BEDA / O Homem Só*

Ontem, de manhã, fui ao supermercado para realizar as compras finais para a ceia de Natal. Pensei em chegar bem cedinho, antes das oito horas da manhã, tentando driblar o caos que costuma reinar nesta época do ano. O paulistano age como se fora manada e é óbvio que muitos tiveram a mesma ideia. O movimento era intenso.

Para evitar de passar com o carrinho por caminhos congestionados, costumo deixá-lo nos corredores menos movimentados e busco o que quero o mais rápido possível. Ao passar por uma das gôndolas, reparei em um senhor que se postava diante dos pernis, com ar grave, óculos puxados para baixo no nariz, observando os preços e as especificações, atentamente, com uma lentidão totalmente discrepante em meio à exasperação das pessoas em sua volta. Mãos para trás, o homem estava só e sua atitude o isolava ainda mais da turba em seu derredor.

Fui e voltei para cá e para lá e, vez ou outra, cruzava com o mesmo senhor que, com o irremovível ar circunspecto, passeava sem carrinho a observar os produtos em suas baias. Parava, se detinha a examiná-los, voltava a andar de forma contida, olhando para os outros clientes, normalmente famílias inteiras que caminhavam em grupo, apenas para desviar os seus passos do trajeto irregular que percorriam.

Eu e a Tânia nos separamos para agilizar as compras e, ao esperá-la, continuava a perseguir com o meu olhar aquele consumidor que destoava do ambiente, já que ele não pegava nada, apesar de parecer estar interessado em muitos produtos. Acompanhá-lo, passou a ser o meu passatempo por um momento. O homem só, sem carrinho ou com alguém que o ladeasse, deixou-me desconcertado. Parecia autossuficiente o bastante para demonstrar que não precisava de ninguém que o acompanhasse.

Ao deixar de comprar qualquer item, o homem só parecia dizer que abria mão da Sociedade de Consumo. Que ele precisasse estar no meio de tanta gente para reafirmar a sua solitude e independência continua a me consumir o pensamento, como se fora um espírito de Natal (do Passado, do Presente ou do Futuro?) a denunciar o meu conformismo em obedecer aos ciclos impostos pelo Sistema

*Texto produzido em uma véspera de Natal de um ano em que as “crianças” ainda estavam em casa, em tempo indeterminado…

Imagem: Foto por furkanfdemir em Pexels.com

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelim / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi

BEDA / Moço*

dois olhos emprestados
lentes de óculos velhos partidas
as empunhava para enxergar o quadro negro
quando o senhor soube pensei que fosse brigar
surpresa comprou novos
dinheiro da vó postiça
me lembro como se fosse hoje
estranha sensação ser chamado de moço
aos 14 descendo do ônibus em pista
com cheiro de betume
asfalto novo bairro crescia
esperança acreditava que existia
vivia futuro a cada dia
escrevia intelectual de periferia
o suburbano queria ser jogador
de inocência futebol me entorpecia
obedecia regras vencer não importava
apenas jogar brincar de viver
incompetente em competir
achava que quando perdia ganhava
irritava meu time meus amigos minha família
namorava amores impossíveis
confortável por estar distante
velhas atrizes moças me seduziam
sem entrega fugia
fiquei sozinho na casa
minha mãe no bar da consolata
irmãos junto a ela
meu pai com outra mulher
punheta manhã tarde noite
ereção em classe de aula
medo de ser chamado na lousa
calça apertada pouco dinheiro
zíper arrebentado preso com alfinete
sapato velho quase rasgado
com ele jogava futebol
na hora do recreio a quadra o suor a sujeira
mas amava a menina de verdes olhos
boca calada papéis ensanguentados de tinta azul
tocos de carbono quase acabados
versos e versões de mim
que não era e era mesmo assim
cada vez mais insólito
solidamente solto sem lastro sem chão
me estranhei era ateu descria vivamente
até que um amuleto tudo mudou
um mundo novo nasceu
nasci outro pela terceira vez
percebi que segundas vezes viriam em série
pele de cobra que se come
renasceria quantas chances tivesse que morrer
mudei de escola de turma de ser
vegetariano emagreci raspei cabeça
parecia refugiado de campo de concentração
disse mãe de amigo talvez aidético pensaram
sant’ana me abençoou a crer
17 anos inapto avental até o pescoço
meninos sós professores alterados
rezavam para entrar sala de aula
punk valorização do lixo
rasgava calças desenhava camisetas
jogava fliperama pulava muro da escola
inventei dribles novos
admirava colegas de time
me descobri sem inveja
melhor as meninas separadas
no segundo ano elas voltaram
a me atormentar
busquei as impossíveis seguras
seguro não me apaixonaria
açoitado pela presença delas
descentralizado desequilibrado
cabelo arrepiado sujeito ressabiado
um dia uma delas me disse
sorriso lindo sonhei com você
perturbado não queria ser sonhado
muito menos alcançado por mãos delicadas
ouvi algumas entre línguas
que colecionavam beijos davam notas
o bobo não quis participar
do certame perdi por w.o.
crise existencial repeti ano
professora não entendeu
respondi fui medíocre
me apeguei à noiva
melhor comprometida
sem risco pensei mulher madura
apenas troca de olhares sorrisos palavras amáveis
namoro sem ser
terminou o ano para nunca mais
ou não um dia reencontro inesperado
oi casada filho pequeno
ela olhou uma última vez
antes de partir o amor que foi
sem nunca ter sido
não na minha lembrança
fui para o terceiro ano
pessoas incríveis amor platônico
bergman ao alcance
amizades para a vida toda
quase perdi a virgindade
misturei bebidas dancei sem saber andar
alcoolizado fui tarzan
acabou o ano repeti
química segunda vez
crise de identidade
cada vez maior despersonalizado não sabia
para onde ia onde estava o que faria
se faria se queria… viver
se sabia o que fosse viver
parei um ano apenas trabalhar
pensar escrever desenhar jogar
voltei terceira segunda vez
encontrei amebas revolucionárias
e inteligências conservadoras
magicamente entendi química
brincava o mais velho da turma
mosaico refeito por dentro
uniforme por fora
fiz vestibular passei em história
morri mais uma vez nasci.

