“Nenhuma das chaves que possuía podia decifrar os segredos dos [invisíveis] cadeados”, por Flávia Côrtes, em As Estações
o que queremos nem sempre é o que queremos muitos são desejos que queiramos que os queiramos outros são quereres emprestados de gerações mortas estamos vivos desejando nos libertarmos de tantas demandas são fôrmas externas que nos modelam desde tempos imemoriais violência contra os nossos corações imaturos vá por esse caminho de destino conhecido ficará a salvo me salvará de que? se quero experimentar o caminho tortuoso da indecisão e do inesperado? estabilidade sensaboria insensibilidade sem uma dor para chamar de minha? perderá tempo oportunidades se perderão… perdição é o que eu quero se não gosto do que espero e o que esperam de mim… há quem queira decifrar segredos de cadeados atados a ferrolhos pesados quero o impossível decifrar códigos de invisíveis cadeados de querências sem fim ir pelas manhãs de cidades fantasmas adentrar por portas sem batentes seguir por portais para o outro lado de muitos mundos invadir campos não explorados e não cercados de horizontes marcados lusco-fusco de meu olhar atravessado e profano quando quero chegar não existe resiste é o quanto desejo me aprofundar me aproximar do âmago do nada redentor e definitivo estarei morto e feliz a sentir que não tenho fronteira apenas um estado de nenhuma beira…
Comecei a fazer caminhadas matutinas. Uso todas as desculpas possíveis para alongar os meus percursos. Dessa vez, foi a de sacar dinheiro no banco distante 2 Km, para fazer a feira. Aproveitei para registrar os personagens da Vila Nova Cachoeirinha, o bairro onde moro, na Zona Norte. São Paulo é uma cidade-arquipélago. São bairros-vilas-ilhas dentro da mesma zona, em zonas dentro de zonas, cada uma com características particulares. Registrei instantâneos da vida que pulsa.
Fósseis modernos…
Nesta foto, encontrei marcas que registram a passagem de um cão que pisou em cimento fresco. Eu conheço esse registro arqueológico há alguns anos. Eventualmente permanecerá bem mais tempo do que quem fez viverá. Assim como os rastros de antigos seres que dominaram o planeta, os cães não deixam de percorrer a mesma trilha.
Cegos e surdos…
O comércio de rua proliferou por todos os cantos com o crescimento da crise econômica. A Pandemia apenas fez aflorar o aparecimento de mais personagens que vivem e sobrevivem através dessa atividade. Neste caso, um vendedor de “produtos importados” — cigarros paraguaios e isqueiros chineses, assim como os nacionais CDs de filmes pornôs e doses de destilados, principalmente aguardente. Negócio irregular, produtos contrabandeados, o crime é não termos condições de gerarmos trabalho digno para todos.
Participação especial de Camila e Elisa Maria…
Fundamentais personagens no funcionamento da cidade, invisíveis ainda que vistam roupas chamativas, refletoras, os homens da limpeza pública labutam a recolher o resultado da falta de educação coletiva dos cidadãos paulistanos. São Paulo é uma cidade de emigrados. Muitos não se sentem pertencer à metrópole — gigante e inumana. Alguns a tratam como inimiga. Essa talvez fosse uma explicação, mas não apenas isso. Certa ocasião, eu ouvi um sujeito jogar um papel no chão e dizer logo em seguida: “estou ajudando os lixeiros a terem o que fazer” — era um típico elemento da elite paulistana.
Companheiros de jornada…
Logo adiante, no percurso da caminhada, já retornando, encontrei outro personagem típico da vida paulistana, não apenas na Periferia, mas espalhado por toda a cidade. Aquele que busca no lixo a sua sobrevivência. São pessoas desterradas, sem moradia fixa, alimentação incerta, mas que nunca deixam de contar com amigos fiéis. Essa imagem me fez lembrar de algo que li — o que mais vale na vida não é a jornada nem a chegada, mas a companhia…
Desmascarados..
Logo cedo, ouvi a triste notícia de um assalto que vitimou dois feirantes que saíam para trabalhar às 4h da manhã. O pai estava internado, o filhou veio a óbito. Os casos de violência aumentarão cada vez mais — um dos efeitos da recessão provocada em parte pela Pandemia, em parte pela incompetência governamental. Não ajuda em nada o povo não colaborar. Nesta imagem, os feirantes e a compradora estão sem máscaras. Muitos outros feirantes também não as utilizam. Lidam com dezenas de pessoas a cada turno, acordam de madrugada, têm um trabalho pesado. O dilema entre viver e sobreviver. As feiras de rua e os feirantes são quase uma instituição em São Paulo, mas estão entre os locais e vetores que mais favorecem a proliferação do vírus da Covid-19. Para diminuir o contágio, uso álcool em gel e lavo os produtos ao chegar em casa, mas muitas pessoas não o farão. Quantos teriam se contagiado hoje?
Estão no ar, o vírus e o avião…
A paisagem da Periferia, aliás de toda a cidade, apresenta um personagem invisível. No ar circula um agente que vitimará, até o final deste mês, a 300.000 brasileiros. Muitas dessas mortes, ocorreram causadas por um projeto genocida do governo federal. Tornou-se de seu interesse estender o mal que uniu a incapacidade de governar a um viés ideológico de cepa fascista. Visando desde o início se perpetuar no poder, “aquele que não se deve nomear” atua sucessivamente na construção de uma estrada assentada sobre corpos dos cidadãos “dispensáveis”. Dentre todos os personagens urbanos, o vírus da SARS-COV-2 tornou-se onipresente e o Ignominioso é o seu patrocinador.