Clubes De Leitura

Em outra vida, antes do advento da Pandemia de Covid-19, Lunna Guedes, editora da Scenarium, convidou algumas pessoas para montar um grupo que se dispusesse reunir uma vez por mês para debater sobre um livro proposto por ela um clube de leitura. Uma das obras indicada por ela foi “O Clube De Leitura De Jane Austen”, de Karen Joy Fowler, sucesso de vendagem em todo mundo e que acabou por gerar um filme do mesmo nome, também muito bem aceito.

A trama, que se passa na Califórnia, começa quando Jocelyn, uma criadora de cães da raça Leão da Rodésia, decide montar um clube de leitura para discutir as obras de Jane Austen. Ela escolhe a dedo os integrantes: Sylvia, sua melhor amiga desde quando as duas tinham 11 anos; Allegra, filha de Sylvia; Prudie, professora de francês na escola local; a falante Bernadette, conhecida por ter se casado várias vezes; e Grigg, o único homem autorizado a participar.

Ao longo de seis meses, o grupo se reúne para conversar sobre um livro de Jane Austen de cada vez. Eles começam na casa de Jocelyn, com “Emma”; passam para “Razão e sensibilidade”, escolha de Allegra; emendam em “Mansfield Park”, por sugestão de Prudie; se encontram na casa de Grigg para comentar “A abadia de Northanger”; debatem “Orgulho e preconceito” enquanto escutam Bernadette; e encerram com “Persuasão”, voltando à residência de Sylvia.

Enquanto mergulha no universo de Jane Austen, o sexteto vive suas próprias histórias. Os leitores acompanham dramas como o divórcio de Sylvia, a morte da mãe de Prudie e o rompimento do namoro de Allegra. Mas nem tudo é tristeza: as irmãs mais velhas de Grigg dão uma ajuda para que ele se aproxime de sua paixão secreta; Bernadette encontra um novo marido e Jocelyn tem a chance de redescobrir o amor.

A condução da trama se faz na terceira pessoa, a qual não consegui identificar, como se qualquer um dos participantes do clube pudesse ser o narrador. Ou como se cada um deles assumisse a narração a cada etapa das leituras das obras de Jane Austen, que permeia os acontecimentos em paralelismos com a vida das personagens. A escrita dos livros da mulher que viveu na passagem do Século XVIII para o XIX, tem sido cada vez mais incensada como atemporal, apesar das tramas se passarem duzentos anos antes. A fina ironia com a qual construiu suas narrativas a fez crescer aos olhos de críticos e estudiosos ao longo do tempo, além de atrair leitores aficionados.

Não apenas por lembrá-la, mas também por me fazer lembrar de uma época em que podíamos circular, aprender, congregar, conversar, abraçar pessoas e conhecimento, escolhi “O Clube De Leitura De Jane Austen”. As épocas mudam, porém certas circunstâncias são similares, não importa se estamos nos séculos XVIII ou XXI. Atualmente, neste quadrante, estamos segregados a pequenos grupos, normalmente familiares. Assim como Jane Austen conviveu em um círculo restrito de pessoas, prioritariamente familiares. Poucos conseguiriam criar, como a escritora inglesa o fez, algo que se firmasse tão ostensivamente bom com tão poucos detalhes à disposição. Ela passeia pela alma humana, ao mesmo tempo que brinca com as estruturas comportamentais de sua época, ultrapassando gerações.

Estou com saudade de um clube de leitura que tenha pessoas ao meu redor e não apenas pela tela de um computador…

Texto participante das postagens de Interative-se, com a participação de

Alê Helga / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Gouveia / Isabelle Brum

Amor E Aparência

Amor & Aparência

Eles se conheceram no Segundo Grau. Ela, esguia e alta, praticava esportes. Chamava a atenção por seus olhos claros. Ele, rechonchudo e cabeludo, usava óculos. Preferia se dedicar aos estudos e era bom em Português.