Imagem: Foto por Rauf Allahverdiyev em Pexels.com

*Poema de 2021

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelin / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi

BEDA / Pais*

nos anais memoriais
de minha mãe
meus pais se casaram em bela cerimônia
ela de branco virginal
ele de preto solene
ateu na igreja
talvez quisesse outras cores
formato alternativo
sua raiva crescia
pelos grilhões que o prendia
anéis trocados
juras convencionais
primeira noite o marido diz
vou logo lhe passar o pinto
depois sairei em nome da luta política
o revolucionário se ausenta
um dois dias
volta tarde no terceiro
ela pergunta porque demorou
ele responde com um tapa
no rosto de pele macia
homem de esquerda vanguarda macho
sem contestação
de pesada mão
buscava uma parideira faz filhos
casou por causa da macumba
da esposa dizia
mulher não se confia
a deixou na periferia
com filhos casa simples
longe da família
três crianças vivas oito abortados
vida dura desesperançada
época difícil regime militar
fugia da polícia o senhor meu pai
o índio paraguaio
preso sem definido paradeiro
pequenos íamos aos quartéis
lembro do japonês
falava com mamãe mentia não sabia
pai torturado esmagado como homem
liberto do cárcere
morreu para aquela vida comunista
ajudado por madrasta kardecista
família quatrocentona
nasceu pela segunda vez
pela mão da capitalista
mamãe morreu tantas vezes
renasceu muitas dezenas
nunca a vi esmorecer
vivia a se desmerecer
trabalhou em bares
vendedora de galinhas
comprar meus livros coleções enciclopédias
limpar casas não se impedia
soube tanto tempo depois
choro choro de remorso
porque nada me tornei
ela a amar sua culpa
eu incriminado por ser amado
aos 70 pediu separação legal
o marido ausente se diz apunhalado
pelas costas
nada quis deixar à ex aos filhos seus
pediu a deus deu procuração ao diabo
roubou um milhão o advogado
restou uns caraminguás
sobrou um cara minguado
tentou surrupiar a própria família
morreu mais uma vez por última
no pau-de-arara lei civil
no choque elétrico dos torturadores
sua descendência sobrevivente
quando nos deixou fisicamente
nunca chorei
espero chorar antes de eu mesmo fenecer
então terei perdoado e me perdoarei.

Imagem por pt.pixix.com

*Poema de 2021

Participam: Alê Helga / Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Cláudia Leonardi Suzana Martins Dose de Poesia / Lucas Armelin / Danielle SV

BEDA / Assediados E Assediadores*

Poderia não comentar, mas não há como ficar isento nessa questão de assédio que tomou conta de nossas conversas deste ontem. Como sabe quem me conhece, tenho três filhas. Sempre tomei o máximo cuidado para não passar preceitos machistas, apesar de brincar com as possibilidades com a questão do sexismo. A Tânia, como muitos também sabem, é uma mulher ativa e consciente. Igualmente, mostrou através de seu exemplo, o quanto uma mulher pode se colocar como profissional e cidadã independente em nossa Sociedade que é, em vários aspectos, retrógrada.

