Projeto Fotográfico 6 On 6 / Três Por Quatro Centímetros

A intenção do retrato de três por quatro centímetros seria o de poder identificar alguém por seus traços fisionômicos em documentos oficiais – Registro Geral, Passaporte, Carteira Nacional de Habilitação, classista, clubista, empresarial e outros fins. Ultimamente, o reconhecimento fisionômico tem sido usado para liberar certas funções no aparelho celular. Herdado da Burocracia, a identidade 3X4 visaria emparedar quem quer que fosse sob parâmetros predeterminados. Para os que podem abrir mão dessa solicitação, chega a causar certa contrariedade. Para quem está fora das políticas públicas voltadas para as populações carentes, representaria uma maneira de ser reconhecido como cidadão e receber alguma assistência.

Aos longo dos anos, os retratos de identidade usados para as várias identificações setoriais, acabam por contar um pouco de nossa história pessoal. É comum, pelo que eu ouço dizer por aí, não ser do gosto pessoal as imagens frontais do rosto, forjadas à força pela imposição de seriedade, sem sorriso e com o olhar catatônico, dignos de uma identificação oficial. Mesmo essa “encenação” não deixa de carregar certo interesse “arqueológico” pessoal. Tentei garimpar as imagens dos documentos e percebi que vários dos quais me lembrava, se perderam. Ficaram na memória, inacessíveis (por enquanto) pela tecnologia disponível. para os que tenho à mão, fiz um retrato dos retratos. Assim como todas as histórias, são vias de segunda mão.

Aos seis anos…

A minha mãe fazia questão de registrar os filhotes. Tinha medo que se pelava de nos perder. Histórias de crianças “roubadas” não faltavam. Ou para serem vendidas para fins diversos – desde adoção forçada até outros propósitos tenebrosos. O meu pai era de origem paraguaia. O país de origem foi controlada durante décadas pelo ditador Alfredo Stroessner que, diziam nas penumbras dos porões, que viveu se banhando do sangue de criancinhas para continuar vivo. Por muitos anos, era assim que eram justificados o sumiço de meninos e meninas pelas periferias de Assunção. No Brasil, era comum atribuírem aos adoradores do Diabo, o sacrifício de crianças. O fantástico a costurar a mentalidade do povo.

Aos dezessete anos…

Pela época da emissão da minha primeira identidade, eu vivia uma fase mais tempestuosa do que o normal. Adolescente, estava mudando de parâmetros para entender a Realidade “real”. Estava me tornando vegetariano e sentia que o mundo era um teatro com personagens que mal sabiam os papéis que interpretavam. Eu tentava sobreviver em meio à incompreensão dos outros quanto às minhas opções de vida. A cara amarrada da foto, era a que carregava exteriormente. Meses depois, devido ao choque alimentar advindo do vegetarianismo, fiquei tão magro que a foto de Reservista era a de um “aidético”, acunha que cheguei a ouvir nos Anos 80, época do início da chamada “peste gay” – apenas para historiar mais uma locução preconceituosa do povo brasileiro.

Aos 48 anos…

Um salto no Tempo e revelo esta foto que foi tirada digitalmente para a feitura de minha Carteira de Estudante para passar nas catracas da Faculdade de Educação Física na UNIP, onde comecei o curso de Licenciatura, depois Bacharelado. Iniciei nas turmas de meio de ano, em 2009, junto a uma maioria de garotos e garotas que buscavam uma profissão ligada á atividade física em suas várias vertentes – academia, esportiva, como personal trainer – entre outras possibilidades. A minha intenção era a de compreender o meu corpo após o advento da Diabetes, em 2007. A eventualidade de uma futura profissão era remota, mais havia. Fui incentivado pela Tânia, que considerava que estava sofrendo uma espécie de “síndrome do ninho vazio”, depois que as “minhas meninas” iniciaram a despedida do ninho.

