Sampa, 470 Marcas / Os Degredados

Estávamos vivendo os anos de chumbo da Ditadura Militar e tudo era “permitido” por parte das forças policiais e policialescas. Como o surgimento dos Esquadrões da Morte. Viventes da Periferia como eu, sabiam que a distância do poder tornava o lugar onde morávamos terra de ninguém. Ou nem tanto, a minha mãe certa vez foi escoltada pelos “bandidos” da rua ao descer do ônibus, ao voltar do trabalho: “Hoje a barra tá pesada, Dona Madalena!”.

Eu tinha acabado de fazer 13 anos em outubro de 1974, quando ocorreu um dos episódios que mais marcaram a minha vida. O guarda-chuva da impunidade abarcava todas as ações das “forças de segurança” como a que aconteceu no dia 19. Policiais do Departamento Estadual de Investigações Criminais cercaram a região do Marco Zero da cidade de São Paulo e apreenderam 97 menores, supostamente infratores.

Certamente, a maior infração que cometiam era a de estarem totalmente abandonados à própria sorte, com momentos descontraídos, como se banharem nas fontes da Praça da Sé. Não havia nenhuma política pública então, assim como poucas foram as iniciativas que se desenvolveram ao longo dos anos que chegasse à raiz do problema para minorá-lo.

Assim como numa ficção distópica, a chamada Operação Camanducaia dividiu o grupo de crianças em dois ônibus para rumarem pela Rodovia Fernão Dias no sentido de Minas Gerais. Eu nem imagino qual teria sido o critério na escolha de Camanducaia para despejarem – literalmente – os jovens nas imediações da pequena cidade. Os policiais civis fizeram os meninos tirarem as suas roupas, rasgaram os documentos dos que tinham, os espancaram com porretes e, sob ataques dos cães, os jogaram por uma ribanceira.

Nus, feridos, e sofrendo com o frio, os menores vagaram por estradas da região, até alcançarem o perímetro urbano da cidade, onde causaram, inicialmente, pânico entre os moradores. O telefone da delegacia local ficou congestionado pela enxurrada de ligações de moradores que relatavam a invasão de um grupo de jovens nus à cidade. Alguns atacaram um ônibus de turismo, outros invadiram estabelecimentos comerciais. Capturados, as prostitutas da cidade, compadecidas, arranjaram roupas para os meninos. Informada, a Secretaria Pública de Minas Gerais os colocaram num ônibus de volta para a São Paulo.

Essa ação gerou tremenda indignação na população, além de muita repercussão pela Imprensa. Para acalmar os ânimos, o então Secretário de Segurança Pública, o famigerado Erasmo Dias, instalou uma sindicância que, um ano após, foi encerrada sem nenhuma punição aos envolvidos. Essa tentativa de resolver o problema da marginalidade infantil, varrendo os garotos marginalizados para debaixo do tapete como fossem os responsáveis por suas escolhas, demonstra a miopia das autoridades. No levantamento feito da condição social das vítimas, apurou-se que cerca de 15 deles haviam sido abandonados pelos pais.

A Operação Camanducaia está para fazer meio século em 2024. Depois de todo esse tempo, o desafio na solução quanto ao desequilíbrio social que estimula o aumento da crise humanitária em plena cidade mais rica do País foi ampliado com o paulatino aumento no uso de entorpecentes mais potentes que deterioram a condição física e psíquica dos jovens a ponto de se tornar quase irreversível. Se na época do triste episódio, os chamados Trombadinhas causavam pânico no Centrão, atualmente a criminalidade infantil se espraiou por outros bairros com o uso de armas e veículos, como motos roubadas.

Enquanto aqueles adictos dos Anos 70 cheiravam cola, hoje o mal supremo são as drogas da linha K-2, K-4 e K-9 – substâncias que produzem efeitos agudos no Sistema Nervoso Central com manifestações clínicas compatíveis com distonia aguda, catatonia e rebaixamento do nível de consciência, com consequentes alucinações, paranoia e agressividade.

Quando assisti a “Pixote – A Lei Do Mais Fraco” (1981), de Hector Babenco, fiquei impactado pela crueza da narrativa. No entanto, percebi vários pontos de contato com a realidade que vivia na Periferia. Muitos de meus conhecidos da época que jogavam bola comigo, tiveram o mesmo destino do ator Fernando Ramos. Estigmatizado por ter feito a personagem central, foi morto pela Polícia Militar de São Paulo, numa ação nebulosa. Pixote o tornou célebre e um símbolo que precisava ser eliminado.

A existência de resquícios do Regime Militar na administração da segurança pública em São Paulo demonstra o quanto são repetidas fórmulas que não conseguem lidar com as mazelas do Sistema, apenas combatendo os seus efeitos com violência, sem resolvê-los. Enquanto a pilha de corpos de vítimas e vitimados aumenta de tamanho, especulo que chegará o dia em que Padres Lancelottis, sejam quantos forem, continuarão a enxugar gelo, a limparem feridas que nunca cicatrizarão. E os degredados da consciência social caminharão feito zumbis pelas ruas e adentrarem pelas fontes d’água da Praça da Sé… que já não existem mais…

Sobre Meninos E Homens*

Meninos jogando de bolinha de gude. Rio de Janeiro, 1940.

