04 / 03 / 2025 / Ainda Estou Por Lá

No domingo passado, dia 2, após realizar a sonorização da Matinê do Clube Círculo Militar de São Paulo, cheguei em casa na expectativa da transmissão pela TV da entrega dos Oscars. Época de Carnaval, um país devotado à festa de Momo, no entanto as atenções também estavam voltadas a milhares de quilômetros do Brasil, em Los Angeles, EUA, local da outra festa, mais formal.

O Brasil tem uma história bastante antiga com a arte do movimento. Inventado oficialmente em 1895 pelos irmãos Lumière, a primeira exibição de cinema no Brasil não tardou a acontecer. Em 8 de julho de 1896, na Rua do Ouvidor (Rio de Janeiro), numa sala alugada do Jornal do Commercio, foram projetados oito filmetes de cerca de um minuto cada, retratando cenas pitorescas do cotidiano de cidades da Europa

Apenas um ano depois já existia no Rio uma sala fixa de cinema, o Salão de Novidades Paris, de Paschoal Segretto. Atualmente, considera-se que o primeiro filme gravado no País foi Chegada do Trem em Petrópolis, de 1897. Esse filme grava uma estação, em Petrópolis, a chegada de um trem que carregava o Presidente Prudente de Morais. Assim como esse, a maioria dos filmes eram documentais.

O filme “Ainda Estou Aqui“, de Walter Salles foi indicado a três Oscars — melhor filme, melhor filme estrangeiro (ao qual venceu) e melhor atriz, com a magnífica Fernanda Torres, que interpretou a incrível Eunice Paiva, mulher de Rubens (o sensacional Selton Mello). Ela é mostrada na imagem acima, após as cortinas da sala, que recebe a claridade e desnuda a paisagem externa, serem fechadas por um dos milicos do Regime Ditatorial. Essa cena, especialmente, quando assisti ao filme, me trouxe dolorosas lembranças. Ao revê-la, tive uma estranha sensação de estremecimento e o sentimento era que eu ainda estava lá, naquele dia e lugar.

Foi o dia em que três desses homens trouxeram o meu pai para fazerem uma busca de armamentos do grupo no qual ele militava, do Partido Comunista Paraguaio. Logo que eu o vi, corri para abraçá-lo. Incontinente, me afastou de seus braços. Criança dos meus nove, dez anos, recebi aquilo como uma algo incompreensível, que me magoou… tanto, que fiquei por muitos anos avesso a abraços. Ação que só retomei quando por volta dos 27 anos, comecei a namorar a minha esposa. Prática que foi reforçada com a chegada das minhas três filhas.

Ver uma história com a qual tenho vínculos emocionais evidentes ser reconhecida por sua violenta delicadeza,, em que somos convidados a estar com uma família que tem retirada de seu núcleo àquele sobre o qual girava, engrandecendo a presença austera e forte da mulher que a sustentou e que tinha tudo para desmoronar, incluindo o acidente que deixou o garoto Marcelo Rubens Paiva tetraplégico. E foi através de seu registro em livro que essa história magnífica de enfrentamento da realidade, exemplo de resiliência de seus membros, além da sobrevivência da memória.

Aproveito para homenagear a minha própria mãe que perdeu o marido para a Ditadura, apesar dele continuar vivo, ainda que tenha sofrido todas as modalidades possíveis de tortura ensinada pelos militares americanos no cerne da Operação Condor. Nunca voltou inteiro. Como a vida é cheia de contradições, estou prestando serviço num lugar que os militares patrocinam, comemorando um prêmio oriundo do mesmo País que apadrinhou a Ditadura por aqui.

BEDA / Heterocrômico

Eu sempre fui fã do Homem Que Caiu Na Terra, ou melhor, do ator que o interpretou David Bowie , também compositor, cantor, músico, produtor, homem à frente de seu tempo. No filme, ele interpreta um papel que parece ter sido feito especialmente para ele: “um ser andrógino, impúbere, alto para os padrões terráqueos, delicado, magro, polido e que tenta se adaptar à vida terrestre para sobreviver entre os humanos”.