Aos 51 anos…

Esta é a “facetta” que apresento na minha atual carteira de Registro Geral. De dez anos antes, creio ter sido a que destaca a fase mais interessante em termos de realizações pessoais e profissionais. Os meus anos cinquenta compreendeu a formatura em Educação Física, a entrada na Scenarium como escritor e minha afirmação profissional com a Ortega Luz & Som. Um pouco antes de completar os sessenta, sobreveio o 2020 pandêmico. Teria várias situações inéditas a enfrentar. Histórias não faltam…

Aos 53 anos…

Esta foto é a que está na minha Cédula de Identidade Profissional do Conselho Federal de Educação Física, expedida em 2014. Comecei a raspar a cabeça por vários motivos. O mais óbvio, a questão da praticidade, já que não tinha tempo para nada, incluindo o de tentar tornar apresentável o cabelo cheio de redemoinhos e falhas devido à calvície galopante. Mais tarde, devido à desproteção capilar, comecei a usar chapéus, boinas e bonés. Proteção contra o frio ou o sol, acabou por se incorporar á minha imagem usual.

Aos 56 anos…

A imagem acima é a da Credencial Plena do SESC. Há outras depois dessa, mas apenas digitais, enviadas via a Internet. Presa a um cartão, é a última. Mostra o provecto senhor com um sorrisinho bacana de quem não precisa provar nada a ninguém a não ser a si mesmo. De 2017, demonstra que o branco tomou conta do corpo e da alma. Mal sabia eu que ainda o mundo nos mostraria que nunca devemos deitar sobre os louros, que a Realidade não nos deixa de surpreender.

Participam:

Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Eu

Eu tenho, durante toda a minha existência consciente, tentado compreender o que seja “eu”.  Certamente, não sou apenas o que se sobressai nas imagens icônicas — cor da pele, idade, feições, roupas que visto ou desvisto, identidade de gênero, condição social, trabalho, nome, estudo, nacionalidade, pensamentos, vontades, desejos, ações e omissões. Ao mesmo tempo e lugar, sou também tudo isso. E muito mais e muito menos do que imaginam. Desde os meus 16, 17 anos, a minha luta é uma tentativa constante de subjugar o ego e emancipar o espírito. Fica difícil para quem não acredita em vida para além do corpo físico entender que isso seja possível. Enquanto eu acredito (sinto) que minha consciência particular seja apenas uma infinitesimal parcela da Consciência Universal, para outras pessoas, a consciência de si termina com a morte. Se isso for a verdade dos fatos e sobrevenha a escuridão total e o Nada após o desmanche das fibras carnais pelo apodrecimento, eu terei transcendido em vida física para além das aparências e da ilusão. Ainda que essa ilusão seja o padrão pelo qual o ser humano se veja e chame a isso de Realidade.

À partir de mim, em sentido horário: Romy, Lívia, Ingrid e Tânia.

2018

“E este registro resume o dia intenso que tivemos. A Família Ortega, reunida com todos os seus componentes durante as últimas 48 horas. Fato raro, nos últimos tempos. Em Inhotim, experimentamos uma imersão no mundo da criatividade humana, aliada à beleza natural do lugar. Está foto foi tirada onde ecoa o som do fundo da Terra ou, pelo menos, a 200 metros de profundidade. Nada melhor para simbolizar a profundidade do amor que sentimos uns pelos outros. Iniciativa da Ingrid, nos propusemos a seguir sua ideia. Depois de quase 600Km, chuva forte, acidentes e trechos ruins de estrada, chegamos a Brumadinho, uma cidade (ainda) pequena e de gente hospitaleira. Devido à correria, talvez tenhamos uma ceia simples, porém estaremos juntos — melhor presente de Natal não haverá!”

A legenda acima, de 23 de Dezembro de 2018, resume o meu sentimento ligado à família. É uma sensação orgânica, que não tem nada a ver com as formulações exteriores impostas pela sociedade. Ainda que haja papai, mamãe e filhinhas. Para confirmar que a vida sempre carrega aparentes surpresas (sempre há uma causa), um mês depois dessa visita a Brumadinho, em 25 de Janeiro de 2019, ocorreu a avalanche que soterrou casas e áreas próximas a que percorremos na região, pelo estouro da barragem de dejetos da Vale, deixando 270 vítimas fatais, além de 11 desaparecidos.

