31 / 03 / 2025 / Sobre A Paz

Susan Sontag em A Consciência Das Palavras, escreveu:

“Nós, escritores, ficamos preocupados por causa de palavras. Palavras significam. Palavras apontam. São flechas. Flechas cravadas na pele dura da realidade. E quanto mais portentosa, mais geral for a palavra, mais também se parecerá com um quarto ou um túnel. Elas podem expandir-se, ou bater em retirada. Podem impregnar-se de mau cheiro. Muitas vezes nos farão lembrar outros quartos, onde gostaríamos de morar, ou onde achamos que já estamos vivendo. Elas podem ser espaços onde não podemos habitar, pois perdemos a arte ou a sabedoria para tal. E por fim aqueles volumes de intenção mental que não sabemos mais como residir serão abandonados, lacrados com tábuas, trancados. 

O que queremos dizer, por exemplo, com a palavra ‘paz’? Uma ausência de conflito? Um esquecimento? Perdão? Ou um grande cansaço, uma exaustão, um esvaziamento do rancor? 

Parece-me que o que a maioria das pessoas entende por ‘paz’ é a vitória. A vitória do seu lado. É isso o que ‘paz’ significa para ‘eles’, enquanto, para os outros, paz quer dizer derrota. 

Se predominar a ideia de que paz, embora em princípio desejada, acarreta uma inaceitável renúncia de demandas legítimas, então o rumo mais plausível será a prática da guerra por todos os meios possíveis. Se não fraudulentos, os apelos de paz serão tidos certamente como prematuros. A paz se torna um espaço onde as pessoas não sabem mais como habitar. A paz tem de ser re-povoada. Recolonizada…”.

Sontag, absurdamente consciente da realidade que nos rodeia, toca na ferida de coisas muitas vezes as pessoas não ousam cutucar. O poder das palavras — a maneira como nos expressamos primordialmente — responsável por construirmos a hegemonia entre todos os animais, inversamente também pode destruir as relações humanas.

Há várias maneiras de colocarmos a palavra “Paz” em uma sentença. Mas tão pequeno pequeno termo quanto importante, a depender de quem o pronuncia, ofende e penaliza. Atualmente, temos exemplos óbvios em termos mundiais que bem demonstram isso. A Rússia, mantendo a sua tradição imperialista, invadiu a Ucrânia, imaginando vencer a guerra em uma semana. Em fevereiro passado, completamos três anos de conflito. A possível “Paz“, caso seja implementada da maneira proposta, significará a repartição da Ucrânia entre o invasor por terra — que continuará soberano sobre a Criméia — e o invasor pela negociação, os Estados Unidos da América, proponente do acordo, que avançara sobre as riquezas minerais do País.

Outro conflito ocorre em Gaza, invadido pelo Estado de Israel, após o atentado terrorista cometido pelo Hamas, em 7 de Outubro de 2023. Proporcionalmente, o governo de Benjamin Netanyahu, de viés ultra-direitista, se aproveitou dos resultados nefastos desse acontecimento que vitimou 1.200 pessoas entre mortos e sequestrados. Tenho uma opinião bem pessoal sobre o que ocorreu.

O Mossad tinha informação que haveria uma ação terrorista, mas os governantes israelenses talvez não imaginassem tamanha proporção. Como já ocorreu na primeira eleição de Netanyahu que uma visita inesperada do dirigente à parte mulçumana de Jerusalém, desencadeou uma série de protestos por parte dos palestinos que o ajudou a se reeleger, ao reprimi-la. Em baixa de popularidade, respondendo a crimes de corrupção, o atentado também auxiliou a desviar a atenção para a resposta dada por seu governo que foi terrivelmente desigual.

