sonho

Quando chegou à academia, se dirigiu à esteira que costumava se exercitar. Ao lado, um rapaz já corria em outra.  Entreolharam-se e rapidamente começaram a conversar sobre amenidades, entre sorrisos. Em pouco tempo, perceberam que compartilhavam coisas em comum… ainda que sobre assuntos absolutamente frívolos. No entanto, ela pensou na mesma hora: “Devo estar ficando louca! Ele é lindo, perfeito para mim e, o mais importante, sonha o mesmo sonho que eu!”…

Naquele mesmo dia, quando saíam da academia, ele se aproximou e lhe deu um beijo. Sem reação, ela se rendeu. Sem dúvida, aquilo confirmou para ela que o sentimento entre ambos era recíproco.  O rapaz a convidou para jantar em seu próprio restaurante. Aceito o convite, levou a melhor amiga consigo imaginando que lhe servisse como testemunha e apoio. Afinal, tudo era muito repentino. Na entrada do estabelecimento, a recepcionista a levou para a mesa pronta preparada com detalhes que a deixou completamente encantada.

Mesmo já tendo passado por vários relacionamentos, a moça mantinha uma ingenuidade que atraía o rapaz. Terminado o jantar, ambos concordaram que havia sido tudo “maravilhoso”, palavra pronunciada quase em uníssono, com brilho nos olhos de ambos. Ele pediu licença para a sua amiga e conduziu a namorada para a cozinha. Pediu atenção aos cozinheiros e auxiliares e anunciou em voz alta: “Gente, quero apresentar a vocês a minha futura esposa!”.

Durante um ano inteiro, a moça recebeu confirmações que realmente havia encontrado uma pessoa que correspondia a todos os seus sonhos. No enunciado do casamento, escreveu: “A vida nos uniu e pediu para vivermos intensamente este amor. Agora estamos compartilhando com vocês o nosso maior sonho – a nossa união! Acreditamos que nossa história já estava escrita e contamos com todos os nossos amigos para testemunhá-la!“

Meses depois, a moça sonhadora foi encontrada morta. Ao seu lado, o gato que amava guardava o seu corpo com as patas sujas de sangue. A suspeita recaiu imediatamente sobre o marido, que compareceu à delegacia para prestar depoimento. Houve rumores de que a esposa havia o surpreendido com a sua melhor amiga na própria cama. Irada, foi em direção ao sujeito, o confrontando. Raivoso, ele a empurrou contra um móvel do quarto, batendo com o crânio numa quina, a atingindo na região occipital. Enquanto perdia a consciência, parecia estar despertando de um sonho…

Foto por Mathias Reding em Pexels.com

BEDA / Marido De Aluguel

O texto anterior acabou por me fazer refletir sobre o termo genérico de “dono de casa”, derivado do feminino “Dona de Casa“. Este, talvez tenha sido criado para dar um lustro de nobreza para designar uma atividade permanente, integral e desgastante de dar suporte à casa e atenção ao amo e à descendência. Merecia uma consideração mais profunda e sobre esse tema tratarei aqui. De forma correlata, a moderna atividade de “Marido de Aluguel” também suscita considerações nas quais não consigo deixar de perceber a ironia que carrega em todos os sentidos.

Eu vejo passar veículos com esse slogan que pressupõe a realização de tarefas que apenas o homem faria – conserto de torneiras danificadas, troca de chuveiros, restauro da fiação elétrica, colocação de parafusos e pregos, pintura, pequenas obras de alvenaria e, por aí, vai. Em casa, a Tânia realiza algumas dessas tarefas, filha de um homem que a ensinou, por exemplo, a erguer uma parede.

Eu não deixo de realizar outras tantas dessas atividades, mas não me sinto mais marido ou mais másculo por isso, como não me sinto mais feminino por lavar, estender e passar roupa, cozinhar, lavar panelas, talheres e louça, regar as plantas, cuidar dos bichos, varrer e passar um pano no chão ou arrumar a cama. Ajudante de minha mãe quando garoto, declarava a ela que queria me tornar um “homem total”. A pequena análise que faço diz respeito a como o Patriarcado exerce sobre nós, homens e mulheres uma dominação absurda.

Emprestando da matriz patriarcal determinadas formulações, fico a imaginar se o termo “Marido de Aluguel” não ensejaria interpretações dúbias e piadas de bar feitas por homens e mulheres que atuam sobre a égide do Patriarcado, que perpassa todas as ações sociais de adultos que não conseguem escapar ao seu domínio. Sempre se aventou entre os deveres da esposa o de atender sexualmente ao marido, assim como a do marido em “comparecer” ao ato como a comprovar a sua masculinidade. Em conversas de botequim a função do profissional poderá ser tratada mais extensivamente, bem como se dizia em tempos idos dos filhos gerados na visita de leiteiros ou padeiros.

O que para o homem significaria carregar a peja de marido enganado, para a mulher talvez fosse como uma válvula de escape da dominação machista imposta por casamentos arranjados, sem conexão de gostos ou pelo abandono em vida por um companheiro que a considera apenas a parideira de seus filhos e que muitas vezes instituíam lares ou relações paralelas. Num texto curto como este, que é mais provocativo do que elucidativo, as questões do nosso envolvimento com as consequências da máster cultural distorcida por milênios de abusos de um gênero por outro, simplesmente por carregar maior força física não são resolvidas, somente são testemunhadas.

E me incomodam…

Participam do BEDA:
Claudia Leonardi / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Darlene Regina