As destemidas e eu…

1997

Eu tenho uma forte identidade com o Mar. Gosto de estar dentro d’água, festejando minhas limitações físicas contra as ondas. Ensinei às minhas crias a respeitá-lo, mas não temê-lo. De alguma forma, parece que abarcaram essa ideia e hoje, sempre que podem, gostam de estar junto ao Oceano. Escrevi sobre a foto, em Julho de 2020:

“Registro de Janeiro de 1997. A Lívia estava com 1 ano e três meses, a Ingrid, quase 5 e a Romy, 7 anos e meio. Estávamos em férias na PG e eu ensinava às meninas a não temerem a água do mar. Assim como tentava mostrar, assim como a Tânia, que deveriam ter coragem ao enfrentar o mundo dos homens, mulheres crescidas que se tornariam um dia. Acho que fizemos bem o nosso trabalho e hoje elas souberam construir os seus caminhos como senhoras de si.”

Aos 13…

1974

Sobre essa imagem, em que apareço com a Fofinha no colo, escrevi um texto — Um Menino — que fala sobre o meu medo de me envolver com as meninas, misto de respeito, admiração, fascínio e atração, que mantenho até hoje. Eis o parágrafo final, eu diria um tanto fatalista:

“Se ele me pedisse um aconselhamento e se ele não estivesse tão longe no tempo, pediria covardemente que nunca se aproximasse das meninas, nunca se envolvesse emocionalmente, nunca se apaixonasse por elas. Porém, advertiria também que ele perderia o melhor da viagem. Os altos e baixos do relevo, as curvas perigosas da estrada e a paisagem sempre inesperada. Diria ainda que podemos morrer por elas, no entanto é por elas que devemos viver.”

Dona Maria Magdalena Nuñez Blanco Y Prieto Ortega e seu filho…

1962

No Facebook, eu já coloquei a uma imagem de minha mãe como foto de perfil. Demorei muito para compreendê-la. Ela prefigurava uma espécie de antípoda em relação à autoconstrução de meu comportamento emocional. Mas finalmente aceitei ser seu filho. Quanto a isso, escrevi:

“Na fase final de sua passagem entre nós, consegui compreender o quanto a Maria Madalena funcionava de forma diferente de mim. Ela era todo amor e eu a buscar comedimento e autocontrole em minhas emoções. Antes dela nos deixar fisicamente, consegui me reconciliar com a condução que ela dera à minha vida. Aceitei que o seu amor me dominasse e tentei retribuí-lo de alguma maneira. Não viverei a lamentar que o não tenha feito. A partir de então, tenho como ideal de ser, um dia, metade do ser amoroso que a menina Blanco foi…”.

No palco do Clube Piratininga, onde realizamos vários eventos nesses 33 anos de OLS.

2001

Meu irmão, Humberto, e eu, montamos uma pequena empresa de locação de serviços de sonorização e iluminação. Estamos há cerca de 33 anos em atividade ininterrupta, sem contar o período mais grave da Pandemia de Covid-19, já que nesse caso, o mundo todo parou. A nossa estratégia foi ocupar um nicho de mercado restrito, de eventos menores em proporção física. Mas aprendemos que para quem nos contrata, isso não é o caso. Eu me lembro de um episódio em que ao chegar ao local, o avaliei e disse em voz alta que o palco era pequeno. Antes que viesse a completar o que eu queria dizer, a dona do espaço ouviu e se mostrou ofendida. Pedi desculpa e fiz ver que o que queria dizer é que o equipamento que usaríamos deveria se adequar ao lugar, sem intenção de crítica. Além disso, percebi que a prestação de serviços é também um trabalho de relações públicas. A Pandemia me mostrou que minha atividade profissional é essencial para mim como Homem. E sei que isso é também verdadeiro para a maioria das pessoas. Ser autônomo como pessoa, produtivo como ser, contribuinte para a manutenção material familiar faz parte de minha identidade como cidadão.

Minha amiga e companheira de ScenariumRoseli Pedroso — e eu, por ocasião de REALidade, meu primeiro livro.

2017

A identidade mais importante e a que mais demorei para assumir foi a de escritor. Principalmente por respeitar demais esse título. Escrevo desde os meus 8 ou 9 anos. Com o tempo, o amor pela palavra foi crescente. E continuo cada vez mais fascinado pela criação de realidades. Foi e é o que me define como pessoa. Porém, apenas recentemente saí do armário. E muito se deve à Scenarium, onde comecei a ser chamado como autor por sua mentora, Lunna. Ter um livro publicado foi apenas a coroação de uma atividade que dá a mim a oportunidade de expressar e documentar minha visão de mundo. Hoje, consigo dizer sem corar (muito): eu sou um escritor!

