Freud E Madame Lília

Freud

Em abril do ano passado, Lunna Guedes, mentora e editora da Scenarium Plural – Livros Artesanais, incumbiu alguns de seus escritores a criarem “mosaicos”. Consistia em montar (escrever) cinco textos (tesselas) individuais que deveriam montar painéis ou histórias completas que comporiam uma publicação coletiva chamada Mosaicum, que efetivamente acabou por ser lançada em junho de 2019.

O tema proposto deveria girar em torno da seguinte premissa: tenda cigana – leitura das mãos. Lunna a formulou após a leitura de “A Cartomante”, de Machado de Assis. O mosaico criado por mim veio a se chamar “Freud E Madame Lília”, dividido em quadros e títulos como Inconsciente e Desejo, por exemplo. Versava sobre o improvável e tórrido romance entre o criador da psicanálise e uma vidente cigana (de olhos verdes como os da bela Ella Rumpf) na Viena do final do século XIX. Como pareceu a seus pares contemporâneos, quando surgiu com sua teoria, coloquei Freud envolvido com conceitos que beiravam a magia ou bruxaria. As duas personagens, frente a frente, como a completar parte da equação ainda pouca explorada da visão biopsicossocial do ser humano, acabaram por levar suas experiências pessoais à máxima integração, incluindo a energética-química-sexual.

Freud 1

Se alguém acha que o enredo que produzi é muito parecido ao da série lançada no Brasil em 23 de março deste ano – Freud – pela Netflix, saiba que não terá sido o único. Quando citei o fato para minhas filhas, Romy e Lívia, muito ligadas às questões de mídia atual por contingências profissionais, mostrei o texto (que publicarei abaixo neste espaço). Tirante as viagens alucinógenas da série, elas começaram especular sobre um possível plágio. Além das características físicas da vidente, algumas das personagens, por efetivamente terem feito parte da vida de Freud, são replicados, como o Dr. Breuer, seu amigo e Martha, sua esposa. Eu contrapus que cria que as ideias estão no ar. Funcionamos como antenas a captar e emitir vibrações. Dadas as características da escrita machadiana, de viés psicológico por quais enveredava, mesmo nas incursões anteriores aos livros mais conhecidos – como “Quincas Borba” – imaginei colocar o tema do inconsciente em contraponto ao ocultismo.

No entanto, no mundo globalizado em que vivemos, as ideias circulam muito mais rapidamente através de incontáveis meios de divulgação. As treze edições produzidas e publicadas em junho de 2019 podem ter dado volta ao mundo tanto quanto um tweet inconsequente. Ou não. Da qualquer maneira, é muito estranho me sentir plagiador de uma história que publiquei antes da obra plagiada. Ao final de tudo, pelo menos, ganhei pontos com as minhas crias por perceberem que “minhas” ideias têm potencial de serem roteirizadas pela Netflix.

Freud 2

FREUD E MADAME LÍLIA*

(inconsciente)

Sigmund ficou intrigado quando soube por um conhecido que uma cigana havia predito o que ocorreu com um amigo em comum, que faleceu. Interessado em conhecer como se dava esse estado de sonho consciente que revelava fatos futuros e não os passados-enterrados no inconsciente, se dirigiu ao acampamento da comunidade zingara, fora da cidade. Passou por entre crepitantes fogueiras frontais às diversas tendas e foi encaminhado à de Madame Lília.

Encontrou uma fila onde estavam outras dez pessoas bem vestidas… usando echarpes que cobriam os rostos naquele verão vienense especialmente quente. Sentindo-se tão desconfortável quanto um dos pacientes que descobria desejar o pai ou a mãe, esperou por três horas até ser chamado adentrar ao ambiente estranhamente maior do que parecia por fora. No fundo, sentada à mesa, uma mulher de grandes olhos verdes, tão brilhantes quanto a luz abaixo de seu rosto, envolta numa aura nublada-olorosa.

(desejo)

Sigmund, inesperadamente ansioso, apesar de não demonstrar fisionomicamente, não saberia dizer o que mais o impressionou ao passar pela abertura – a atmosfera onírica, a luz que vertia da bola de cristal ou a própria Madame Lília. Intimamente, desejou vê-la de corpo inteiro. Assim que se aproximou, ela se ergueu como se levitasse, emoldurada por longos cabelos negros que desciam abaixo do véu colorido preso por uma tiara prateada. Ainda que estivesse acostumado a lidar com muitas pessoas, se sentiu intimidado.

