BEDA / Marido De Aluguel

O texto anterior acabou por me fazer refletir sobre o termo genérico de “dono de casa”, derivado do feminino “Dona de Casa“. Este, talvez tenha sido criado para dar um lustro de nobreza para designar uma atividade permanente, integral e desgastante de dar suporte à casa e atenção ao amo e à descendência. Merecia uma consideração mais profunda e sobre esse tema tratarei aqui. De forma correlata, a moderna atividade de “Marido de Aluguel” também suscita considerações nas quais não consigo deixar de perceber a ironia que carrega em todos os sentidos.

Eu vejo passar veículos com esse slogan que pressupõe a realização de tarefas que apenas o homem faria – conserto de torneiras danificadas, troca de chuveiros, restauro da fiação elétrica, colocação de parafusos e pregos, pintura, pequenas obras de alvenaria e, por aí, vai. Em casa, a Tânia realiza algumas dessas tarefas, filha de um homem que a ensinou, por exemplo, a erguer uma parede.

Eu não deixo de realizar outras tantas dessas atividades, mas não me sinto mais marido ou mais másculo por isso, como não me sinto mais feminino por lavar, estender e passar roupa, cozinhar, lavar panelas, talheres e louça, regar as plantas, cuidar dos bichos, varrer e passar um pano no chão ou arrumar a cama. Ajudante de minha mãe quando garoto, declarava a ela que queria me tornar um “homem total”. A pequena análise que faço diz respeito a como o Patriarcado exerce sobre nós, homens e mulheres uma dominação absurda.

Emprestando da matriz patriarcal determinadas formulações, fico a imaginar se o termo “Marido de Aluguel” não ensejaria interpretações dúbias e piadas de bar feitas por homens e mulheres que atuam sobre a égide do Patriarcado, que perpassa todas as ações sociais de adultos que não conseguem escapar ao seu domínio. Sempre se aventou entre os deveres da esposa o de atender sexualmente ao marido, assim como a do marido em “comparecer” ao ato como a comprovar a sua masculinidade. Em conversas de botequim a função do profissional poderá ser tratada mais extensivamente, bem como se dizia em tempos idos dos filhos gerados na visita de leiteiros ou padeiros.

O que para o homem significaria carregar a peja de marido enganado, para a mulher talvez fosse como uma válvula de escape da dominação machista imposta por casamentos arranjados, sem conexão de gostos ou pelo abandono em vida por um companheiro que a considera apenas a parideira de seus filhos e que muitas vezes instituíam lares ou relações paralelas. Num texto curto como este, que é mais provocativo do que elucidativo, as questões do nosso envolvimento com as consequências da máster cultural distorcida por milênios de abusos de um gênero por outro, simplesmente por carregar maior força física não são resolvidas, somente são testemunhadas.

E me incomodam…

Participam do BEDA:
Claudia Leonardi / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Darlene Regina

O Velho

O Velho e o Belo

Ainda tenho chama, mas fiquei velho. Estou com a família desde o seu surgimento, quando o casal ainda morava em outra casa. Há mais de trinta anos. Passadas essas mais de três décadas, não os condeno por me deixarem de lado. Primeiro, falhei em uma ou duas das minhas capacidades. Em outra função importante, o meu rendimento diminuiu. Perdi pedaços. Em nossa sociedade, valemos o quanto rendemos para os outros e podemos devolver o que investem em nós. Há pais que fazem isso com os filhos. Acham importante que lhes sejam ensinadas as regras impostas pelo Mercado. Porque ser útil ao Sistema é o que lhes conferirá valor como pessoas.

Acho que tentaram buscar quem me curasse. Aproveitariam para me deixar mais apto, porém não encontraram quem fizesse o trabalho. Foi o que ouvi dizer, mas não descarto que a atração por alguém mais novo que fosse lustroso, bonito, moderno e de chama mais brilhante tenha pesado para que optassem por ele. Assim que a decisão foi tomada, passou um filme em minha frente. As crianças crescendo, as conversas na cozinha, as comidas que ajudei a fazer, os bolos, pães e assados que produzi. Os sorrisos que inspirei. A intimidade de gente que me tinha quase como um confidente. Em várias ocasiões, sobre mim deixaram cair algumas lágrimas. Sei que sentirão minha falta. Talvez, saudade. Fiz parte de fatos, situações, momentos que estão registrados nas fotos-memórias pessoais e físicas.

No sábado, chegou a hora de desconectar minha comunicação com o fornecimento do gás. Fui retirado do lugar no qual permaneci por quase trinta anos, desde que mudamos para cá. Fui deixado no lado de fora, no quintal. Não pude ver o Belo ser colocado no meu antigo nicho. Ainda cheguei a ouvir que há planos de melhorar aquele espaço para torná-lo mais acolhedor e prático, fazendo jus ao novo ocupante. Se aprendi algo com os seres humanos, é que fazem o que é melhor para eles, sem se preocuparem com detalhes menores. É quase natural que descartem algo que não cumpra adequadamente o que foi criado para cumprir. Como aquecer, cozinhar, ferver… Simbolicamente, pode se dizer que eu, um velho fogão, fui tratado como gente…