Quando vi o filme, eu me vi na personagem, apesar das característica físicas discrepantes. Andrógino, impúbere, era. Mas me faltava a delicadeza e a polidez num garoto que era açoitado pelas condições que me cercavam, das quais era obrigado a me defender. Apenas mais tarde, percebi que por mais um detalhe me assemelhava à Bowie heterocromia. A minha, é natural, a dele, provocada por um acidente.

No colégio, aos 15 anos, a sua pupila esquerda ficou permanentemente dilatada depois de levar soco de um colega. Um olho ficou azul claro, enquanto o outro, escuro. No meu caso, o direito é castanho claro levemente esverdeado, enquanto o outro, verde escuro.

Da violência, surgiu uma característica que David Bowie adicionou à sua postura alienígena não apenas no filme de 1976, mas também como artista performático através das suas personas como Ziggy Stardust, Aladdin Sane, Halloween Jack, The Thin White Duke, Major Tom e O Profeta Cego…

Para mim, a heterocromia é apenas mais um ponto de contato que me ajudou a escrever este texto. A personagem do filme, Thomas Jerome Newton veio de Anthea para a Terra em uma missão desesperada para salvar os poucos habitantes que ficaram em seu longínquo e desconhecido planeta.

Para isso, precisava construir aqui uma nave que pudesse trazer os 300 de sua espécie que ainda viviam em um planeta onde a água acabou e os recursos são cada vez mais escassos. O tema do livro de 60 anos antes, de Walter Tevis (1963) e quase 50, do filme de Nicholas Roeg, parece reverberar em nossa situação planetária atual. O alienígena David Bowie e, junto com ele, as suas personas, se foram. Nesse andamento, mais em algumas décadas, a sua obra perecerá, junto com todos da nossa espécie…

Mulher De Vermelho Fogo

Patrícia, Artur, Júlia e Vicente personagens de Mulher De Vermelho Fogo

Há oito anos, voltava de uma visita técnica a um espaço onde faria um evento através da Ortega Luz & Som. Na direção do carro, um colega de trabalho de muitos anos, músico e organizador da banda que faria a apresentação, parou no semáforo da Teodoro Sampaio, quase esquina com a Dr. Arnaldo. Pela faixa de segurança vi passar uma moça de presença diáfana vestia um vestido leve, esvoaçante, cabelo solto. A roupa que a encobria não evidenciava as formas de seu corpo, mas a sua presença destoava do trânsito caótico como se fosse uma vestal em meio a guerra, exalando beleza por todos os poros. Fiquei impressionado pela aparição e disse ao meu amigo: “Olha, que linda!”. Ele respondeu: “Ah, eu conheço. Trabalha lá…”. Pensei: “Caramba! Parece uma das minhas filhas!”

O meu amigo, tecladista, trabalhava em uma casa de encontros, tocando em uma das bandas que se revezavam na animação do ambiente. Quando soube que ela era uma garota de programa, vi reforçada a minha convicção de que preconceituamos pela aparência por mais libertários que pretendamos ser. Ali, estava uma moça naturalmente bela, que poderia ser qualquer uma, que chamava a atenção por caminhar como se o mundo à sua volta não existisse. Porém, ele existia. E o mundo faz isso com as pessoas — as devoram e as vomitam equalizadas. Comecei a imaginar as circunstâncias que levaria alguém a entrar para esse universo estranho, fascinante, perigoso e, apesar de evidente, oficialmente rejeitado. Nessas circunstâncias, surgiu Garota De Programa em que conto a história de Patrícia. Nele, não julgo, mantenho uma voz passiva e apenas passo adiante uma história que parecia possível, mas não provável.

