A Alma E O Mundo


“O mundo parou ali onde dói a alma e onde o silêncio é apenas aquele eco que invade os meus ouvidos surdos”, por Suzana Martins (In)Versus

Passava eu pelos recônditos de um dos Universos, quando fui sorteado pela Consciência Total para descer de minha condição de ser pleno para surgir encarnado no corpo de um Homem – uma das muitas vertentes de seres humanos espalhados por incontáveis planetas – uma forma em que o corpo tem um centro que articula sensações, emoções, sentimentos, ideias e a imaginação para fazer avançar a abertura da Mente e a recepção e emanação da Energia.

Acessei os arquivos da CT para entrar em contato com a História e o desenvolvimento humano daquele planeta tão pequeno quanto importante. Estavam, nas condições nas quais iria encarnar, ainda ligados à mandamentos que mais aprisionavam do que libertavam o Espírito. Em lugares, aqui e ali, já existiam Avatares que haviam anunciado as possibilidades de escaparem às adversidades provocadas por desvios que o Egoísmo produzia. Mas o aprendizado era disperso e variável em repercussão. Crenças e fés se deslocavam para a matéria em vez de serem vivenciadas como vibração espiritual, em sua maior parte.

Quando encarnado, cheguei a perder um pouco de contato com a Consciência Total. Tinha somente reminiscências de minha liberdade. Conforme passava pelas fases de desenvolvimento do meu corpo, fui conseguindo recuperar a conexão com Ela. Esse isolamento, ainda que imparcial, mostrou o sofrimento atroz por qual passa quem está desmemoriado do Todo. Sempre havia algo para desviar os homens do bom caminho. Não somente os pensamentos mais baixos, mas os aqueles que se anunciavam como superiores, eram valorizados por seus movimentos circulares, acabando por se mostrarem apartados da natureza do Ser antes de ser.

Revoltados com a minha invocação ao Amor, os doutores da lei daquele pedaço de chão me enviaram à crucificação. Estavam confusos. Assim como fiquei confuso ao empreender essa missão que, sei, repercutiria por milhares de voltas que este planeta daria em torno do Sol adiante. Sofri pesadas dores físicas, mas sabia que teriam termo. Ao me colocar no lugar de quem está submisso às leis naturais, fiquei comovido por todos que não ultrapassam a condição de mortais.

Ainda no limite de minha conformação humana, fiquei triste por deixar meus familiares e amigos terrenos e em quem acreditou na mensagem que propaguei. E por tudo que aconteceria dali por diante, ali e alhures, por causa dela…

Foto por Alem Su00e1nchez em Pexels.com

BEDA / A Raiz

Eu era uma árvore antiga
Já vira milhares de cenas
Já vivera milhares de vidas
Por cada cabeça que passou por mim
Eu me compadeci da maioria
E me perguntava: de onde vinham?
Para onde vão?
Como conseguem viver sem raízes?
Sem um lugar para chamar de chão?
Cresci forte e via propósito
Nas aves que abrigava
Na sombra que projetava
Comecei a adoecer
Quando percebi os atos desrespeitosos
O descaso com a minha saúde
As pessoas alimentando o meu solo
Com o lixo humano
Senti que não servia mais para limpar o ar
Aplacar os ruídos fortes
Filtrar o ódio que os bípedes produziam
Morri aos poucos
Galho por galho
Folha por folha
Tronco e raiz
Decidi, então, me deitar
Sem ferir ninguém
Na calada da noite
Testemunhada apenas por meus pares
Vertendo terra cor de sangue
Para ser esquartejada
E levada aos pedaços
Para jazer em partes
Longe das gentes
E dos pecados…

*Poema de 2015, após eu ver uma das árvores da Praça da República que tombou durante uma noite fria de Junho. Participante do BEDA: Blog Every Day August.

Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Bob F / Denise Gals / Claudia Leonardi / Lunna Guedes / Suzana Martins

BEDA / Voo Emprestado*

Você me chamou e não a ouvi
Estava absorto na faina cotidiana
Navegava pelos rios de asfalto da cidade
Percorria os túneis de fuga terra adentro
Para fora de mim mesmo
Sempre apartado do meu corpo

O que poderia ser um sinal de independência
Não se cumpria
Pois os pensamentos arquitetados
Por outras mentes
Eram absorvidos pelos meus olhos
Invadiam o meu cérebro
E eram caminhados por minhas pernas
Se incorporando à minha rotina
Como se meus fossem através do poder de intervir
Consumado pela arquitetura citadina
Realizada pelos planejadores do ir e vir

Estava partindo para um lugar certo
Porém não pensava nisso
Mesmo querendo parecer borboleta
Ainda que formada e liberta
Voltava para o meu casulo
Que me atraía
Como tal, as minhas asas voavam um voo curto
Mais decorativas do que eficientes
E termino sendo um simples humano ser
Fingindo um próprio querer…

Foto por JESHOOTS.com em Pexels.com

Poema de 2019*, participante do BEDA: Blog Every Day August

Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Bob F / Lunna Guedes / Suzana Martins / Cláudia Leonardi / Denise Gals

#Blogvember / O Transplante

“Coração transplantado procurando resquícios do que já foi humano”, por Lua Souza, em Estratosférica.