– Senhor Freud? – Madame Lília estendeu a mão em um movimento ondulado como uma serpente prestes a dar o bote. Após tirar as luvas, Sigmund, ao apanhar a mão de dedos diáfanos e macios da cigana, sentiu um frêmito inesperado. Percebeu que sua experiência fora da sala controlada por referências pessoais do consultório o levaria para mais longe do que supôs…
– Como desejou, Sigmund Freud… Sei que desejava muito me encontrar…

(hipnose)

Sigmund olhou diretamente para a boca de intenso vermelho que o chamou por nome e sobrenome. Hipnotizado-nocauteado pelo sorriso sedutor daquela entidade, ouviu dela:
– Chegue mais perto – convidou, indicando a cadeira em frente à mesa iluminada.
– Alguém me anunciou? Não me lembro de ter dito à senhora o meu nome…
– Por favor, me chame de Lília… Eu o esperava há algum tempo…
Tentando não parecer desconcertado, Sigmund logo a inquiriu sobre o amigo morto:
– Soube que previu o que aconteceria com o meu colega, Ernst von Fleischl-Marxow…
– Qualquer um mais atento saberia o que estava por vir se ele continuasse a abusar daquela substância…
– Com efeito, Ernest ultrapassou os limites…
– São novos caminhos… Acidentes de percurso.
– A Senhora o conhecia?…
– Quando visitei o Futuro, percebi o quanto seria importante no caminho desbravador que você trilhará. Seu trabalho libertará pessoas…
– Enxerga isso na sua bola de cristal?
– Sonhei… Sonho confirmado quando o toquei…

(O Judeu E A Galega)

“Segismundo Schlomo Freud” – dizia baixinho para si, tentando recuperar o controle daquela situação tão desiquilibrada quanto via acontecer nos manicômios que frequentara.
– Meu interesse é buscar cura para meus pacientes, Madame Lília!
– Falo em libertar a mente… – A voz de Madame Lília era profunda como o mar e harmoniosa, como o canto do rouxinol. Seu olhar parecia uma clareira verde no meio da escuridão. Prosseguiu:
– Sei que sabe do que digo. Prossiga com seu trabalho. A palavra é o caminho… O Verbo é o princípio e o fim. Seu povo viveu e morreu pela palavra. Ela nos forma e nos liberta… Meu dito, meu feito…
Sigmund já ouvira de seu pai aquele dito galego…
– Meu amigo Breuer tem conseguido resultados interessantes à base de diálogos. Estou desenvolvendo um método referenciado.
Respirou profundamente e disse:
– Não consigo explicar você, Lília… Quero encontrá-la à luz do dia…

(sonho)

Viena, 1890 – Sigmund e Lília – se encontravam de dia em cafés e restaurantes discretos. As noites terminavam em quartos de hotéis afastados. Nunca antes tal consciência que corpos pudessem vibrar tanto quanto os seus, quando unidos. Além do sexo ultra real, conversavam sobre o sentido das lembranças e a improvável percepção do futuro – benção maldita – segundo Lília. Ela revelou que haveria grandes guerras. Que a evolução material seria incrível, mas que se tornaria uma prisão. As pessoas prefeririam a realidade virtual à real – desejo de sonharem acordadas. Versaram sobre estados mentais, a importância do inconsciente, psiquismo – termos que ela sabia expressar e valorizar. Os dois sabiam que um dia acordariam. Para Sigmund, o despertador foi Martha, dizendo-se abandonada com os dois filhos pequenos. Quando, de coração partido, decidiu terminar tudo e dizer adeus, não encontrou mais o acampamento dos ciganos… Confuso, perguntava-se se Lília não teria sido um sonho…

*Texto pertencente ao projeto coletivo Mosaicum, lançado pela Scenarium Plural – Livros Artesanais, em junho de 2019.

