Sabor De Veneno*

O ano, 1979. Aos 17 anos, eu era um assíduo telespectador da TV2 Cultura de São Paulo e via programas dos mais variados. De especiais de teledramaturgia, como Teatro 2; de variedades, como Ação Super 8; de entrevistas, como Vox Populi; a musicais, como MPB Especial e iniciativas como o 1° Festival Universitário da Canção, que se transformou num marco do movimento musical chamado Vanguarda Paulista.

Talvez saudoso dos festivais dos anos 60 e 70 da TV Excelsior e da TV Record, busquei assistir todas as apresentações. Quando surgiu no palco a Banda Sabor de Veneno, comandado por Arrigo Barnabé, a sensação de estranhamento, a princípio, deu lugar a um crescente entusiasmo, culminando em uma irresistível impressão de que via o sol nascer de novo, em plena noite, apesar de presenciar tudo por um aparelho televisor em preto e branco. Foram duas apresentações Infortúnio” e “Diversões Eletrônicas que mostraram outra possibilidade de se fazer música brasileira.

Nos vídeos adiante, estão explicitadas as influências que dirigiram as construções dos temas e as repercussões que obtiveram do público presente. Eu, por mim, celebrei essas pérolas musicais como se fossem clássicos instantâneos. Quem tiver a paciência de assistir os vídeos até o final talvez estranhem e se perguntem a razão que leva alguém que cita como exemplos de influências importantes de representantes da MPB Maysa Matarazzo, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Elis Regina a versar sobre algo totalmente diferente dessa matriz de maneira tão entusiasmada. O critério que utilizo é a profundidade da repercussão que causou em minha visão artística.

Foi um verdadeiro marco que percebo como fundamental, independente da altíssima qualidade de várias outras produções que os compositores brasileiros apresentaram ao longo dos últimos cem anos, na linha popular. “Diversões Eletrônicas” remete à popularização dos locais onde havia máquinas de jogos eletrônicos, como o fliperama e outros, além de mecânicos, como pebolim, que eu e meus colegas do colegial frequentávamos com assiduidade e alegria. Talvez, com frequência demais e alegria demais.

Ao final, um adendo sobre Aizita Nascimento, a apresentadora do festival. Tinha voz bonita e postura de rainha. Era a única presença negra na Mídia brasileira de então no setor jornalístico, que eu me lembre. Formada em Enfermagem em 63, participou do concurso de Miss Guanabara, tornou-se vedete, foi uma das Certinhas do Lalau, trabalhou em Teatro e Cinema, além de programas e novelas de TV. No final dos anos 80, deixou a vida artística e voltou a exercer a sua profissão primordial, o que faz até o dia de hoje. Linda, pioneira e corajosa.

Infortúnio
Diversões Eletrônicas

Quando Roberto Carlos Cantou Contra o Sistema

Em 1967, em plena Ditadura Militar, um ano antes dela apresentar as piores facetas de um regime de exceção, com a instauração do AI-5, que viria suprimir direitos e aprofundar a repressão, aconteceu o III Festival da Música Brasileira, veiculado pela TV Record. Roberto Carlos, então cantor e compositor de grande penetração popular, graças ao Movimento da Jovem Guarda, decidiu participar com uma composição de Luiz Carlos Paraná.

Paraná era autodidata no violão e foi lavrador até os 19 anos no interior de São Paulo. No Rio de Janeiro, chegou a dividir quarto de pensão com João Gilberto. Além de compositor, ficou famoso como proprietário do Jogral, bar que movimentou a noite paulistana da época e gerou a gravadora Jogral, embrião da “Discos Marcus Pereira”, outro marco no meio musical. Era a segunda participação de Luiz Carlos Paraná em um festival. “De paz e amor”, parceria dele com Adauto Santos, ficou em segundo lugar no ano de 1966, interpretada por Elza Soares.

Roberto, apesar de sua origem “espúria”, decidiu enfrentar as possíveis críticas da plateia-base dos festivais, formada por estudantes de perfil intelectualizado, com viés ideológico de vários matizes. Aquela era a arena onde expressavam suas ideias e preceitos.  “Maria, Carnaval E Cinzas” era um samba belo e triste, que versava sobre a mortalidade infantil, tão comum entre a população carente da época. Como filho de agricultores, Paraná vivera de perto a realidade comum onde grassava a pobreza, tal qual no morro que Maria nascera. O indecente é que, depois de meio século, os índices ainda sejam altos em várias regiões do País. 

Em um festival onde compareceu “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam; “Domingo No Parque”, de Gilberto Gil; “Roda Viva”, de Chico Buarque e “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, a quinta colocação obtida pela canção interpretada por Roberto Carlos, foi um grande feito. Mais adiante no tempo, Roberto voltaria a mostrar seu posicionamento em relação à Ditadura de forma igualmente velada, ao lançar “Debaixo Do Caracol Dos Seus Cabelos”, em 1971. Nessa canção, em letra pungente, ele homenageia Caetano Veloso, então exilado em Londres, que “deixa sangrar no peito uma saudade e um sonho” de “voltar prá sua gente”.

Abaixo, a letra da música e o vídeo de sua apresentação no III Festival da Música Brasileira. Entre vaias e aplausos, Roberto Carlos enfrenta-canta com serenidade e afinação, o ruidoso público. Climático ao extremo, esse foi o festival onde Sérgio Ricardo, ao interpretar “Beto, Bom de Bola”, contrariado com a reação dos expectadores, quebrou o violão e jogou o instrumento ao público. O resto é História…

Maria, Carnaval e Cinzas

Nasceu Maria, quando a folia
Perdia a noite, ganhava o dia
Foi fantasia, seu enxoval
Nasceu Maria, no carnaval
E não lhe chamaram, assim como tantas
Marias de santas, Marias de flor
Seria Maria, Maria somente
Maria semente de samba e de amor

Não era noite, não era dia
Só madrugada, só fantasia
Só morro e samba, viva Maria
Quem sabe a sorte lhe sorriria?

E um dia viria de porta-estandarte
Sambando com arte, puxando cordões
E em plena folia decerto estaria
Nos olhos e sonhos de mil foliões

Morreu Maria, quando a folia
Na quarta-feira, também morria
E foi de cinzas, seu enxoval
Viveu apenas um carnaval

Que fosse chamada então como tantas
Marias de santas, Marias de flor
Em vez de Maria, Maria somente
Maria semente de samba e de dor

Não era noite, não era dia
Somente restos de fantasia
Somente cinzas, pobre Maria
Jamais a vida lhe sorriria

E nunca viria de porta-estandarte
Sambando com arte, puxando cordões
E não estaria em plena folia
Nos olhos e sonhos de seus foliões

E não estaria em plena folia
Nos olhos e sonhos de seus foliões

Maria, Maria, Maria