23 / 09 / 2025 / A Lei Do Ex…

Recém havia completado o meu vigésimo primeiro aniversário, mamãe me chamou para conversar sobre um “assunto importante”. Fiquei na expectativa de que se tratasse de algum problema de saúde e, preocupado, me encaminhei à casa que vivera até pouco tempo antes, onde aprisionei as minhas lembranças mais importantes, estabelecendo uma comunhão de amor e dedicação dos meus pais a mim, filho único e profundamente amado.

Após o delicioso bolo de fubá de Dona Antônia, o café no ponto exato entre amargor e doçura, o que era estranho, já que nunca a vi colocar uma colherzinha sequer de açúcar ou adoçante para não potencializar a Diabetes de meu pai, um fator de risco a mais à sua saúde debilitada pela pressão alta. A mesma que causou a morte do Seu João. Com as mãos trêmulas, minha mãe cumpriu o pedido de meu pai. Perguntei o que era aquilo. Ela respondeu que era uma carta endereçada a mim. E que continha uma revelação. Quase chorando, disse esperar que o choque da missiva não alterasse o meu amor para por eles. Nesse momento, eu me senti impelido quase a não abrir o envelope. Fui em direção ao antigo sofá, roto de tanto que era usado por meu pai e ousei me sentar nele como que se quisesse receber um abraço vindo do Além… Estranhamente, me senti acolhido, como se assim fosse. Aberto o envelope, duas páginas escritas à mão, com a sua letra caprichada, revelou um passado que me fez perceber que águas passadas movem moinhos…

“Alberto,
meu filho querido, caso esteja lendo esta missiva, significa que eu sou apenas uma figura em sua memória. O que estou para lhe revelar poderá alterar a ideia que tem de mim. E de sua mãe. Mas saiba que fizemos o que fizemos porque nós nos amávamos demais. Ela renunciou a uma postura que exigiu sacrifício e que foi talvez menos doloroso porque envolveu alguém que era nosso amigo íntimo. E que um dia já fora bem íntimo dela. Você o conheceu como Tio Vilela. Eu o tinha como se fosse um irmão e mesmo assim, o traí. Não, eu não tive um caso com a Tia Mariana. A traição é que foi ele que acabou por ser estimulado a ‘doar’ o seu espermatozoide para que você nascesse. Ele é o seu verdadeiro pai biológico. Nossa amizade era inquebrantável. Ele conheceu a sua mãe antes de mim. Ao me apresentar como sua namorada, por uma dessas coincidências um tanto bregas, ‘Namoradinha De Um Amigo Meu’, do Roberto Carlos, fazia sucesso em 1966. Quando a sua mãe me viu pela primeira vez, a troca de olhares não passou despercebida pelo Vilela, que não demonstrou uma crise de ciúme explícita. Ele era um poeta, descompromissado da realidade patriarcal em que a mulher pertencia ao homem. Isso, aliado à sua devoção por mim, impediu que terminássemos com uma relação de amizade que começou no antigo Colegial. Ele foi meu protetor quando cheguei na nova escola, vindo de outra cidade, caipira de tudo. Identificou em mim alguém que ainda que fosse ‘frágil’, era corajoso e perspicaz. Parece que apenas eu entendia os seus textos ousados e diferentes de tudo que lia. Quando finalmente li Nelson Rodrigues, encontrei uma correspondência bem similar. Creio que foi dele que você herdou o seu talento de escritor. Depois de dez anos de casamento, conversei com a sua mãe que também o amava como um amigo. Ele jamais havia deixado de amá-la como mulher. Combinamos que eu simulasse uma viagem de negócios fazendo com que ficasse fora de São Paulo. Dizendo se sentir só, ela o chamou para jantarem em casa. Ele ainda não estava casado e sequer namorava a Tia Mariana. Muito carente, se deixou seduzir por sua mãe que escolheu o seu período fértil para que os nossos planos dessem certo. Quando ‘voltei de viagem’, encontrei a sua mãe entre feliz porque sabia que havia engravidado.. Eu sempre ouvira falar desse ‘poder’ feminino. E, de fato, aconteceu a fecundação conforme desejávamos. Mas ela também ficou triste por ter usado o nosso amigo. A notícia da gravidez trouxe felicidade à família toda, incluindo todos os seus avós, ainda vivos à época, paternos e maternos. Assim como também ao Vilela, que dizia se sentir como ‘quase um pai’ do menino que sem nascer já fazia a família sorrir. Talvez até desconfiasse de que fosse o genitor. Se soubesse calcular o dia do encontro em relação às 40 semanas de gestação, teria certeza. Eu nunca contei para ele que eu era infértil. Logo que eu soube disso, imaginei que pudesse usá-lo, sabendo que ainda amava a sua mãe, para que ela tivesse a gestação que sempre sonhou. Nós o traímos, sei disso. Porém, ele esteve sempre próximo a você e vocês tinham uma conexão que eu invejava. Parece que não há como escapar à certas forças. O que é importante é que você ganhou um irmão, o Ricardinho. Sei que vocês são amigos íntimos, gostam de ir juntos ao futebol, torcem pelo mesmo time e acho que sabendo dessa ligação física, se aproximará ainda mais dele. Espero que nos perdoe, meu querido filho, e que consiga reestruturar o seu mundo que acabei por bagunçar.

Desse seu pai ‘espiritual’ que o ama muito,

João.”

O teor da carta me deixou em choque. Fiquei mudo por vários minutos. A minha mãe viu as lágrimas descerem feito cachoeira por meu rosto. Deixei a carta sobre a mesinha de centro, me levantei e sem dizer palavra alguma, saí da minha antiga casa como se eu a desconhecesse. A não ser por alguns lugares como a garagem, em que dei o primeiro beijo em Ricardinho, tudo o mais deixou de significar algo para mim. O meu amor por meu irmão como homem me colocou diante da alternativa entre contar ou não para ele sobre a nossa ligação genética. Pretendíamos declarar o nosso amor brevemente. E acho que faremos, ainda que a minha mãe sofra por causa de nosso parentesco. Por enquanto, serei eu a guardar esse segredo…

Dia De Casar*

Eu estava atrasado e decidi não tomar banho. Apesar de ter acordado cedo, parecia que o relógio decidira acelerar o seu andamento e a hora programada para o casamento chegava ao seu termo rapidamente. Estava confuso, parecendo estar em um filme em que eu era o ator e o espectador ao mesmo tempo.

Tinha ido buscar os familiares da Tânia no Terminal Rodoviário do Tietê e fiz uma confusão tão grande no retorno para a minha casa que deviam estar imaginando o péssimo negócio que ela estava fazendo ao se casar comigo, já que os “conduzia” de Metrô e ônibus porque não tinha carro por falta de grana para isso, como nem sequer tinha habilitação para dirigir (como, aliás, até hoje), por motivação “ideológica”.

Assim, logo passado esse episódio, nem sei se comi alguma coisa e já se aproximava o momento em que deveria vestir o meu terno branco. Sabia que a Tânia estaria com um vestido rosa. Passados vinte e seis anos da ocasião, já não me lembro se o vira antes da cerimônia ou não, mas me recordo que o achei muito bonito ao vê-lo em seu corpo, que ainda não denunciava a gravidez de seis meses da Romy.

Conquanto fosse normalmente magra, ela acabou por manter o mesmo peso, devido ao um terrível e constante enjoo que a acompanhou durante a gestação. No entanto, naquele dia, irradiava um belo sorriso e eu me percebi estranhamente bem, para alguém que vivia a cultivar certa melancolia existencial. Além disso, o termo precariedade poderia caber bem em minha situação financeira naquele período, já que me encontrava desempregado. Os meus pais pagaram todas as despesas do enlace. Nunca os vira tão unidos em prol de um objetivo a realização da cerimônia e da festa.

O meu pai convidou um famoso harpista paraguaio, Luís Bordon, juntamente com o seu filho, para tocarem na entrada dos noivos e os meus irmãos escolheram a gravação em fita-cassete de “Smoke Gets In Yours Eyes”, com The Platers, para a saída. A minha mãe fez questão de pedir ao Juiz de Paz que proferisse todas aquelas palavras dos discursos realizados pelos padres. Na oportunidade, quando este pediu para que eu repetisse a passagem “na saúde e na riqueza”, decidi introduzir um toque pessoal e emendei: “na riqueza e, muito mais provavelmente, na pobreza”… Quem assistia, riu, e acho que consegui deixar todos mais a vontade durante um ato que parecia tão solene.

Quando chegou o final do dia 13 de maio de 1989, aos 101 anos da Lei Áurea, trocamos os áureos anéis em cada um dos nossos dedos anulares. Quando deitamos em nossa cama, estávamos tão cansados que apenas fechamos os nossos olhos e dormimos pesadamente. O casamento já estava consumado há algum tempo. A verdadeira aliança de nossa união igualmente descansava no ventre da minha mulher, então oficialmente desposada…

*Texto de 2015

Como Conheci A Tânia

Imagem de 13 de Maio de 1988. Participação especial da Romy, nossa primeira filha, testemunha aninhada no útero da Tânia, aos cinco meses de gravidez.