É no âmbito familiar que vemos surgir o comportamento ultrapassado e incongruente do homem brasileiro que crê que a mulher está ali para servi-lo em todas as instâncias. No caso da moça que denunciou o caso de assédio de José Mayer sobre ela, Susllem Tonani, muitos especulam sobre a demora da denúncia. Na minha opinião, se deveu por vários motivos — a posição de poder do assediador em questão, a dúvida que surge entre o elogio puro e simples e a ação do avanço realizado, até o episódio que culminou com a decisão de levar adiante o caso, quando foi agredida verbalmente diante de colegas de trabalho — equipe técnica e outros atores.

O fato dela ter colocado a situação de forma aberta através da mídia eletrônica talvez tenha sido o recurso que encontrou porque, provavelmente, essa situação não é inédita. Ou somos ingênuos em acreditar que tenha sido o primeiro caso de assédio no âmbito de trabalho global e outros? Trabalho no meio e sei que o assédio não se dá apenas em uma direção, mas de forma inversa também, bem como de homens sobre homens e de mulheres sobre mulheres.

Então, vemos ultrapassar a situação de assédio sexista como o assédio que acontece por derivação de posições de influência — o moral —, que é, infelizmente, muito comum no ambiente de trabalho e, obviamente, familiar, na Sociedade brasileira. Dessa forma, devemos todos rever as nossas posições diante dessas circunstâncias específicas e perceber o quanto somos, muitas vezes, assediados e assediadores, em termos morais, raciais, sociais, etc. Caso investiguemos mais detidamente as relações pessoais em nossa sociedade, perceberemos o quanto devemos repensar as nossas atitudes cotidianas.

Nada disso acontecerá sem muita dor…

*Texto de Abril de 2017

Foto por Anete Lusina em Pexels.com

Participam: Lucas / Suzana Martins / Alê Helga / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Cláudia Leonardi / Dose de Poesia / Danielle SV

O Garoto Atormentado*

Corria o ano de 1986 e uma canção da banda inglesa The Smiths começou a tocar seguidamente no rádio. Depois, o videoclipe tornou-se hegemônico e, apesar de simples, o amei desde o início. O título assaltou-me feito um ladrão – The Boy With Torn In His Side. O arranjo com a guitarra de Johnny Mars me carregou, a melodia me envolveu e a voz de Morrissey se tornou a minha voz. Eu era um adolescente com a idade física de 24 anos, bastante imaturo em termos emocionais. A letra da canção, ainda que mal traduzida por meu inglês claudicante, revelava meus sentimentos mais profundos. Às lacunas incompreensíveis, preenchia com termos pessoais.

O rapaz imberbe e virgem sentia realmente como se um espinho o atravessasse de fora a fora, se bem que a tradução literal poderia ser substituída por “atormentado” ou “que carrega um fardo”. Porém, a imagem de algo a lhe causar dor a cada movimento se adaptava muito bem à minha condição. Eu estava decididamente sem rumo e pronto para empreender qualquer coisa que me salvasse de mim.

Eu tinha medo de amar. Tinha medo que o meu amor não me amasse. Como um mediano jogador de xadrez, antecipava as jogadas até certo ponto, sem conseguir mover as peças em direção à vitória. No meio do caminho, perdia a vontade de jogar ao saber que, para vencer, deveria matar o rei. E eu ainda não tinha desistido dele, como fiz anos mais tarde.

Dali a dois anos, minha vida mudaria para sempre. Encontraria o caminho para amar de uma maneira que seguiu um roteiro estranhamente conhecido, como se fosse um texto que tivesse lido na adolescência, quando era um adulto e imaginei seguir as linhas do enredo da maioria – namorar, casar, ter filhas (o argumento original previa que seriam três), casa: família.

Tal qual o garoto de Marr & Morrissey, que cria que seus olhos diriam tudo – que por trás do ódio havia um intenso desejo de amar e se entregar – que ao dissimular seus passos, deixava rastros, esperei encontrar alguém que fizesse com que me movesse em direção à grande aventura de amar. Encontrei mais gente pela trilha, como as minhas crias, que são mais e melhores do que eu. Recuperei a conexão familiar original, excetuando-se a com meu pai, que foi se deteriorando cada vez mais. Se o amor ganhou significado, sinto ser incompleto em sua abrangência. O que talvez seja inato para alguns, para mim é um andejar em direção a algo que ainda estou a aprender a viver… Ainda que tenha matado o rei, sei que não venci a partida…

*Texto de 2015