De antemão, já aviso que este texto pode parecer um tanto escatológico. No entanto, o que relatarei a seguir fala sobre algumas intimidades masculinas e, por extensão, sobre as nossas deficiências e eficiências em sermos tão patéticos.

Eu me lembro de meu pai dizendo que se surpreendera certa vez com um peido inesperado de minha mãe e exclamou: “Nossa! Pensei que as mulheres fossem divinas!”. Evidentemente, todos nós, como seres humanos normais, animais que somos, estamos sujeitos a arrotos e flatulências. Inclusive, é comum entre os garotos competições dos vários tipos de manifestações fisiológicas, além de cuspe ou esporro à distância, o que em último instância, demonstra admirável autocontrole.

Sim, mulheres — mães, namoradas, esposas e amigas de homens — nós somos nojentos. Nem todos, obviamente. Eu mesmo, nunca quis participar desse tipo de torneio ou mesmo de troca-troca. Mas não me deixava de sentir certa invejinha por não conseguir ser solto o suficiente para tanto. No máximo, jogava bolinha de gude na terra onde gatos e cães faziam as suas necessidades (o que me ajudou a aumentar a minha imunidade), porém eu não era tão bom assim em atingir as outras bolinhas de gude no triângulo ou emborcá-las no circuito de cinco buracos em “L”.

Eu adorava jogar futebol e apesar da minha inaptidão física e estilística, era esforçado e através de solitários e intensos treinamentos, melhorei bastante os meus fundamentos. O que me faz lembrar que o esporte favorito dos meninos quando descobrem a sexualidade é a masturbação. É uma prática costumeira, eu diria, costumeiríssima… E a prática leva à perfeição! Mães, se querem que os seus filhos não mintam, nunca perguntem porque o espinhento demora tanto no banheiro. Porém, se masturbar não se resume apenas à adolescência. Também é um costumeiro exercício masculino, mesmo entre os adultos — homens sozinhos ou já esposados. Mulheres, não achem que seja algo estranho. Aliás, não duvido que muitas não lancem mãos (ou dedos) da mesma ação. Saibam que isso garante a fidelidade de corpo aos respectivos cônjuges em muitíssimos casos. Já não posso garantir sobre a fidelidade na imaginação…

Tudo isso para dizer que há poucas diferenças entre meninos e homens. Talvez, o tamanho. Talvez, a perda da inocência. Talvez, a esperança de ser feliz como um passarinho quando voa, tal e qual foi na infância. Mas quem estiver atento, pode perceber o brilho no olhar do homem, como se fora um garoto, quando adquire um carro (brinquedo) novo, quando joga bola no domingo com os amigos ou quando recebe a benção de sua mãe. Muitas vezes, será por causa desse menino ainda existente no homem que uma mulher virá o amar…

Texto de 2015*

BEDA / Mulheres Maduras

Mulheres Maduras
Helen Mirren, atriz

Eu convivo com mulheres maduras de todas as idades. As mulheres que ostentam números menores nos “RGs”, nunca menor que milhões, passaram por tantas fases internas e externas, sentiram tantas emoções, vivenciaram amores e desamores, sofreram decepções, sangraram decalitros de sangue, perceberam o mundo a doer no centro de sua barriga em tantas cólicas, que simplesmente poderiam deitar e declarar aos quatros ventos: “Não quero mais nada disso!”…No entanto, levantam a cada manhã a desejarem ser felizes. Querem mudar o mundo ou o cabelo; fundarem uma nova empresa ou iniciarem uma nova empreitada; comprarem sapatos ou carros novos; carregarem novos sonhos em bolsas novas; colocarem aquele vestido que fará o seu amor exclamar “Uau!”; chamarem a atenção de um possível novo amor, causar admiração ou apenas se sentirem bem. O amor que carregam dentro de si querem fazer valer a pena. Querem pagar todas as penas, se preciso for, para vivê-lo…

Pobre dos homens que não as valorizam. O quanto perdem por não poderem conhecer novos universos tão próximos de si. Garotos que um dia quiseram ser navegadores, astronautas ou mergulhadores, não se atinam que poderiam viajar para tantas realidades alternativas apenas se desligassem de seus umbigos para alcançar mundos inexplorados ao alcance das suas mãos, acionado os quase trinta sentidos que existem. Sei que, pelo menos as mulheres, os tem…

Homens, para o nosso bem, amem as mulheres maduras. Não precisam “tê-las”, porém as “tenham”, se forem “suas”, porque elas querem se sentir pertencidas, também. Só temos a ganhar em vida e substância se, mesmo por um tempo em nossas vidas, descobrirmos essas estranhas realidades a se imiscuírem em nossas parcas realidades…

Talvez alguns de vocês tenham percebido que eu tenha terminado cada parágrafo com reticências… – palavra que só se escreve no plural. Mulheres maduras são como reticências, para mim. Deixam no ar a ideia de continuidade sem muita explicação, porque carregam inúmeras delas… Como rastros de perfumes pessoais que semeiam, os quais nós, homens e meninos, não sabemos quantificar, mas que os nossos corpos acolhem em saraivadas de poderosas sensações inomináveis a nos fecundar a terra…