O meu coração já não funcionava bem há algum tempo. Dr. Nino já havia me alertado para que eu mudasse o meu estilo de vida ou não conseguiria ultrapassar os próximos dez anos sem sérios riscos de ter um infarto. Dei de ombros. Continuei trabalhando 12 horas por dia. Comia irregularmente. Passava a maior parte do tempo sentado diante do computador ou fazendo reuniões de intermináveis. Encontrava motivos diversos para permanecer o mais distante que pudesse de casa, onde encontraria Carla, minha esposa. E a sua mãe, Djanira.

Carla era a típica mulher-troféu. Ideal para apresentar nas festas e esfregar na cara das pessoas a minha vida de sucesso. E só. No mais, além de sapatos e roupas, colecionava amantes. Sabia de todos. Mantinha um deles como meu informante. Bem remunerado, ele me alertaria caso surgisse algum mais esperto que quisesse avançar sobre a grana da família. Aliás, qual seria essa família? Não tinha filhos. Quando Carla engravidou, eu a avisei que abortasse se quisesse continuar com o bem-bom. Eu havia feito vasectomia e não revelei a ela essa pequena informação quando nos casamos. Órfão desde os 15 anos, quando meus pais morreram num acidente de carro, o único ser ao qual amava era Petúnia, uma viralatinha que apareceu jogada no jardim de casa entre as flores desse tipo. Aliás, muitas vezes a trazia para a empresa, onde tinha um espaço feito apenas para ela. Se bem que, na maior parte do tempo, ela preferisse ficar aos meus pés.

Numa dessas ocasiões em que me abaixei para acariciá-la, senti uma dor absurda na lateral do pulmão esquerdo, que me fez perder os sentidos. Soube que os insistentes latidos de Petúnia alertou a minha secretária, que chamou o médico de plantão na empresa. Fui levado para o hospital rapidamente, o que impediu que eu morresse naquele dia mesmo, há cinco anos. O meu médico disse que o meu caso havia se deteriorado tremendamente. As ausências contínuas nas consultas agendadas contribuiu para que ocorre a formação da tempestade perfeita. Colocado na fila de espera, voltei para casa e praticamente pagava para que sogra e esposa passassem fora a maior parte do tempo. Isso durou três meses. Até que fui chamado para fazer a cirurgia. Um coração compatível surgira. Era de um jovem rapaz, entregador de aplicativo de alimentação que foi jogado para o canteiro central da Marginal Tietê por um caminhão.

O Dr. Nino me disse que esses rapazes eram os doadores mais comuns de órgãos no sistema. Nos dias que fiquei internado, não queria visitas, mas Carla apareceu para ver como eu estava. Não duvido que quisesse boas notícias, como a que anunciasse que operação não teria dado certo. Mal sabia que não ficaria com nenhum centavo, caso eu morresse. No afã de assinar os papéis do casamento, não percebeu que estava incluído um contrato pré-nupcial. Mas estranhamente, fiquei bem ou até melhor. Senti que algo havia mudado em mim. Cresceu um sentimento de dívida de gratidão para com o meu doador desconhecido. Simplesmente, alguém precisou morrer para que eu sobrevivesse.

Coração transplantado, passei a procurar resquícios do que já foi humano em mim. O que via antes como dispensável, como um sorriso ou o desabrochar de uma flor, ganhou significados que não sabia explicar. É como se o coração do rapaz morto me induzisse a caminhar na direção contrária à que sempre fui. Comecei a perceber que na minha vida eu sempre havia buscado os limites do que me trazia prazer ou repulsa. Casar com Carla fez parte de uma jogada para ganhar uma concorrência, já o que pai dela era dono de casas de aluguel que impediam a construção de duas torres de escritórios na Aclimação, com um grande potencial de crescimento imobiliário e lucro garantido. O Seu Genaro era um homem probo, mas a sua linda filha percebi no momento que a vi que era, como dizia a minha mãe, uma aventureira. Talvez influência da minha sogra. Foi um negócio como outro qualquer. Por louvor a ele, mesmo que me separasse, não as deixariam desamparadas. Aliás, só havia me permitido pensar dessa maneira depois do transplante.