20/20

2020
Entardecer de 30 de Dezembro de 2019

Na visão física, há várias causas de baixa de acuidade visual: as ametropias (miopia, hipermetropia ou astigmatismo) estão entre as mais frequentes e que podem ser corrigidas com a utilização de óculos, lentes de contato ou cirurgia. Entre outras das causas mais comuns estão a catarata, as doenças da retina, como a degeneração da mácula e do nervo, como o glaucoma. A acuidade visual depende de fatores ópticos e neurais: da nitidez que a imagem chega na retina, da saúde das células retinianas e da capacidade de interpretação do cérebro. A acuidade visual (AV) é medida colocando a pessoa a ser testada a uma distância de 6 metros (20 pés) para ler optotipos – letras, números, símbolos ou figuras – de tamanhos cada vez menores. A acuidade visual normal é chamada de visão 20/20. Acima de 20/200, a pessoa é considerada, virtualmente, cega.

No entanto, o pior cego é aquele que não quer enxergar. A percepção é prejudicada por vários fatores, como o uso de lentes que, em vez de melhorar, prejudicam sua acuidade visual. Essas lentes, como as que conhecemos no uso comum dos óculos, mesmo que invisíveis, se antepõem ao olhar. Aquilo que se apresenta de uma maneira para um, surge diferente para outro. Enxergar, nesse caso, passa por ver, perceber, identificar, descortinar e, eventualmente, prever – dada a condição particular de conseguir unir todas as características que determinam algo – objetos, situações ou ideias através de interpretações díspares. Aqueles que obtém os mesmos padrões de percepção, costumam se reunir em grupos que defendem seus paradigmas com unhas, dentes e tacapes. Os humanos, então, remontam ao comportamento de seus ancestrais e ao antigo hábito de se perfilarem em tribos entocadas em posições imutáveis.

Ajudou-me muito em perceber o quanto a minha miopia ultrapassou o limite físico e se instalou no mental ao ter feito um exercício em que tentei prever os acontecimentos de 2018 – ano de eleição do personagem que comandará nossas discussões durante anos a fio adiante. Está registrado em “Previsões Para Vinte-Dezoito” em uma das edições da Revista Plural, da Scenarium. O que surgia como uma possibilidade subestimada, irrompeu feito uma certeza inaudita. O entendimento que julgava ser o mais evidente, por ser razoável, travestiu-se em ficção de filme B de horror ou uma realidade alternativa do multiverso. Quedamos ameaçados por personagens que um bom ficcionista não ousaria roteirizar, de tão canhestros que são. No entanto, todos já existiam antes. Apenas ganharam a luz do dia, feito um personagem da minha infância – O Monstro Da Lagoa Negra.

Sou daqueles que, apesar de usar óculos materiais, sempre tentou aprimorar o olhar para além das convicções. Para alguns de meu trato pessoal, é considerada irritante a minha postura de “advogado do diabo”, ao contra-argumentar qualquer tema sob o olhar oposto. Tenho “amigos” de todas as percepções ideológicas. Para os mais extremados, se não estou com eles, estou contra eles. No Facebook, tenho evitado postar textos mais extensos porque me cansei de ter que explicar o inexplicável para aqueles que não buscam o reto, mas o caminho em linha reta de suas próprias convicções. Tenho preferido publicar meus textos no WordPress. Entra quem quiser ler. Vez ou outra, solto frases de efeito (curto), a considerar o fato que as mídias são “livros” que guardam todas as suas páginas na eternidade da nuvem.

Portanto, nesta rede, o que ajudará ou prejudicará a defesa de meus argumentos será o Tempo. O quanto penetrei na escuridão para conseguir identificar o que se esconde por trás do véu imposto pelos contraditores da realidade. Guardado pela perenidade, os meus ditos e contraditos determinarão o quanto enxerguei e o quanto obliterei da sociedade brasileira, ainda que muita da minha visão tem a pretensão de ser poética. E, como já disse Borges, “os poetas, como os cegos, podem ver no escuro”. Quem escreve poesia sabe que ao se libertar dos laços que nos prendem ao imediato e ao casual, conseguimos alcançar a causa – a origem de tudo o que nos move. E a causa mais visível da vida como a conhecemos é o Sol. Através da luz que emite, podemos vislumbrar o plano que vivemos. O movimento circular da Terra nos dá oportunidade, em suas zonas médias, que desfrutemos de sua energia criativa.

Por isso, presto minha homenagem ao Sol – a melhor oportunidade de nos reconhecermos menores – em busca de nos tornarmos maiores. Além da capacidade de clarear nosso campo visual, os monstros do pântano – como o citado acima – normalmente têm fotofobia. Para 2020, visão 20/20. E que, ainda que enxerguemos as sujidades dos tempos vindouros, que busquemos a felicidade, quadro a quadro, dia a dia.