Dois ou três anos antes de me casar com a Tânia, sequer a conhecia. Ela veio com a minha prima Vanir e a amiga Neuza, de Volta Redonda para São Paulo, com o objetivo de realizarem testes de admissão em hospitais da capital paulista. Vanir era filha do tio Manoel e da tia Ermelinda, irmã mais velha de minha mãe que, junto com o meu tio Benjamin foram os dois únicos dos sete irmãos Nuñez a nascerem no Brasil. O nosso tio Manoel era preto. Esse dado não teria nenhuma importância se não fosse um fato que marcou a tia Ermelinda aos 12 anos de idade, quando chegou no Porto de Santos, vinda de navio da Espanha, junto com outros quatro irmãos, nos anos 20 do século passado. Ela mesma nos disse que ao ver o primeiro homem preto de toda a sua vida, provavelmente um estivador, se assustou tanto quanto ficou impressionada.

Assim como era impressionante o nosso grande tio Manoel. Ele trabalhava na Siderúrgica Nacional e se distinguia pela inteligência, apesar do pouco estudo e, notadamente, por seu olhar penetrante. Eu gostava de ficar ao lado dele e ouvir suas histórias quando visitávamos a ele, a tia e os primos, todos muitos bonitos e enormes. A prima Vanir me adorava e quando me apresentou para a Tânia, se referindo a eventual beleza e personalidade do primo, a minha futura mulher depois me revelou que chegou a rir por dentro naquele momento. O sujeito que eu era, de cabelos desgrenhados e vestindo camisas postas ao contrário, calças sujas e um tanto bruto não era nem bonito e muito menos interessante. Ao vê-la, não me lembro de ter dito alguma coisa. Talvez tenha grunhido algo, não mais do que isso. Com certeza, aquela magrela com voz de taquara rachada não havia chamado a minha atenção.

As Técnicas de Enfermagem Tânia e Neuza passaram no teste para o Hospital Israelita Albert Einstein. A Vanir foi trabalhar no Hospital 9 de Julho. Acabou por residir com parentes em Suzano, município próximo. As outras duas moças foram morar temporariamente com a Dona Madalena, minha mãe, em um dos quartos disponíveis na casa que antes era ocupado por minha avó Eloisa, da qual minha mãe cuidava, que morrera um pouco antes. Eu continuei em nossa antiga casa, sozinho. Como a Tânia trabalhava bastante e fazia cursinho para fazer vestibular para o curso de Enfermagem, pouco a encontrava. Quando nos víamos, era comum acontecer um ou outro desconforto. Certamente, não nos simpatizávamos mutualmente. Depois de algum tempo, ela e a Neuzinha, se mudaram para um outro local. Não desgostavam da Dona Madalena, mas no mínimo achavam engraçado que minha mãe lhes fornecesse achocolatado barato e leite tipo C e pó de Chocolate do Padre e leite tipo B, para mim. Na época, eu era vegetariano e fazia uma grande quantidade de saladas de frutas, sopas de legumes e vitaminas que mal oferecia para as moças. Cortesia social não era o meu forte.

Passado o período inicial de ausência depois da mudança, em suas folgas, a Tânia voltou a frequentar a casa onde a minha mãe morava, principalmente quando não tinha outro compromisso. De vez em quando, nos encontrávamos. Um dia, se surpreendeu com um cara de cabelo aparado e vestido como gente. Aparentemente, descobriu que eu era o rapaz ao qual a Vanir se referiu. Por meu turno, passei a agir de uma forma mais cordial e gentil. Começamos a sair para irmos ao cinema e conversarmos. Começamos a nos entender e a sentir vontade de ficarmos mais tempo juntos. Até que começamos a namorar. De início, escondemos nosso caso. Mas…

… para ajudar, Dona Madalena teve a ideia de alugar a casa da família na qual apenas eu morava para a Tânia e a Neuzinha. Elas ficariam em um quarto e eu, no outro. Sem o conhecimento da minha mãe, os namorados passaram a dormir juntos. Quatro meses depois, não me lembro se nosso namoro fosse presumido ou não, me lembro de estar tomando um café na cozinha. Simplesmente saquei de um envelope o exame de ultrassom ao qual mostrei à minha mãe. Era a “imagem” do seu primeiro neto ou neta. Ela desabou em uma das cadeiras e começou a fazer perguntas sobre como tudo aquilo tinha acontecido. Acho que brinquei sobre o “como”, porém, tão assustado quanto da primeira vez que a Tânia me mostrou o exame, nem me lembro do resto da cena. Estabelecido o fato da gravidez, a movimentação de ambas as famílias foi no sentido de que nos casássemos o mais rápido possível. Mas essa é outra história…