Dia De Casar*

Eu estava atrasado e decidi não tomar banho. Apesar de ter acordado cedo, parecia que o relógio decidira acelerar o seu andamento e a hora programada para o casamento chegava ao seu termo rapidamente. Estava confuso, parecendo estar em um filme em que eu era o ator e o espectador ao mesmo tempo.

Tinha ido buscar os familiares da Tânia no Terminal Rodoviário do Tietê e fiz uma confusão tão grande no retorno para a minha casa que deviam estar imaginando o péssimo negócio que ela estava fazendo ao se casar comigo, já que os “conduzia” de Metrô e ônibus porque não tinha carro por falta de grana para isso, como nem sequer tinha habilitação para dirigir (como, aliás, até hoje), por motivação “ideológica”.

Assim, logo passado esse episódio, nem sei se comi alguma coisa e já se aproximava o momento em que deveria vestir o meu terno branco. Sabia que a Tânia estaria com um vestido rosa. Passados vinte e seis anos da ocasião, já não me lembro se o vira antes da cerimônia ou não, mas me recordo que o achei muito bonito ao vê-lo em seu corpo, que ainda não denunciava a gravidez de seis meses da Romy.

Conquanto fosse normalmente magra, ela acabou por manter o mesmo peso, devido ao um terrível e constante enjoo que a acompanhou durante a gestação. No entanto, naquele dia, irradiava um belo sorriso e eu me percebi estranhamente bem, para alguém que vivia a cultivar certa melancolia existencial. Além disso, o termo precariedade poderia caber bem em minha situação financeira naquele período, já que me encontrava desempregado. Os meus pais pagaram todas as despesas do enlace. Nunca os vira tão unidos em prol de um objetivo a realização da cerimônia e da festa.

O meu pai convidou um famoso harpista paraguaio, Luís Bordon, juntamente com o seu filho, para tocarem na entrada dos noivos e os meus irmãos escolheram a gravação em fita-cassete de “Smoke Gets In Yours Eyes”, com The Platers, para a saída. A minha mãe fez questão de pedir ao Juiz de Paz que proferisse todas aquelas palavras dos discursos realizados pelos padres. Na oportunidade, quando este pediu para que eu repetisse a passagem “na saúde e na riqueza”, decidi introduzir um toque pessoal e emendei: “na riqueza e, muito mais provavelmente, na pobreza”… Quem assistia, riu, e acho que consegui deixar todos mais a vontade durante um ato que parecia tão solene.

Quando chegou o final do dia 13 de maio de 1989, aos 101 anos da Lei Áurea, trocamos os áureos anéis em cada um dos nossos dedos anulares. Quando deitamos em nossa cama, estávamos tão cansados que apenas fechamos os nossos olhos e dormimos pesadamente. O casamento já estava consumado há algum tempo. A verdadeira aliança de nossa união igualmente descansava no ventre da minha mulher, então oficialmente desposada…

*Texto de 2015

Clubes De Leitura

Em outra vida, antes do advento da Pandemia de Covid-19, Lunna Guedes, editora da Scenarium, convidou algumas pessoas para montar um grupo que se dispusesse reunir uma vez por mês para debater sobre um livro proposto por ela um clube de leitura. Uma das obras indicada por ela foi “O Clube De Leitura De Jane Austen”, de Karen Joy Fowler, sucesso de vendagem em todo mundo e que acabou por gerar um filme do mesmo nome, também muito bem aceito.

A trama, que se passa na Califórnia, começa quando Jocelyn, uma criadora de cães da raça Leão da Rodésia, decide montar um clube de leitura para discutir as obras de Jane Austen. Ela escolhe a dedo os integrantes: Sylvia, sua melhor amiga desde quando as duas tinham 11 anos; Allegra, filha de Sylvia; Prudie, professora de francês na escola local; a falante Bernadette, conhecida por ter se casado várias vezes; e Grigg, o único homem autorizado a participar.

Ao longo de seis meses, o grupo se reúne para conversar sobre um livro de Jane Austen de cada vez. Eles começam na casa de Jocelyn, com “Emma”; passam para “Razão e sensibilidade”, escolha de Allegra; emendam em “Mansfield Park”, por sugestão de Prudie; se encontram na casa de Grigg para comentar “A abadia de Northanger”; debatem “Orgulho e preconceito” enquanto escutam Bernadette; e encerram com “Persuasão”, voltando à residência de Sylvia.

Enquanto mergulha no universo de Jane Austen, o sexteto vive suas próprias histórias. Os leitores acompanham dramas como o divórcio de Sylvia, a morte da mãe de Prudie e o rompimento do namoro de Allegra. Mas nem tudo é tristeza: as irmãs mais velhas de Grigg dão uma ajuda para que ele se aproxime de sua paixão secreta; Bernadette encontra um novo marido e Jocelyn tem a chance de redescobrir o amor.

A condução da trama se faz na terceira pessoa, a qual não consegui identificar, como se qualquer um dos participantes do clube pudesse ser o narrador. Ou como se cada um deles assumisse a narração a cada etapa das leituras das obras de Jane Austen, que permeia os acontecimentos em paralelismos com a vida das personagens. A escrita dos livros da mulher que viveu na passagem do Século XVIII para o XIX, tem sido cada vez mais incensada como atemporal, apesar das tramas se passarem duzentos anos antes. A fina ironia com a qual construiu suas narrativas a fez crescer aos olhos de críticos e estudiosos ao longo do tempo, além de atrair leitores aficionados.

Não apenas por lembrá-la, mas também por me fazer lembrar de uma época em que podíamos circular, aprender, congregar, conversar, abraçar pessoas e conhecimento, escolhi “O Clube De Leitura De Jane Austen”. As épocas mudam, porém certas circunstâncias são similares, não importa se estamos nos séculos XVIII ou XXI. Atualmente, neste quadrante, estamos segregados a pequenos grupos, normalmente familiares. Assim como Jane Austen conviveu em um círculo restrito de pessoas, prioritariamente familiares. Poucos conseguiriam criar, como a escritora inglesa o fez, algo que se firmasse tão ostensivamente bom com tão poucos detalhes à disposição. Ela passeia pela alma humana, ao mesmo tempo que brinca com as estruturas comportamentais de sua época, ultrapassando gerações.

Estou com saudade de um clube de leitura que tenha pessoas ao meu redor e não apenas pela tela de um computador…

Texto participante das postagens de Interative-se, com a participação de

Alê Helga / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Gouveia / Isabelle Brum