Decretada a “Paz” — frágil e, virtualmente inviável — o lado palestino recebe como resultado, um lugar inabitável, de condições básicas de sobrevivência digna, permeável a surtos de doenças oportunistas, além dos eventuais bombardeios realizados pelas forças israelenses. Talvez não haja interesse que a “Paz” — que em sentido parco significaria ausência de mortos e feridos — prospere tanto entre os dirigentes do Hamas quanto de Israel, pois afinal serve aos dois grupos e seus projetos hegemônicos.

Essa “Paz” encardida se expressa cabalmente na última sentença do texto de Susan Sontag do texto acima: “A paz se torna um espaço onde as pessoas não sabem mais como habitar. A paz tem de ser re-povoada. Recolonizada…”. Se houver um lugar (filosófica e materialmente falando) para ser repovoado.

Foto por Qasim Mirzaie em Pexels.com

Vingança

Aqui, não vou tentar demonstrar quem tem razão no conflito em Israel. Ninguém tem ou todos têm a sua razão. Apenas tento imaginar (e não consigo) como deve ser doce o gosto de revanche para causar tanto sofrimento – quanto maior, melhor. Para quem o pratica, para quem se extasia ao ver o terror perpetrado em Gaza, na Comunidade da Maré, no Afeganistão, Ucrânia ou em Benin. Aqui perto, todos os dias, na América, África, Europa, Oriente Médio, Ásia

As vítimas, já sabemos, serão sempre os cidadãos comuns, aqueles que tentam viver uma vida em que possam respirar, trabalhar, amar. Mas para alguns como amar deve ter regras. Os fundamentalistas assim apregoam. No conflito provocado pelos fundamentalistas do Hamas, tanto os palestinos quanto os israelenses, além de pessoas de vários lugares do mundo que estão no local e, com o passar do tempo, em vários pontos do planeta, sofrem e sofrerão devido às consequências da decisão do grupo terrorista em ultrapassar as fronteiras pela além de Gaza.

Para os seus dirigentes, foi um movimento que, sabiam, teriam duas consequências imediatas. A primeira, o assassinato à sangue frio de moradores da região atacada – revanche por todos os ataques sofridos no período anterior. A segunda, a reação do Estado de Israel e aliados que revidariam com poder de fogo bem maior, atingindo aos palestinos que supostamente dizem defender, o que poderia levar ao eventual alinhamento de outros grupos radicais e/ou países simpáticos à causa palestina, causando uma guerra total.

Para quem é minimamente bem-informado, esse conflito tem origem bíblica, mas ganhou dimensão quando parte da Palestina foi fatiada para a criação do Estado de Israel, logo após à Segunda Guerra Mundial. O fenômeno do Holocausto havia causado tamanha comoção planetária que justificou a decisão de implantá-lo. À época, a hegemonia dos países “vencedores”, como os Estados Unidos, URRS e Inglaterra era tamanha, que não houve como não ser aceita pelos países em torno da área designada, não sem protestos.

Como consequência, vários outros conflitos foram gerados desde então e o sentimento de revanchismo foi crescente. Compreensível, até que o lado reptiliano viesse a entrar em operação em várias ocasiões, levando a movimentos irracionais, ainda que premeditados. Decapitar cabeças de bebês responde ao mal já feito anteriormente? Terrorismo de Estado por um lado, contra ações pessoais em que um “ser humano” se encaminha a um berçário, observa seres indefesos à disposição e inicia, através de utensílios cortantes, o movimento de arrancar a parte acima dos seus ombrinhos. Essa é uma resposta viável?

Aqueles que se refestelam contra as ações de pequenos contra os poderosos absolvem essa ação? Até que ponto o nosso desejo de justiça encara esse evento como reparador? Qual o sentido de perdermos o senso e defender o mal sob qualquer ponto de vista? Que posicionamentos ideológicos justificam todos as consequências de uma guerra total? Como é fácil apoiar atitudes espúrias para que se confirme um ponto de vista distorcido pelo ódio e gozar a cada ação terrorista como correta, longe da área de conflito. Quem vence? Qual será o vencedor? Quem vencerá a dor?

Foto por Kristina Paukshtite em Pexels.com