BEDA / Desaparecido

Buongiorno, querida!

Acho que lhe devo isso. Ainda que talvez você não mereça. É apenas um palpite. Porque, sabe muito bem, não sou um sujeito totalmente civilizado. Mantenho teimosamente várias características do garoto punk que fui. Isso a atraiu, sendo muito mais jovem que eu, segundo você mesma me disse. Mas o homem juvenil que procurava era um que também deveria reviver consigo o percurso de trilhas que já havia percorrido. Sei que não daria em nada. Afinal, me encontro nesta encruzilhada em que, mesmo sendo já um velho, continuo a me sentir como um garoto sem rumo. Devo ir para um lado ou paro outro?

Estou num vagão de Metrô. Na telinha do vagão apareceu o meu rosto, em que há um pedido de ajuda para me encontrar desaparecido, anunciava. Cortei a barba com a qual apareço. Sei que não foi você que me colocou nessa condição. A minha ex-mulher, talvez. Talvez, uma das minhas filhas. Falarei com elas, depois de fazê-las sofrer um pouco. O amor que elas me têm é condicional. Aceito, mas com certa raiva. Esse rancor é inédito para mim. E um tanto inebriante senti-lo. Percebi que estava mudando depois de toda uma vida represando emoções e sentimentos que deveriam ter sido extravasados no momento em que os sentia. Eu achava que faria mal a mim e às outras pessoas expressá-los. Ao contrário, passei a cultivá-los. Eu os adubei com agrotóxicos venenosos a cada minuto. Cresceram exponencialmente.

Quando a chamo de “querida”, não é uma mentira. Quanto eu a quis e a desejei! Eu a chamava de “meu viagra”. Era só vê-la que ficava excitado. Eu ficava impressionado com esse poder ácido e áureo que ainda tem de me deslocar no tempo. De me fazer voltar à época da minha puberdade. Então, eu tentava mentalmente controlar o meu pau que insistia em ficar carregado de sangue ao contato com o tergal da minha calça de escola. Estava crescendo e vivia com o zíper da braguilha rompido, preso por alfinetes. Tudo tão constrangedor, principalmente quando era chamado à lousa. Eu repetia, baixinho: “abaixa, abaixa, abaixa”. Até que percebi que pensar em minha irmã me acalmava a sanha. Sempre vivemos às turras e evitei conhecer mulher mais cedo por causa dela. Pensava: “e se encontrasse alguém como ela?”…

Espero que esteja bem com o seu novo amor. Você poderia ter evitado que eu sofresse tamanha humilhação apenas me dizendo que não mais me queria. Alegou que foi uma paixão avassaladora. Assim como a que sentiu por mim. Fui mais um. Direito seu o de exercer esse poder imenso que tem de encantar homens e mulheres. Sibila já sabe? Afinal, ela é a sua companheira mais constante. Foi delicioso todas as vezes em que estivemos juntos. Mas ser traído é parte da minha história. Eu quase esperava isso e devo ter contribuído para que tal coisa acontecesse. Chego a ouvir a sua voz dentro de mim: “Te perdoo por te traíres”. Assim como agradeci à primeira, por ter me direcionado rumo ao meu salvamento de mim, deverei um dia comemorar este digníssimo par de chifres. Eu o carregarei como um galardão. Sei que odeia essas palavras invulgares, inundadas de bolor, mas gosto de colocá-las para homenagear o garoto que lia o dicionário como passatempo e que a palavra amor era apenas um verbete insonso.

                                                  Adeus, Apolina!

Foto por Gu00f6kberk Keskinku0131lu0131u00e7 em Pexels.com

Texto participante do BEDA: Blog Every Day August

Denise Gals Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins Cláudia Leonardi

BEDA / Ouça, Meu Mundo Caiu

O meu pai tinha vários discos de 78 rotações, que eu comecei a explorar por volta dos 12 anos ou antes, talvez. Em certa ocasião, caiu em minhas mãos um que apresentava de um lado “Meu Mundo Caiu” e, do outro  “Ouça”, de Maysa Matarazzo. A bolacha  datava de 1961, ano do meu nascimento. No início do anos 70, eu os ouvia como se fossem hinos que traduziam a melancolia que já começara a se esboçar em minh’alma juvenil. Quando a audição de cada uma delas beirava a dúzia, os meus pais pediram para que eu parasse, “pelo amor de Deus!”. Desde então, os olhos verdes de Maysa (mais imaginados do que vistos) se tornariam um dos meus faróis. Por eles, passei a explorar esse lado gostoso da fossa por amores que eu nunca vivera que, por isso mesmo, se tornavam mais reais.

Um dos clipes que estou a indicar aqui são da série televisiva “Quando Fala O Coração” (2009), escrita por Manoel Carlos, com argumento e direção de seu próprio filho, Jayme Monjardim, que a obra decanta os seus dramas pessoais e revela sua relação conturbada com a mãe – mulher forte que ousou desafiar os limites impostos às mulheres da época em que viveu.
Após ser descoberta por mim, acompanhei Maysa com sofreguidão todas as vezes que surgia em minha televisão em preto e branco, quando sua voz já vivia uma fase de decadência, cada vez mais rouca. O que não impedia que continuasse a amá-la, como ainda a amo, mesmo depois de seu passamento, em janeiro de 1977. Foi um ano difícil para mim, que em agosto vi Elvis Presley se despedir da vida (ou não) e Charles Chaplin descerrar as cortinas em dezembro.
Ouça
Meu Mundo Caiu