Participam:

Isabelle Brum
Darlene Regina
Lunna Guedes
Roseli Pedroso
Mariana Gouveia

Coleção “As Idades” / Quase 60 / 59*

Eu sou um homem às portas dos 60 anos, que completarei no libriano outubro do próximo ano. Casado, três filhas, tenho cultivado uma proverbial barba branca na tentativa de abrigar um aspecto mais maduro do que a minha alma juvenil (imatura) deixa entrever. A minha imagem veterana tem sido auxiliada pelo desenvolvimento de uma voz mais grave, graças ao envelhecimento das cordas vocais. Assim, como os olhos, pelos (que caem ou embranquecem), pele e outros órgãos que definham, certos aspectos da passagem do tempo físico (rotações em torno do sol) nos transformam gradativamente em outras pessoas ao longo da vida. Somos os mesmos, mas outros.

O que não muda é algo a que chamo de energia primordial — uma identidade pessoal — que não envelhece, transcende o tempo e me acompanha até que venha a me desvencilhar do corpo que a carrega. A minha principal atividade como Obdulio é me procurar, me encontrar e me perder. Descobri dentro de mim lugares inacessíveis. Muitas vezes, quando chego perto de alcançá-los, desisto. Eu me sinto bem em me desdobrar em mistérios… Ou talvez seja apenas covardia. Enquanto não chega o esquecimento na dissolução de moléculas na revolução atômica da morte… revolução

*Texto escrito em Novembro de 2020.

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Coleção “As Idades” / O Feitiço Do Tempo

Há quem defenda que o Tempo não existe, de fato. Tradicionalmente, poderia se dizer que Tempo é a duração dos fatos o que determina os momentos, os períodos, as épocas, as horas, os dias, as semanas, os séculos, etc. Teria surgido a partir do Big Bang, momento em que o Tempo começou a correr, avançando sem parar desde então. A palavra Tempo pode ter vários significados diferentes, dependendo do contexto em que é empregada. Eu, pessoalmente, em contraposição a essa ideia de Tempo contínuo de Cronos, também deus das Estações, gosto da vertente dada por Kairós, seu filho, que propunha uma não-linearidade do Tempo, o valorizando a vivência do momento oportuno. Teorias mais ousadas propõe que o Tempo caminharia em duas direções contrárias, como na mitologia da Roma Antiga, em que Janus, deus dos começos e fins, é geralmente descrito como um homem com duas faces olhando em direções opostas. Além das teorias baseadas na Física tradicional, através de experimentos matemáticos em Física Quântica foram realizadas simulações de como o Tempo funcionaria nessa dinâmica — sem usar a gravidade —, mostrando que o “Tempo Quântico” pode ser tão bizarro quanto os demais fenômenos na escala das partículas atômicas. Isso pode ser relevante para futuras tecnologias. Computadores quânticos que tirem proveito dessa “ordem temporal quântica” para executar operações poderão superar os dispositivos que operem usando apenas sequências fixas. Eu, pessoalmente, sem me ater a teorias de como o meu corpo se desgasta a cada tic-tac do relógio, a duras penas tenho conseguido viver o Presente que creio ser o único Tempo que importa. Há pouco Tempo, quando me desloquei para o Futuro, passei por uma crise pesada que quase me fez sucumbir. Porém, estando vivo, neste momento e lugar, estou festejando a minha história pessoal através do Passado, o que é sempre uma maneira de viajar no Tempo, ao mesmo Tempo que tento decifrar o seu feitiço.

Eu e meu neto, Bambino.

Aos 60 (2021)

Eu sou um homem às portas dos 60 anos, que completarei no libriano 9 de outubro próximo. “Casado, três filhas, tenho cultivado uma proverbial barba branca na tentativa de abrigar um aspecto mais maduro do que a minha alma juvenil (imatura) deixa entrever. A minha imagem veterana tem sido auxiliada pelo desenvolvimento de uma voz mais grave, graças ao envelhecimento das cordas vocais. Assim, como os olhos, pelos (que caem ou embranquecem), pele e outros órgãos que definham, certos aspectos da passagem do tempo físico (rotações em torno do sol) nos transformam gradativamente em outras pessoas ao longo da vida. Efeito do feitiço do Tempo. Somos os mesmos, mas outros. O que não muda é algo a que chamo de energia primordial uma identidade pessoal — que não envelhece, transcende o Tempo e me acompanha até que venha a me desvencilhar do corpo que a carrega. A minha principal atividade como Obdulio é me procurar, me encontrar e me perder. Descobri dentro de mim lugares inacessíveis. Muitas vezes, quando chego perto de alcançá-los, desisto. Eu me sinto bem em me desdobrar em mistérios… Ou talvez seja apenas covardia. Enquanto não chega o esquecimento na dissolução de moléculas na revolução atômica da morte”.