Até que, após publicá-la em 2013 no Facebook, alguém me revelou pelo Messenger: “Cara, você contou a história da minha vida!”. Fiquei entre emocionado e extasiado. Havia tocado a sensibilidade de alguém com algo surgido em minha imaginação, ainda que baseado em informações aleatórias. Quando Weslei Mata me perguntou se eu tinha algum texto que pudesse vir a ser trabalhado por ele para se transformar em roteiro para cinema, ofereci aquele que consubstanciou-se em Mulher De Vermelho Fogo — tendo Patrícia, a única personagem que mantém o nome original no curta, como centro da trama.  No roteiro, Wes (como o chamo) elevou o tom do confronto entre as realidades, revelando emoções exacerbadas dos envolvidos até um final explosivo e surpreendente. No meu conto, ainda que também tenha um desfecho inusitado, é diferente, mas não incomum, como vim a descobrir.

Participei como observador-consultor de parte da gravação do drama. Foi uma experiência enriquecedora. A qualidade interpretativa e a entrega dos atores — Fernanda Valverde, Nalin Júnior, Theo Hofmann e Bárbara Pochetto; aliada ao talento dos realizadores — do diretor Weslei Mata e da cinegrafista Camila Marchini — gestou uma produção cativante pelo teor humano e carga erótica, mesclada à violência que irrompe gerada por sentimentos confusos das personagens — amor, ódio, ciúme, inveja, desejo — em uma produção que será apresentada brevemente pela St. Jude Filmes. Aguardemos…

Escritores Homens

Homens que escrevem são diferentes de homens que não escrevem? Por terem a sensibilidade de manipular palavras na construção de mundos particulares que tentam explicar o mundo comum ou em comum com os outros seres viventes, serão mais abertos aos sentimentos mais nobres a ponto de serem especiais? Ou quando adentram nas zonas sombrias da mente humana, também são tão sombrios quanto criminosos comuns?

Um desses homens, Ernest Miller Hemingway, nasceu em Oak Park (Illinois), a 21 de Julho de 1899, foi um escritor  que trabalhou como correspondente de guerra em Madri durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Esta experiência inspirou uma de suas maiores obras, “Por Quem Os Sinos Dobram“. Ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi viver em Cuba. Em 1953, ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção por “O Velho E O Mar” e, em 1954, ganhou o prêmio Nobel de Literatura. Em 02 de Julho de 1961, se suicidou com uma espingarda, em Ketchum (Idaho), um pouco antes de completar 62 anos de idade e três meses antes de eu nascer.

Escritor genial e genioso, o filme baseado em seu romance homônimo — Por Quem Os Sinos Dobram — passado na televisão quando eu era adolescente, me apresentou Ingrid Bergman, por quem me apaixonei. Tanto que uma das minhas filhas ganhou o nome dela em homenagem. No filme, seus olhos faiscantes e cabelos curtos me deixaram atordoado. Fazia, aos 32 anos, o papel da jovem militante espanhola que luta ao lado da República, Maria, pela qual Robert Jordan, um americano que vai até a Espanha para lutar contra a ditadura, se apaixona. Sua missão é explodir uma ponte. Mas ao se apaixonar, começa a questionar sua perigosa tarefa e seu lugar em uma guerra estrangeira.

No romance, Hemingway usa como referência sua experiência pessoal como participante voluntário da Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos e faz uma análise ácida, com críticas à atuação extremamente violenta das tropas de ambos os lados: os Nacionalistas, auxiliados pelo governo italiano e nazista alemão e os Republicanos, pelas brigadas internacionais e União Soviética Critica também a burocratização e o panorama de privilégios rapidamente instaurado no lado da República.

Mas, acima de tudo, o livro trata da condição humana. O título é referência a um poema do pastor e escritor John Donne, que se encontra na obra “Poems on Several Occasions” que em português intitulou-se “Meditações“. Invoca o absurdo da guerra, mormente a guerra civil, travada entre irmãos. “Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”. Em várias passagens do texto, os personagens se desconhecem ao desempenhar papéis bizarros que se veem forçados a assumir durante a guerra e fraquejam, ao ver nos inimigos seres humanos que poderiam estar de qualquer um dos lados da guerra.