Calhou dela precisar de um reforço na conjugação dos verbos, na identificação das sílabas tônicas e dos complementos nominais e dele ser um cara bonachão que gostava de ajudar… Desde então, a dupla inseparável se formou. Nos três anos que estiveram juntos, compartilharam vários interesses e desenvolveram uma sólida amizade permeada de estudos, festas e confidências.

Ela lhe falava dos colegas com os quais ficava e do assédio constante que sofria. Quase maldizia ser tão bonita, enquanto que ele… sabia ouvir… Não era incomum dele enxugar as lágrimas da moça com a mesma manga de camisa que enxugava as suas, bem mais tarde, na calada da noite.

Apesar de estarem sempre juntos, nunca passou pela cabeça de ninguém que os dois pudessem ter um envolvimento romântico. Igualmente não passava pela cabeça dele que ela o quisesse como namorado. Isso o deixava confortável diante dela, ainda que tivesse se apaixonado desde que a vira pela primeira vez. À vista de todos, era um casal improvável, formado pela garota mais popular e o nerd esquisito.

As coisas começaram a ficar estranhas nos últimos seis meses da relação. Frequentemente, ficavam encabulados ao se olharem longamente um para o outro, a se perderem. Entravam em um mundo onde o jogo de aparências não exercia uma força tão poderosa quanto no que viviam – de amigas maldosas e colegas ressentidos-debochados. Nesses momentos de solidão compartilhada, conseguiam escapar ao doloroso-venenoso efeito dos pequenos grupos sociais.

Logo após a formatura, os pais da moça decidiram se mudar para outro Estado, onde buscariam maior tranquilidade e novas oportunidades de trabalho. Esse fato acabou por afastar os dois apenas fisicamente. Nos três anos seguintes, apesar de não se verem, passaram a se corresponder por cartas manuscritas. Ele sempre fora avesso às redes sociais e ela, depois que mudou, decidiu também abolir essa ferramenta de comunicação. Aparentemente, as cartas, que inicialmente serviriam somente como exercícios para a melhoria no uso da Língua, de uma forma incrível, fez crescer a integração entre os dois.

Depois de dois anos, ela começou a insistir para que ele a visitasse e conhecesse as paisagens pelas quais se apaixonara, onde agora vivia. Ele objetava. Dizia estar envolvido em um projeto pessoal importante, para além dos estudos na faculdade de filosofia e letras, que não poderia revelar na ocasião. Ao mesmo tempo, ela dizia que também tinha novidades a lhe revelar, mas que faria apenas pessoalmente. Apesar da crescente expectativa, somente após mais um ano, finalmente se reencontrariam, nas férias de verão.

No dia da viagem, o rapaz mal conseguia permanecer sentado em sua poltrona no avião. Ela, em terra, desde a manhã, chorou algumas vezes. No horário programado, se deslocou ao aeroporto com o coração a pulsar fortemente. Ela sabia que a decisão que tomou poderia impactar na relação. À espera de seu amigo, ficou impaciente ao ver que quase todos haviam passado e não o localizara… Até que um rapaz parado já há alguns minutos se aproximou dela e a chamou pelo nome. Ao prestar maior atenção, custou a crer que ali estava quem esperava. Diante de si, estava um jovem forte e bem apessoado. Sem os habituais óculos, os seus olhos ficaram maiores e se sentiu quase ser engolida por eles.

Quase ao mesmo tempo, disseram: “Você mudou!”… – Depois de um momento, ecoaram: “Mudei por você!”… Ele, com muito sacrifício, havia feito dieta, começou a desenvolver um programa de atividade física e aprumou a aparência. Ela, aproveitando o afastamento de seus conhecidos diretos, decidiu relaxar e deixar de ser tão obsessiva no controle alimentar. Engordou para ficar com a aparência semelhante a dele. Apesar da correspondência constante, nunca mencionaram se gostavam um do outro apesar ou por causa das características físicas que carregavam…

Passado o instante do primeiro impacto visual, ao se aproximarem, olharam dentro dos olhos um do outro, como faziam no passado. Imediatamente, se reconheceram em si mesmos, tocaram os lábios delicadamente como nunca fizeram e, abraçados, saíram rumo ao mundo novo do amor que se descortinava, para além das aparências…

BEDA / Plugado

Plugado

Somos separados e unidos por nossas referências. Indicações de tempo, lugares, experiências e maneira como crescemos, por variados tipos de famílias, além de amizades, nacionalidades, condição socioeconômica, formação cultural e raça – quando isso se torna identificação coletiva e/ou pessoal a ser notada. Como tendemos a sermos gregários, buscamos nos reunir em tribos, tanto quanto antes na história da formação dos grupos humanos, então, para sobrevivermos; agora, através de traços comuns que nos conectam.