Identidade (1967)

“Esta foto, tirada provavelmente aos seis anos, foi feita por ocasião da primeira carteirinha de identidade. A minha mãe era muito ciosa com relação aos registros sociais. Na verdade, tinha um medo, que se pelava, de me perder por aí…”. Identidade percebi que não fica restrita a um documento. Perpassa por tantas vertentes e variantes que apenas intimamente podemos saber quem somos… se formos totalmente honestos conosco ou tivermos discernimento e coragem para tal.

Ciclos da águas…

Água (2014)

“Esta foto pode parecer de suprema ousadia e talvez, até, politicamente incorreta, mas não se preocupem, esse banho durou apenas cinco minutos. Sempre disse que o maior recurso do Brasil era a água. Eu me penitencio de, mesmo sabendo disso, não ter tido muitas das vezes os cuidados necessários para economizar esse bem preciosíssimo. Agora que vivemos a pior estiagem dos últimos cem anos na região Sudeste, se bem que ainda mantendo vários hábitos impensáveis em alguns lugares realmente assolados por secas severas, como tomar um banho por dia, pelo menos, é imprescindível que aprendamos a lidar com a água de maneira a valorizar cada gota”. Passados sete anos, nossos administradores preferiram não acreditar no planejamento. Afinal, são tantos recursos disponíveis que ninguém notaria se, como num curso de rio, tiverem sido desviados para destinos ignorados que não a precaução com a seca há muito Tempo prevista.

Riponga (1999)

“Durante muito tempo adotei um perfil riponga, para a tristeza da Tânia, que não sei como aguentava o visual daquele cara desgrenhado. Do meu lado, a gordinha Ingrid, com cara de quem sempre estava disposta a aprontar”. Nessa imagem, visto uma camiseta que utilizava como uniforme do baile de Carnaval ao qual provavelmente iria fazer mais tarde.

No Outono de minha vida…

Outono (2021)

Outono de 2021, no outono de minha vida. Mas ainda que as minhas folhas caiam, ainda posso dizer que espero ultrapassar o Inverno e alcançar a Primavera, mais uma vez. O que não será mais possível para centenas de milhares de pessoas neste País que nega direito à vida. O pior é que haja tantos palhaços que prefiram ver o circo pegar fogo, quando não são eles mesmos a acender o fósforo. O que realmente espero, além de sobreviver é que, nada mais, nada menos, venham a perceber o mal que ajudaram a propagar e sofram o pior dos arrependimentos”.

Aos dois, a dois…

Aos dois, a dois… (1963)

“Eu, então com dois anos e meio e minha irmã, Marisol, com menos de um. Desde então, já apreciava a bola”. A família morava na região central de São Paulo, no Largo do Arouche, e mamãe nos levava às praças arborizadas e bem cuidadas de então — República, da Luz, Princesa Isabel, entre outras. Passados quase sessenta anos, o movimento do Tempo “renovou” as orientações e vivemos um ciclo de declínio institucional. Isso, muito devido ao que viria a acontecer logo depois — o Golpe Militar de 1964 — que atrasou o nosso desenvolvimento nas práticas participativas e valorização do bem público como coletivo. O meu irmão caçula, Humberto, nasceria por volta de seis meses à frente, enquanto nosso pai passaria a ser perseguido por suas ideias pelo Regime de Exceção.

O Homem De Neve

Uma das constatações advindas pelos efeitos da Pandemia de SARS-COV-2, é de como os vários níveis de compreensão da vida se entrechocam, o que é perfeitamente normal em sabendo que não somos máquinas fabricadas em série. A Sociedade brasileira acabou por se dividir em preferências abaixo da racionalidade básica e mesmo pessoas alegadamente inteligentes, bem formadas e articuladas professam ideias que vão contra a dignidade humana.

Uma das questões, afora a desconfiança quanto a Ciência, a mesma que proporcionou que possam propagar ideologias espúrias por modernas máquinas de comunicação criadas por técnicas científicas, é quanto ao Politicamente Correto. Quem está acostumado ao comportamento engendrado pelo sistema de dominação desde a chegada dos portugueses ao Brasil pelo extrativismo, colonialismo, tráfico humano, escravidão, monoculturas, servilismo, segregação econômica, apartheid racial escamoteado se sente atingido.

Com o crescimento da conscientização das classes sociais alijadas das benesses do desenvolvimento econômico com a consequente falta de ensino de qualidade para si e seus filhos, o aumento exponencial de subempregos (bicos), a desregulamentação das leis de proteção ao trabalho, retirada de direitos sociais e várias outras medidas que visam a impedir que a Sociedade possa minimamente respirar um ambiente mais arejado, tem tornado cada vez mais distante a possibilidade da busca por equanimidade na nação brasileira como um todo.

Antes, ingenuamente eu cria que as novas gerações, na presunção de que apresentassem uma cabeça mais libertária, tivessem uma visão mais avançada da sociedade no terceiro milênio, sob a égide da democracia racial. Porém, aos poucos pude perceber que alguns ditos populares refletem a sabedoria do tempo: “os frutos não caem longe da árvore”. A saber que seja compreensível a contestação dos pais pelos filhos, é mais comum que os descendentes reproduzam o comportamento dos ascendentes.

Nesse caso, quase todos os preconceitos de origem pregressa passam para o ideário das novas gerações. Preceitos de séculos antes, desde a gênese da formação do povo brasileiro surgem como matriz do comportamento dos mais jovens. Além disso, ao longo dos séculos incorporamos tendências chegadas de fora, contrapondo às nossas características básicas, como a intensa miscigenação e a riqueza cultural daí advinda.

Outra ingenuidade da minha parte, esfacelada pelos “novos” tempos, foi a de que a classe artística como um todo estivesse unida contra a ideologia sombria que não é apenas conservadora, mas retrógrada, repressiva a antagônicos, que não admite que haja um mínimo sinal de igualdade social e muito menos protagonismo. Como disse um amigo, são apenas “tocadores de instrumentos” (trabalho preferencialmente com música) que não desenvolveram uma sensibilidade especial quanto à natureza humana.

Quando esses “novos conservadores” demonstram descreditar da perspectiva do politicamente correto, a defesa de suas posturas agridem os despossuídos, os diferentes, os mais pobres, os de identidade não conformista. Não adoto mais o termo “minoria” para a parcela da população marginalizada, já que devido à concentração de poder econômico e consequentemente político, a minoria (em quantidade) é composta por quem tem ditado desde sempre as normas práticas sob as quais vivemos, acima da lei constitucional.

O texto abaixo, foi reproduzido por um cantor e músico, bonachão, engraçado e “inteligente”, pelo que me era dado conhecer. Dado o fato do tema girar em torno dum boneco de neve através da qual é construída uma narrativa “conservadora”, que acaba por se denotar reacionária, provavelmente foi importada de uma matriz desse viés, alhures.

Ao músico, como vários outros, deixei de seguir e, por fim, cortei a “amizade” na rede social, em vez de responder na sua página. Não é porque queira criar uma bolha de aceitação às minhas ideias. Apenas não tenho tido estômago para certos posicionamentos. Cresceu a percepção, após sofrer contestações que passavam da argumentação a ataques pessoais, começam por desmerecer a minha fala por eu pertencer a tal ou qual partido, sem saberem que minhas análises não são partidárias, mas políticas, entendidas no padrão da Antiga Grécia de que a Política é arte da convivência — percebi o quanto são recalcitrantes. Não mudarão com argumentos, por mais equilibrados que sejam, aliás, muitas vezes por causa disso mesmo. A seguir, a análise do referido texto. 

“Nevou noite passada (se estivesse em Santa Catarina…).

8:00 Eu fiz um boneco de neve (boneco é boneco, assexuado).

8:10 Uma feminista passou e me perguntou por que eu não fiz uma mulher de neve (os bonecos de neve normalmente apresentam uma figura sem conotações sexuais, arredondadas. Teria acrescentado um pênis para identificá-lo?).

8:15 Então, fiz uma mulher de neve.

8:17 Minha vizinha feminista reclamou do peito volumoso da mulher de neve dizendo que ela tinha sido feita com olhar masculino (aqui pressupõe que uma defensora dos direitos da mulher odeie a forma do corpo feminino, à priori).

8:20 O casal gay que morava nas proximidades deu chilique dizendo que eu deveria ter feito dois homens de neve (‘chilique’ é um termo depreciativo. Quem é libertário, normalmente não se prende a esses detalhes, suponho. No máximo, talvez fizesse outro boneco de neve para acompanhar o primeiro, mesmo que já não fosse mais um “homem”, mas  “mulher”, lembram? Deixa pra lá, o ato falho serve ao propósito do argumento ao qual se quer chegar).

8:22 Um homem-mulher-trans perguntou: por que não fez apenas uma pessoa de neve com partes destacáveis? (mais uma vez, trabalha com a ideia de sexualizar as identidades como se elas se conformassem apenas aos órgãos específicos do corpo. Será por isso que falam tanto em cu?).

8:25 Uns veganos reclamaram do nariz de cenoura, alegando que vegetais são alimentos e não decoração (eu, quando fui vegetariano, no começo era um porre, mas nunca criticaria um detalhe pequeno como esse. Seria mais fácil, como eu adoro cenoura, comê-la).

8:28 Fui chamado de racista porque o casal de neve é branco (acho que, em se tratando de neve, isso não tem cabimento, mas serve ao discurso que se apega ao irracionalismo. No entanto, como normalmente essa turma é contra o desenvolvimento limpo e sustentável, uma neve com alto teor de poluição talvez ocorresse).

8:31 O muçulmano do outro lado da rua exigia que a mulher de neve fosse coberta (voltou a ser mulher).

8:40 A polícia chegou dizendo que alguém se sentiu oprimido por meu discurso de ódio (a Polícia como padrão trabalha a favor do status quo. Nem se daria ao trabalho de atender a essa ‘denúncia’ em relação a um simples boneco de neve).

8:42 A vizinha feminista reclamou novamente que a vassoura da mulher da neve precisava ser retirada porque representava as mulheres em um papel doméstico (sou homem e adoro varrer. Para mim, é um exercício relaxante. Como originalmente era um homem de neve, eu me sentiria representado, não atacado).

8:43 O oficial de justiça me intimou por fascismo (infelizmente, o Fascismo está entranhado em nossa sociedade, a ponto de eleger um representante majoritário e dizer que movimentos antifascistas são contra seu governo militarista e genocida).

8:45 A Globo me entrevistou. Perguntou se eu sabia a diferença entre homens de neve e mulheres de neve. Respondi: ‘bolas de neve’ e agora sou chamado de sexista (identificar detalhes anatômicos não prefigura sexismo, mas dizer que homens são naturalmente superiores às mulheres e que devem agir para mantê-las em seus devidos lugares de subserviência).

9:00 Apareci no noticiário como fascista, racista, homofóbico, sexista, machista, xenófobo, trans fóbico (ao final, resulta que vestirá a carapuça, verão).

9:10 Me perguntaram se tenho algum cúmplice. Meus filhos foram levados pelo Conselho Tutelar (esse extremismo preconizado pelos que se auto intitulam “conservadores” é o medo de verem suas posturas tornadas criminosas por si só. Ainda não são e talvez nunca o sejam, tristemente).

9:29 Manifestantes de esquerda, ofendidos por tudo, marcharam pela rua exigindo que eu fosse preso (estar ofendido ‘por tudo’ da maneira que está é o meu sentimento atual. Indignação pela situação pelo qual passa o País é, no mínimo, o que deveria ser sentido e ser demonstrado por todos).

Ao meio-dia, tudo derretia… (menos o preconceito arraigado).

Moral: não há moral para essa história. Isso é o que nos tornamos com a imbecilidade do politicamente correto pelo que, em breve, respirar ofenderá a alguém (se ‘respirar’ for para continuar a perpetrar o mal, a aumentar as mazelas, a aviltar a humanidade, a apelar para a violência, a matar os diferentes por serem diferentes, como os Nazistas fizeram, instaurar o preconceito como prática, então é ofensivo à causa da ‘paz entre os homens de boa vontade’, como está no Livro que dizem defender. Que derretam naturalmente, sob a luz da construção de uma sociedade realmente solidária).”

Foto:  Foto por Hui Huang em Pexels.com