Ao longo da vida do escritor, o tema do suicídio aparece com frequência em escritos, cartas e conversas. Seu pai se suicidou em 1929 por problemas de saúde e financeiros. Sua mãe, Grace, dona de casa e professora de canto, o atormentava com a sua personalidade dominadora. Ela enviou-lhe, pelo correio, a pistola com a qual o seu pai havia se matado. O escritor, atônito, não sabia se ela queria que ele repetisse o ato do pai ou que guardasse a arma como lembrança. Aos 61 anos, enfrentando problemas de hipertensão, diabetes, depressão e perda de memória, Hemingway decidiu-se pela primeira alternativa.

Todas as personagens deste escritor se defrontaram com o problema da “evidência trágica” do fim. Eu, pessoalmente, sou adepto pela opção do suicídio como direito, se a pessoa tiver plena consciência de seus atos. Como no caso da eutanásia, por doença sem remissão. Porém, creio que se deva buscar todas as alternativas possíveis até que alguém “são” escolha a morte como solução. Porém, não sou juiz a ponto de culpar quem o faça por considerá-lo covarde. Para muitos, na verdade suicídio é um ato de coragem. No caso de Hemingway estimo que tenha sido por pura vaidade… apenas não sei avaliar se é um motivo tão bom quanto qualquer outro.

Maratona da Interative-se de Maio, com

Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Alê Helga / Isabelle Brum

Perdido N’As Ondas

As Ondas, de Virginia Woolf

As Ondas”, de Virginia Woolf, com tradução de Lya Luft, estava perdida entre “Frankestein”, Mary Shelley e uma coleção de contos comentados de Clarice Lispector. Perdida, nem tanto. Estava na sessão de autoras femininas da minha biblioteca. Tenho outras escritoras espalhadas nas coleções que compulsoriamente comprava, ainda que não lesse na mesma frequência. Um dia o faria… era o que pensava. Não cogitava que deixasse de ler em nenhuma hipótese. A voragem da vida se encarregou de alterar essa visão…

Antes de vir às minhas mãos, “As Ondas” estiveram em outras paragens. Esse exemplar estava entre alguns dos livros que encontramos, meu pai e eu, no lixo que buscávamos com a nossa Kombi, na região dos jardins e outras regiões nobres de Sampa. Eu era muito novo no início dos anos 70 13 ou 14 anos. Como já gostasse de Machado, achei que pudesse absorver o sal do mar de Woolf, da qual já ouvira falar por causa de um filme lançado por Elisabeth Taylor e Richard Burton, lançado em 1966 e o qual assistira como atração noturna da TV de então.

O interessante é que a Ditadura até deixava passar filmes pesados como esse, mostrando a degradação de casais rodeados de jogos perversos, manipulações, revelações da intimidade abjeta, regadas a álcool. Contanto que não contestassem o Regime Ditatorial, tudo era permitido. No cinema brasileiro, as pornochanchadas prosperaram, enquanto o cinema engajado socialmente da década anterior, sofreu um tremendo ocaso.

Voltando às “As Ondas”, pouco me lembro da trama. Quis voltar a lê-la várias vezes. Não o fiz. Queria contrapor as sensações que tive com as que teria agora, mais velho. Na época, eu me senti envolvido pelas imagens que Woolf produzia. Chego a me lembrar de um banho de banheira descrito de tal maneira que se me impregnou em minha mente. Vou reencontrar essa passagem eventualmente, mas não por enquanto. Passeio os olhos por algumas páginas e em uma, escolhida a esmo, encontro:

“— Perdi minha indiferença, meus olhos vazios, meus olhos em formato de pera, que espreitavam raízes. Já não sou janeiro, maio ou qualquer estação, mas estou toda tramada numa fina rede ao redor do berço, minha criança. Durma, digo, e sinto despertar dentro de mim uma violência mais selvagem, sombria, que abateria com um só golpe qualquer intruso, qualquer estranho que irrompesse neste quarto e acordasse quem dorme”.

Maratona literária Interative-se de maio
Alê Helga – Isabelle Brum – Mariana Gouveia – Roseli Pedroso / Lunna Guedes