Lobos solitários sempre hão de existir e eu mesmo, durante parte da minha vida, fui um deles. Misantropo, tinha ojeriza a grupos, sentimento herdado de todos meus ascendentes que viajaram pelo espaço, sós, antes de mim. Por sorte, o futebol, pelo qual sentia grande paixão, fez com que me reunisse com os meus pares da escola, ruas e bairro para jogar onde tivesse espaço e oportunidade. Fora dele, os meus amigos mais próximos sempre foram esquisitos (me perdoem àqueles que me leem, mas nós éramos).

Passado o tempo de isolamento, porém, em algum momento, tive que me salvar de mim mesmo, e optei por conhecer as pessoas que viviam ao meu redor. Até que disfarçava bem a minha inépcia para isso, bem como a dor por não conseguir vencer as distâncias que separam a todos nós em ilhas físicas e mentais. As minhas referências eram, em sua maior parte, literárias, com praticidade quase zero para a referência de realidade que vivia. Os meus temas de conversação eram inadequados, as minhas projeções psicológicas, inverossímeis. Os choques entre as diferentes dimensões eram evidentes. Depois de tanto tempo, com muito esforço, posso até declarar que me tornei uma pessoa sociável. Cheguei a formar famílias – descendentes e amigos – que me puxam de dentro do buraco negro.

Atualmente, o fenômeno de auto isolamento é perceptível e se apresenta como padrão de comportamento coletivo. Estamos, socialmente, a nos separar uns dos outros por sistemas artificiais de conexão. Ao passarmos por praças com serviço de sinal aberto de Internet, veremos raros namorados a se beijarem ou pessoas a conversarem entre si. O mais comum será presenciarmos seres fisicamente acoplados aos seus aparelhos celulares, com as suas mentes a milhas distantes dali, a formarem tribos de pessoas sós.

Em alguns restaurantes já há anúncios que expressam os seguintes dizeres: “Senha de Wi-Fi só depois de 30 minutos de conversa”. Outros, aboliram ou pensam em abolir o fornecimento das senhas, pura e simplesmente. O proprietário de um local no qual trabalhei em um evento me disse que está a pensar em deixar de oferecer sinal porque, além da comida, o que ele gostaria de fornecer eram momentos de congraçamento em torno das mesas, um ambiente de interação para os frequentadores e demonstração de alegria por estarem na companhia de pessoas afins.

Quanto ao aspecto referencial, a realidade virtual tem se tornado tão mais atrativa pelo poder que apresenta de deslocamento de onde estamos e de quem somos, somado ao crescente desejo de fuga da realidade, que venho a crer que novas manifestações de alheamento público se tornarão cada vez mais progressivas, a vista da instituição de tecnologias que farão referências das referências das referências. A realidade será tão somente uma tênue base de sustentação, algo de quase improvável existência, uma intangível ficção. Seremos conduzidos pela ideia de que há algo para além do que experimentamos, um universo paralelo, uma espécie de paraíso perdido que, em um tempo passado, chegamos a chamar de vida.

Ao mesmo tempo que me sinto plugado às circunstâncias, percebo o quão é instável seu estado fugidio. Sem saber ao certo qual seria a base sobre a qual se sustenta, especulo que sem nos viabilizarmos como seres ligados a algo permanente, nos sentiremos morrer a cada instante. No entanto, ainda que soframos com nossa finitude, eu a concebo ser apenas aparente. Ainda que esteja enganado, essa possível ilusão me alimenta. Na soma de tudo, chamo a isso de “viver”, condição que experimento, no meu caso, em constante estado de assombro.