Amar

AMAR
Um outro tipo de amor – em 1987, Maria Julieta morreu aos 57 anos vitimada por um câncer. Muito apegado à filha, doze dias depois, Drummond também se foi, vitimado por um infarto.

“O amor e a paixão são exercícios diários. É isso que falta nos casais. Por isso, se cai na mesmice. Somos artistas da arte de amar. Aplauso é bom e gostamos!” – já disse alguém. Drummond disse que gostamos que se repita sempre “eu te amo!”, em QUERO. Quando é dito “eu te amo para sempre”, a explodir na boca como se fosse uma necessidade de respirar, não duvido que seja sincero. Vinícius soube sintetizar como poucos ao proclamar “que seja eterno enquanto dure”… O termo “para sempre”, nesse caso não é uma locução temporal, mas de intensidade. O amor, naquele momento, tem a força da eternidade. E, ainda que acabe, a energia daquele sentimento viverá infinitamente.

QUERO
Carlos Drummond de Andrade

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

Ultimatum

Há cem anos, Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, escreveu e Maria Bethânia lindamente declamou… Fiquei emocionado, pois estou a ficar sem anos para contar até que chegue o fim dos meus tempos. Os tempos se renovam em podridão de eternas e humanas doenças do espírito e sei que morrerei sem ver este País grande e justo, como um dia sonhou o menino que um dia eu fui…

Transformação

Transformação

A metamorfose se deu, de início
pelo olhar…
O movimento dela o paralisou.
Como se fotografasse cada gesto,
aprisionou dentro de si a evolução
do casulo à borboleta –
da flor ao céu –
asas da imaginação…

Quis recuar quando suas vozes
ocuparam o mesmo ambiente –
palco de suas atuações…
Percebeu que fluíam sonoras
conversas de palavras
entrecortadas,
caladas…
As lacunas preenchidas de desejos
perfeitos em suas incompletudes.

Quebradas as barreiras –
distâncias de centímetros-quilômetros –
peles sem proteção,
mentes despertas,
liberta de atavismos
e consequências,
o imediato transformado em eterno,
se reconheceram outros,
os mesmos…

Ele,
transmutado
de Jekyll em Hyde,
de homem em lobo,
de mortal em vampiro,
de Clark em Superman –
todos e ninguém,
vivia ausente de si…
Passou a respirar o vácuo
se não aspirasse o hálito da paixão…

Transformação
irremediável,
perigosa,
instável,
liberdade de viajante
encarcerado,
não trocaria o permanente desconforto
do atual caos da criação do mundo
pela antiga estabilidade da morte
em vida…

Projeto Scenarium 6 Missivas / Janeiro-19 / Para Machadinho

Machado, meu caro, sabe que o tenho em alta conta, que foi meu companheiro na adolescência e muito me influenciou em minha escrita. Sou um escritor mínimo que, no entanto, consegue alcançar fruição estética em suas tramas esmiuçadas, a passear pelos maneirismos dos seres que desfilaram suas precariedades pelas ruas do Rio, a antiga Capital do Brasil.

Sei que foi ambicioso e que se valeu de sua perspicácia e inteligência para influenciar seus confrades e obter meios de ascender socialmente. Tão incisiva a sua inteligência, que passaram por cima de sua origem e cor para o ter sempre por perto. Sabia como manipulá-los, não é certo? Fugiu das armadilhas políticas para enveredar cada vez mais fortemente pelas letras. Inquieto, fundou e participou de vários grupos e atividades incentivadoras das artes.

Poderia ter se enredado definitivamente com algumas das bailarinas ou atrizes que conheceu, mas seu amor se apresentou na pessoa de Carolina, sua Carola, a mulher de sua vida. Quando ela partiu, a visitava em seu descanso todo o domingo – macabra rotina de quem deseja ficar mais perto de quem amou – a saber que ali reside apenas a intenção física-deteriorada de quem foi viva e apaixonada por você. Escreveu “À Carolina…

Querida! Ao pé do leito derradeiro
Em que descansa desta longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração de companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
que, a despeito de toda humana lida,
fez nossa existência apetecida
e num recanto pôs o mundo inteiro…
Trago-te flores – restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados;
que eu, se tenho, nos olhos mal feridos,
pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos.”

Era para ela que verdadeiramente escrevia. Ela era o público que queria cativar e demonstrar que era merecedor da atenção que devotava ao feio mulato nascido no Morro do Livramento. Ela lhe mostrou o mundo novo da literatura vinda do Velho Mundo. Carola lhe conduziu os olhos para as minúcias do comportamento humano, revisou seus textos, orientou seu caminho. Ela o amou. Ela o tornou o nosso Machado de Assis. Sem a presença dela, para quem escrever, como em suas cartas a se autodenominar Machadinho?

Você, Bruxo do Cosme Velho, depois de tudo, percebeu que amar como amou era a autêntica dádiva que poderia alcançar em vida de reconhecido mestre das letras. Nada de receber como galardão batatas que apenas alimentam o corpo. O escritor que ganhou a vida ao viver dentro dos olhos de mar calmo de Carolina, morreu um pouco quando a luz deles se foi. Desabrigado igualmente de seu sorriso, foi-se deixando ir diante de seus pares e amigos próximos, que preferiam vê-lo morto a presenciá-lo morrer. Atendeu gentilmente o pedido e tornou-se eterno.

machadinho
Carola & Machadinho

Participam deste projeto:

Maria VitóriaMariana Gouveia | Lunna Guedes