Nicotina tabacum*

Nicotiana tabacum — esse é o nome da planta. Um espécime dela rompeu o solo de uma área ainda não acabada da nossa casa. Quando todo o terreno ainda estava livre de construções, costumava brotar vários exemplares dessas plantas de fumo entre as folhas de abóboras e caules de cana-de-açúcar.

A minha casa foi construída em um loteamento de uma antiga fazenda que, muito provavelmente, devia produzir fumo, visto até que hoje as plantas do gênero Nicotiana (nome científico em homenagem ao embaixador francês em Portugal Jean Nicot, introdutor da planta na França) afloram pelas áreas não cobertas, logo que podem.

De origem americana, esse inocente vegetal transformou-se no principal substrato da droga recreativa chamada cigarro de tabaco. Os indígenas a mascavam ou a fumavam. A palavra “tabaco” originou-se do termo antilhano tabaco, que designava o tubo em forma de “y” com que esses nativos fumavam a erva. Os espanhóis levaram esse costume para a Europa. Jean Nicot usava moído, como rapé. Percebeu que aliviava as suas enxaquecas. Desta forma, em 1561, enviou sementes e pó de tabaco para a França, para que a rainha Catarina de Médicis, o experimentasse no combate às suas enxaquecas. Com o sucesso deste tratamento, o uso do rapé se popularizou.

O corsário Sir Francis Drake foi o responsável pela introdução do tabaco em Inglaterra em 1585, mas o uso de cachimbo só se generalizou graças a outro navegador — Sir Walter Raleigh. O hábito de fumar o tabaco como mera demonstração de ostentação se originou na Espanha com a criação daquilo que seria o primeiro charuto. Tal prática foi levada a diversos continentes e somente por volta de 1840, começaram os relatos do uso de cigarro.

Neste ponto, a finalidade terapêutica original do tabaco já havia perdido seu lugar nas sociedades civilizadas para se consubstanciar no hábito de fumar por prazer. Se fosse parcimonioso e autocontrolado, talvez não fizesse mal. No entanto, há interferência de contextos externos ao retirar o uso do fumo de seu contexto, propagando-o e incentivando-o como necessidade aliada a uma imagem de exaltação pessoal. Além disso, o cigarro passou a ser aditivado de várias outras substâncias com o propósito claro de viciar. O que era um ato cultural, passou a ser uma imposição social, com o tráfico legalizado de substância viciante e com claros efeitos danosos à saúde.

O resto da história, cheiramos até hoje…

*Texto de 2013

Mundano

Hoje, aniversario. Completo 59 anos desde que vim à luz do Sol. Não queria sair do conforto do mundo em que vivia — quente líquido em que me banhava e me alimentava de amor. Estava invertido, brincando de percorrer o meu espaço. Após ao procedimento da fórceps, fiquei em uma incubadora por alguns dias. Bem cedo, o menino que fui preferia ficar a um canto desenhando ou vendo TV. Após me alfabetizar, “perdia” horas lendo qualquer coisa que caía em minhas mãos. O futebol era a única coisa que me salvava de ficar parado-isolado. Por essas e por outras, por anos a fio, o meu pai dizia que eu era tão preguiçoso que até nascera sentado. Homem de natural talento manual, ele não compreendia a minha incapacidade nesse campo, excetuando desenhar e fazer pequenas esculturas em barro. Dizia que prendia as coisas com barbante e colava com cuspe. Se fui assim tão sarcástico com vocês, minhas filhas, me perdoem.

Até os 12 anos, eu era impetuoso e brigão. Na dura vida de menino que não era muito grande, nos entreveros com os outros garotos, batia primeiro e perguntava depois. Quando mudei de escola e de iniciei novos relacionamentos pessoais, decidi mudar a minha atitude de impor respeito pela violência, herança indireta do Sr. Ortega na minha criação. Comecei a tentar empreender o caminho inverso. Se quisesse ganhar o respeito de alguém, não seria pela força. Ao mesmo tempo, iniciei um processo de internalização quase irreversível. Quase que paralelamente, fui ficando cada vez mais míope e a minha personalidade ganhou óculos.

Ainda que tenha sido batizado e feito a Primeira Comunhão, não abracei o catolicismo. Após uma fase ateísta, me tornei franciscano. Sei que São Francisco me permitiria essa rebeldia. Ele mesmo se rebelou contra o que era imposto como regramentos que o impediam de vivenciar o que o seu coração mandava. Homem do mundo, foi transformado pelas experiências do mundo. A violência, a fome, a precariedade da vida, todas essas facetas vividas enquanto servia em uma das guerras de ocasião, o transformaram. O herdeiro de família rica, começou a se conectar consigo mesmo, a se abrir para as coisas tangíveis e intangíveis, a ouvir vozes interiores e exteriores — expressões para quais normalmente fechamos os sentidos d’alma, ainda mais quando estamos embotados pela materialidade. Francisco teve coragem para empreender a viagem mais árdua, àquela que quando se inicia, não há volta — ser pequeno.

Um dia, pensei em seguir o seu caminho. Desejei seguir os mandamentos da Igreja para tal percurso. Fiquei dois anos sob orientação. Cheguei a visitar um seminário franciscano que me influenciou de maneira decisiva. Gostei do ambiente, dos estudantes, dos objetivos propostos, mas… ainda mantinha dúvidas sobre qual sentido seguir. Lá mesmo, em um canto dos muitos corredores do prédio, estava uma maquete que mostrava os vários caminhos para chegar a Deus. Um desses caminhos era a formação de família.

Eu tinha 26 anos e desde os 16 havia enveredado por uma profunda religiosidade, que não respeitava limites doutrinários. Estudei o Cristianismo, o Maometismo, o Hinduísmo, o Budismo, as demais filosofias orientais, as crenças africanas e tudo mais que dissesse respeito à transcendência do corpo e proeminência do espírito. Constituí uma amálgama de crenças que só fazia sentido para mim. O que fizesse o meu coração bater mais forte, a isso eu me identificava. Percebi que a Verdade tem muitas facetas, tal qual um diamante que reflete uma luz diferente a depender da forma que a luz o toca.

Naquela altura da minha vida, eu estava dividido entre a vida monástica e o conhecimento do mundo que havia rejeitado até então — a familiar. Sabia que enfrentaria grandes obstáculos para manter o controle sobre a minha sanidade ao escolher tanto um quanto outro caminho. Hoje, depois de estabelecer uma profissão, conhecer a minha companheira, Tânia; conceber as minhas três filhas — Romy, Ingrid e Lívia — construir uma casa, cuidar de cães, passarinhos e plantas – formei um lar.

É um desafio constante manter o equilíbrio entre tantas demandas pessoais, profissionais e a paixão pela escrita, mas creio que tenho caminhado cada vez mais para dentro de mim na senda do autoconhecimento e para fora do meu próprio corpo, agregando pessoas em meu entorno. É como voltar da guerra todos os dias e me metamorfosear. Sei que sou, fundamentalmente, um franciscano em meu procedimento. Desde que ouvi o chamado de Francisco de Assis, nunca deixei de ser, idealmente, um frade menor sem hábito…