Arte Anônima*

Em 2021* publiquei:

“Ao varrer esta plataforma, encontrei marcas que não havia percebido antes. Como faz alguns anos que foi feita, fiquei me perguntando quem teria deixado este registro para a posteridade. Lembrei das amigas que nos deixaram fisicamente. Não deve ter sido a Penélope, labradora de tinha o corpo e o coração grandes demais. Talvez fosse da Dorô, tão doce e amada por ter crescido junto com as crianças humanas. Ou da Frida, as de olhos de avelãs, quieta ilusionista, que surgia do nada em algum ponto da casa. Da Domitila, que ainda está conosco, também não, pelo tamanho maior do que está marcado. Enfim, o que sei é que daquele patamar as marcas poderão sumir um dia por alguma reforma. Do meu coração, enquanto eu existir, jamais!”.

Olha que esqueci das menores, a Lolla e a Bethânia, tão curiosas que é bem capaz de terem produzido a arte anônima. Infelizmente, Penélope e Dorô nos deixaram fisicamente por causa de câncer. Frida, atropelada quando saiu para cheirar as novidades da rua. Mas continuam existindo enquanto o meu coração bater.

Sou Palavra Difícil

O meu amor gosta de Bukowski
e eu amo Augusto dos Anjos.
Se Augusto dos Anjos tivesse sido influenciado por Bukowski,
talvez não tivesse existido o poeta como o conheço.
O preto,
se se conformasse em se ater ao seu destino proclamado —
marginal, apesar de ser maioria,
palavra difícil de ser decifrada
em meio a vocábulos fáceis de serem compreendidos,
não chegaria a mim — menino da periferia —
que me encantava com a palavra complexa que feria.

Se abraçasse o enunciado do americano —
bêbado que vomitava durezas de descrente,
leoninamente egoico,
dogmaticamente estoico,
adepto da simplicidade de expressão —
não seria grande além do tempo, o paraibano.
Dos Anjos era palavra quase inacessível.
Fosse fiel às prisões do imediato e do lugar,
se filiaria a obviedade e ao possível.

O americano, necessário, porém perplexo,
o paraibano, imprescindível, contudo sem aparente nexo,
não se confrontam em meu coração, que eu sinta.
Um, eu leio e deixo minha rebeldia extemporânea satisfeita.
Outro, eu leio a mim e me encontro incompleto,
a tentar alcançar lonjuras.
O ébrio, ainda que espalhafatoso, morreu velho.
O professor que era poeta, morreu aos 30.
Não se encontraram a não ser diante dos meus olhos —
os versos de um embriagam e me deixam de porre,
os do outro suplantam meu corpo e dilaceram minh’alma.
Bukowski, brincava com o perigo de existir.
Dos Anjos, fazia de companhia a morte
que não o enlutava, mas celebrava.

Bukowski, foi ele.
Dos Anjos, sou Eu.
Enquanto que o egoísta não quis mostrar a ninguém
o pássaro azul no peito,
o centrado revelou a “frialdade inorgânica da terra”.
Enquanto um soltou crônicas de amor louco
em ereções, ejaculações e exibicionismos,
sendo incensado;
o outro, incompreendido em seu tempo,
renegou a religião como resposta e proclamou
que ninguém doma o coração de um poeta —
sendo amaldiçoado.

Sou palavra difícil.
É compreensível que não possa ser entendido.
Mas acho triste não ser lido ou ouvido
por quem diz me amar.
Começo a duvidar da minha expressão.
Não deveria me derramar?
Deveria ser prosaico ou antes, calado?
Ao me revelar, deverei ser contido?
Deverei reverberar a palavra fácil, complacente?
Erradicar a minha fala de estranha vertente?
Ser Bukowski e seguir a inóspita franqueza?
Ou ser Dos Anjos e violentar meu cotidiano
dos termos óbvios e tiranos?
A única simplicidade a qual me rendo
é dizer que a amo e disso não me arrependo…