Como me sentia quase sendo outro, fiz o teste mais confiável. Olhei nos olhos da Petúnia, como fazíamos de vez em quando. Após um minuto, ela me lambeu, como de costume. Eu ainda habitava o meu corpo, com um coração não apenas novo, mas renovado. Decidi conhecer a família do rapaz que me doou o órgão. O Dr. Nino me passou todas as informações. Morava na Zona Leste, praticamente uma outra cidade dentro de São Paulo. Eu apenas passava ao largo dela quando o meu motorista me levava ao Aeroporto de Guarulhos. A mãe de Geraldo, meu doador, morava numa comunidade que antes, sem conhecer, chamaria de favela, com todo o peso preconceituoso que carregava. Para não chamar muito a atenção, pedi o carro do meu motorista emprestado para me aproximar de sua residência. Próximo, perguntei onde morava Dona Alba. Ninguém soube me responder. Talvez desconfiassem de um tipo que nunca haviam visto antes. Para um senhor, citei que se tratava da mãe do rapaz que morreu, o Geraldo.

– Ah, é a Dona Generosa… Ela mora ali, naquela casa cheia de vasinhos com flores e plantas penduradas. O senhor veio por causa da indenização? Nossa! Ela e a nora estão precisando muito de dinheiro. Ainda mais com um bebê novo em casa.

Sem saber o que responder, disse que sim.

O senhor fez questão de me acompanhar até a casa.

– Dona Generosa! Oh, Dona Generosa!

A voz poderosa do senhor parecia entoar o refrão de uma canção. Soube depois que se tratava do puxador da escola de samba da comunidade, Seu Arlindo.

Diante de mim, surgiu uma senhora preta, de olhos brilhantes, percebidos mesmo por detrás dos óculos. Como a completar a imagem de entidade, uma cabeleira branca conferia a ela o efeito de aura.

– Pois, não?

Sem saber o que dizer, passei a gaguejar. Em dado momento, comecei a chorar feito um menino. Só pude ousar abraçá-la. Abraço retribuído, ela me disse, num fiapo de voz:

– Meu filho…

Participam: Suzana Martins / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Guedes

#Blogvember / Nosso Traço Falho

Detalhe do afresco A Criação de Adão, pintado por Michelangelo no teto da Capela Sistina entre os anos de 1508 e 1510, a pedido do Papa Júlio II.


Rozana Gastaldi Cominal, em “Mulheres que voam”, apregoa que “não dá para ser perfeito com defeito humano já vem a ser: traço falho”.

A condição humana natural não é exatamente sem defeitos. A velha frase que ecoou por séculos de que “o homem nasce bom, mas a Sociedade o corrompe” é, em si, incongruente ao desconsiderar que a Sociedade é justamente formada por… homens. Não conheço a fundo as teorias a respeito de seu formulador, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, mas essa generalização “passa a mão na cabeça” dos seres humanos à priori, os inocentando de todas as possíveis falhas que venham a cometer contra outros da sua e de outras espécies – “criadas para lhes servirem”.

Para justificar essa característica de ser falho, criou-se o episódio da expulsão do Paraíso, porque Deus, em sua eterna glória, nunca cometeria o erro de nos dotar com tantos defeitos. Nesse caso, são os homens a absolvê-lo. Na visão humana, ao longo da História, os homens foram transformando seus deuses em pessoas com o dom da criação, da Eternidade e o poder de interferir na realidade, matar e destruir. Ao contrário do que versa a Bíblia, foi o Homem que O fez a sua semelhança.  

Para nos redimir, outra versão de nossa existência nos coloca como seres evolutivos que passamos por etapas de aprendizagem em vidas seguidas de mortes e renascimentos, até alcançarmos o estágio final em que seremos perfeitos. Artigo de , como todas as crenças, esse desejo que temos de nos eternizarmos, apesar das dores reincidentes, talvez para vivenciarmos prazeres fugidios é, no mínimo, comovente. Por outro lado, o fanatismo de todas as ordens gerados pelas diversas convicções é alimentado por chefes religiosos que ganham em poder ao jogar uns contra os outros na busca das diferenças.

Para o bem da convivência entre as gentes, a vontade de acreditar no imponderável deveria ser exaltada como identidade comum. Mas defeituosos que somos, não admitimos que as diferenças configurem um traço de igualdade. A onda de lideranças políticas que querem destruir a convivência democrática entre as pessoas de posturas desiguais ao que é proposto como norma, creio ser o pior defeito da personalidade humana carregada de falhas. Gera violência e sofrimento.

Para mim, o maior crime propiciado por essa “qualidade” destrutiva em sua gênese é o ataque à Natureza na tentativa de buscar lucro. Queremos controlar o meio ambiente como se fosse um inimigo a ser combatido, como se não devêssemos nos incluirmos como participantes. Abusamos da extração, sem reposição. Sofremos nós, os outros animais, as plantas, o planeta. Mais cedo ou mais tarde, pagaremos o preço. Talvez até consigamos reverter um pouco do estrago e eventualmente voltarmos atrás no caminho do suicídio… Até vermos surgir uma outra falha que parece ser permanente em nossa formulação: o esquecimento. Parece que não queremos aprender com os nossos descaminhos. O que nos condenará a cometermos os mesmos erros novamente.

Participam: Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso