28 / 03 / 2025 / Dulce*

Dulce — doce, em espanhol — era realmente uma presença doce. Pequena, com as patinhas defeituosas, o peito e a barriguinha peladinha, ela não sobreviveria se vivesse livre. Sendo uma calopsita, de origem australiana, não encontraria espaço e clima ideais para sobreviver por aqui. Nós a recebemos novinha e ficou com conosco por pelo menos 13 ou 14 anos.

Discreta, nos últimos anos estava sozinha, sem o companheiro Horácio, que faleceu inesperadamente. A relação entre eles não era muito harmoniosa ou, pelo menos não era interativa. A gaiola onde ficavam, nós a colocávamos para fora de manhã e a recolhíamos à tarde. Quando a temperatura estava mais alta, ficava até mais tarde e, às vezes, até passava a noite fora.

Acredito que ela gostasse de ficar no quintal, já que reclamava quando não a púnhamos em contato com os outros pássaros, as árvores e plantas do local, principalmente quando percebia movimento na casa. Ao encontrá-la, ela esticava uma das patinhas e uma das asas, que eu soube se tratar de um ato de satisfação. Normalmente, colocava comidinha no seu potinho, mas quando esquecia, também se fazia ouvir, reclamando.

De vez em quando, a soltávamos dentro de casa. Mas ela não gostava de que a pegássemos, dando picadinhas delicadas, como se protestasse. Vez ou outra, conversava com ela através de assovios, porém nunca consegui me comunicar convenientemente. Era comum, a Bethânia correr em direção à sua gaiola para assustá-la, por pura diversão. Quando a gaiola se esvaziou de sua presença, ela correu, mas parou assim que percebeu a sua ausência. Assim como ao passar no corredor que ela ficava, também a senti.

Ela compunha a nossa paisagem emocional e visual. Tentava me aproximar dela e entender o que ela estaria “pensando”, “sentindo”. Será que a sua solidão seria igual à nossa? Será que sabia estar presa a um espaço restrito ou aquele mundo era suficiente para sua expressão? Já que sempre viveu assim, institivamente sequer “imaginaria” que seus irmãos voassem livres, buscassem o seu próprio alimento, namorassem, procriassem e estavam à mercê de predadores, principalmente os seres humanos? Era feliz ou felicidade é uma quimera tipicamente humana?

Ontem, a Tânia compôs um memorial com a gaiola da Dulce. Ela a preencheu com plantas. Acho que é uma linda homenagem à vida. A nossa promessa é que nunca mais teremos pássaros presos em nossa casa, mesmo porque tudo começou em atendimento a um desejo das meninas quando mais novas, que receberam as calopsitas de presente. Em nosso jardim, temos pássaros constantemente a nos presentear com seus cantos e voos. Prendê-los para mim é um ato de pura inveja de nossa parte pelas asas que possuem.

*Texto de 2021

Cheiro De Mulher*

Domingo frio e chuvoso e, logo cedo, começo a pensar, por efeito dos poemas que postei ontem e no dia anterior, que faziam parte de um projeto musical que não foi adiante, sobre a possibilidade de um homem conseguir se colocar no lugar de uma mulher e tentar descrever emoções e sentimentos que são tão particularmente delas, que só podemos, como homens, arranhar.

A minha voz é masculina e, ouso dizer, para horror de algumas pessoas que confundem essa consciência masculina de macho, com machismo, que eu me sinto muito confortável em ser um homem, ciente de todos os defeitos que isso possa acarretar, incluindo a não percepção correta do mundo como um todo. Ainda que a vergonha causada ao meu gênero pelos machistas de plantão me entristeça profundamente, quando não me enoje de tal maneira que penso em pedir desculpas a cada mulher que passe.

Eu não me importo ou, de outra parte, até apoio quando alguém se aceita não conformado com o seu gênero e decide se identificar como de outro gênero. Todos mais próximos de mim sabem o quanto admiro quem tem essa disposição em ser aquilo que sente ser. Tenho amigos queridíssimos que se declaram, se posicionam, “se vestem” e se mostram aquilo que sentem ser. Eu, de minha parte, amo às mulheres e tenho certa inveja de alguns predicados especiais que elas detêm, como o de sentir cheiros, por mais discretos que sejam. Adiante, no último poema da trilogia, sou eu, homem, que expressa se apaixonar por um cheiro de mulher.

CHEIRO DE MULHER

Passei pela multidão e entre tantos, a senti
Entretanto, ao procura-la, não a vi
Absorvi seu aroma por minha narina
Respirei um novo ar, que mudou minha sina

Não era Chanel Nº 5 ou qualquer outro perfume
Era o seu cheiro de mulher, em profundidade e volume
Envolvente, penetrante, extasiante e traiçoeiro
Porque logo que o senti, o perdi, o tomei por derradeiro

Como encontrá-la, como procurá-la no povaréu?
Como perseguir a fragrância que me deixou ao léu?
Quem sabe, um dia, em meus braços não a tomarei?
Então, em vez de possuí-la apenas por um sentido, por inteira a sentirei…

*Texto publicado no Facebook em 2015

#Blogvember / Maçã Envenenada

Quem inveja, poderá até reconhecer o seu sentimento e buscar diminuí-lo ou até eliminá-lo. Mas, pelo que eu vejo acontecer, é algo que se instala na pessoa de forma autônoma, como se fora uma doença – um câncer com metástase. E a consome pouco a pouco, resultando em estágios crescentes de angústia e pesar, como se morresse um ente querido a cada dia. Como escreveu Lua Souza, em Estratosférica: “Diferente da maçã envenenada… a dor incurável da inveja mata a prazo”.

Eu (graças a Deus?), não sofro desse mal. Admiro quem consegue realizar certas proezas em variadas áreas de atuação, mas curioso que sou de meu próprio percurso, não trocaria a minha vida pela de outra pessoa, por mais talentosa que seja. Gosto de certos autores, como Machado, cujo estilo elegi como marca do meu, apesar do anacronismo. Sem a maestria na construção de personagens, obviamente. Aos poucos, fui desenvolvendo outras características que tinham como base a escrita do Bruxo do Cosme Velho, porém a admiração pelo viés de fundo psicológico continuou intacto. A admiração gosta de preservar a fonte original acima de quaisquer maledicências, porém a invejoso parece querer aniquilar quem é o objeto de sua origem.

O mais certo é que a inveja mata o hospedeiro lentamente, como se o veneno da emulação insidiosa em vez de atingir o invejado, faz apodrecer dolorosamente quem o experimenta. O invejoso pode ser perigoso, mas por menos que mereça é quem mais necessita de compaixão.


Participam: Suzana Martins / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Mariana Gouveia

BEDA / A Medida De Todas As Coisas

A verdadeira medida de todas as coisas
é a Inveja!
Por sua percepção,
sabemos o valor do que se deve querer…
abrangendo o bem querer…

Pelo desejo de ter o que o outro tem: os objetos,
os espaços,
o ar,
o respirar,
os amores,
os corpos,
as vidas,
as obras
e as sobras.

Aquele que Inveja tem um objetivo a alcançar,
um caminho a seguir,
mesmo que seja o caminho de um outro
que foi bem-sucedido antes.

O invejoso opera no ambiente de trabalho,
na política,
na escola,
na família,
nos relacionamentos pessoais…
ele se alimenta do que deseja,
e bebe a peçonha da competição com prazer,
a defecar escárnios
pelas pequenas conquistas alheias…

A Inveja mede o talento,
afere o conhecimento,
fere o discernimento,
se apropria do avanço,
copia o desempenho,
favorece o sistema,
valida o progresso material.

Sermos invejosos nos torna iguais…
Nos abastece de fervor
pela Pátria,
pela terra,
pelo valor
de sermos maiores
em bundas,
em mamas,
em caralhos,
em dinheiro…

A Inveja nos beija a boca todos os dias…
Esconde-se em nossas casas,
nas salas,
nos quartos,
na arquitetura social…
a Inveja se oferece em propagandas e pelas esquinas…
Na arte,
Na filosofia,
No pensamento…

Para o nosso bem, somos criados invejosos.
Crescemos estimulados a sermos outros.
Somos instados a idolatrar o ter.
Para nunca buscarmos a plenitude do Ser.
A viver a sensação de estarmos em haver.
Buscamos a Inveja para ser nosso patrão.
Tornamos a Inveja o nosso melhor padrão.
Invejamos a Inveja e ao outro a nos invejar…

Imagem: Foto por Kulbir em Pexels.com

Participam do BEDA: Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia / 
Cláudia Leonardi / Darlene Regina

Mulher De Vermelho Fogo

Patrícia, Artur, Júlia e Vicente personagens de Mulher De Vermelho Fogo

Há oito anos, voltava de uma visita técnica a um espaço onde faria um evento através da Ortega Luz & Som. Na direção do carro, um colega de trabalho de muitos anos, músico e organizador da banda que faria a apresentação, parou no semáforo da Teodoro Sampaio, quase esquina com a Dr. Arnaldo. Pela faixa de segurança vi passar uma moça de presença diáfana vestia um vestido leve, esvoaçante, cabelo solto. A roupa que a encobria não evidenciava as formas de seu corpo, mas a sua presença destoava do trânsito caótico como se fosse uma vestal em meio a guerra, exalando beleza por todos os poros. Fiquei impressionado pela aparição e disse ao meu amigo: “Olha, que linda!”. Ele respondeu: “Ah, eu conheço. Trabalha lá…”. Pensei: “Caramba! Parece uma das minhas filhas!”

O meu amigo, tecladista, trabalhava em uma casa de encontros, tocando em uma das bandas que se revezavam na animação do ambiente. Quando soube que ela era uma garota de programa, vi reforçada a minha convicção de que preconceituamos pela aparência por mais libertários que pretendamos ser. Ali, estava uma moça naturalmente bela, que poderia ser qualquer uma, que chamava a atenção por caminhar como se o mundo à sua volta não existisse. Porém, ele existia. E o mundo faz isso com as pessoas — as devoram e as vomitam equalizadas. Comecei a imaginar as circunstâncias que levaria alguém a entrar para esse universo estranho, fascinante, perigoso e, apesar de evidente, oficialmente rejeitado. Nessas circunstâncias, surgiu Garota De Programa em que conto a história de Patrícia. Nele, não julgo, mantenho uma voz passiva e apenas passo adiante uma história que parecia possível, mas não provável.

Até que, após publicá-la em 2013 no Facebook, alguém me revelou pelo Messenger: “Cara, você contou a história da minha vida!”. Fiquei entre emocionado e extasiado. Havia tocado a sensibilidade de alguém com algo surgido em minha imaginação, ainda que baseado em informações aleatórias. Quando Weslei Mata me perguntou se eu tinha algum texto que pudesse vir a ser trabalhado por ele para se transformar em roteiro para cinema, ofereci aquele que consubstanciou-se em Mulher De Vermelho Fogo — tendo Patrícia, a única personagem que mantém o nome original no curta, como centro da trama.  No roteiro, Wes (como o chamo) elevou o tom do confronto entre as realidades, revelando emoções exacerbadas dos envolvidos até um final explosivo e surpreendente. No meu conto, ainda que também tenha um desfecho inusitado, é diferente, mas não incomum, como vim a descobrir.

Participei como observador-consultor de parte da gravação do drama. Foi uma experiência enriquecedora. A qualidade interpretativa e a entrega dos atores — Fernanda Valverde, Nalin Júnior, Theo Hofmann e Bárbara Pochetto; aliada ao talento dos realizadores — do diretor Weslei Mata e da cinegrafista Camila Marchini — gestou uma produção cativante pelo teor humano e carga erótica, mesclada à violência que irrompe gerada por sentimentos confusos das personagens — amor, ódio, ciúme, inveja, desejo — em uma produção que será apresentada brevemente pela St. Jude Filmes. Aguardemos…