BEDA / A Carretilha

CARRETILHA

O Humberto, meu irmão, me enviou uma foto recém-tirada de um objeto tão simples quanto icônico de nosso passado – uma carretilha de poço. Perguntou se lembrava dela. Como esquecer? Ou melhor: como não vincular aquele instrumento a tudo que experimentamos no início de nossas vidas na zona praticamente rural em que fomos morar quando crianças? O ano – 1969.

Era o mesmo bairro em que hoje vivemos. Formado apenas por um conglomerado de ruas de terra, com lotes demarcados por números. Havia poucas construções, uma delas, a nossa. Casa simples, com um quarto, cozinha, um largo corredor, que fazíamos de quarto com camas de molas desmontáveis, e banheiro. Duas janelas maiores e uma pequena, do banheiro, uma única e grande porta, que dava para o corredor.

No início, por falta de dinheiro, madeiras faziam as vezes de porta e janelas. Logo depois, substituídas por outras de ferro, que se tornaram permanentes. Nosso terreno ficava junto a um córrego e era cercado por cercas com trepadeiras de buchas – aquelas usadas para banho.

A ideia de nos mudarmos para a casa inacabada foi tomada por meu pai. Durante a construção, em uma das visitas, encontrou um sujeito pernoitando em nossa futura residência. Temendo que fosse invadida, tomou a decisão de estabelecer a posse. Dessa maneira, lá fomos nós nos mudarmos de um local com luz, água encanada e esgoto para outro com restrição dessas e outras comodidades.

As paredes eram de cimento caiado; o chão, de vermelhão. Havia privada – possuíamos fossa séptica – mas não chuveiro. Com a água retirada de baldes com uma canequinha, tomávamos banho dentro de bacias para impedir que molhássemos o banheiro. A água, esquentávamos ao sol, no verão; por lenha, no inverno. Homem de Ferro. A carretilha surge na história nesse momento, ou melhor dizendo, um tempo depois…

No começo, retirávamos água nos apoiando na beira do poço, com as pernas entreabertas para não cairmos. Quando fizemos um puxadinho – uma futura lavanderia – a carretilha foi pendurada no teto da laje, presa a arames. Então, através de uma corda, retirar água do poço artesiano tornou-se uma tarefa divertida para mim. Gostava da atividade. Minha imaginação voava, enquanto pouco a pouco puxava a corda. Oitavo Homem. Percebi que tarefas repetitivas, como também varrer o chão ou lavar louça, me abstraíam.

O poço ficava no meio do espaço da lavanderia – dois tanques – entre a janela do banheiro e a porta principal da casa. Perto da casa, ficava o galinheiro, uma horta e plantas frutíferas no quintal. Em certa ocasião, quando estava aberto, nosso galo caiu nele. Fui buscá-lo, descendo pela escadinha de ferro. Iluminada por uma lanterna, pude perceber a parede construída por tijolos engenhosamente perfilados.

Com o galo agarrado-assustado-molhado debaixo do braço, desliguei a lanterna, a enfiei no bolso do calção e ascendi a escuridão, divisando a boca de luz cinco metros acima. Batman. Mais uma aventura que enfrentei com destemor de quem achava natural trepar em árvores, escalar paredes – Homem-Aranha – se pendurar em beiradas de lajes, saltar sobre valetas e pequenas corredeiras d’água. Super-Homem.

Apesar das dificuldades, sob a luz de velas sempre prontas para serem acesas diante da constante falta de luz, pontuada pela fumacinha de espirais para combater pernilongos queimando seu cheiro penetrante em nossos pulmões, expulsar os cavalos que comiam as buchas, caminhar sem destino a explorar os morros e as matas próximas me trouxe a sensação de que podia abraçar o mundo. Eu me sentia especial. National Kid. Percebi que toda criança, em liberdade, é um super-herói. E que uma simples carretilha tem o poder mágico de puxar tantas lembranças liquidas do poço das memórias…

Dia Das Crianças, Sem Crianças

FAMÍLIA
Eu e Tânia, com Ingrid, Lívia e Romy

Hoje, Dia das Crianças, estou trabalhando. Mas mesmo que não estivesse na lida, não me faria falta. As minhas crianças cresceram. São adultas e independentes. Por estranho que pareça, apenas recentemente, me dei conta que minhas filhas deixaram de ser crianças. Obviamente que já há alguns anos havia percebido que isso havia acontecido, porém nunca havia admitido intimamente que crianças que possam ser chamadas de “minhas” haviam deixado de caminhar pelos pisos de casa.

Acho que o fato de ter cães em casa transferiram o cuidado que tínhamos com as filhas para esses seres que preenchem nossa convivência de amor “infantil”. O amor “adulto”, proporcionado por relacionamentos em que aquelas pessoinhas totalmente dependentes de nós nos obedeciam quase sempre e, quando não, eram por pirraça, hoje se baseia em outros quesitos. Discutimos assuntos de adultos de igual para igual, nem sempre com a maturidade necessária… de ambas as partes. Não são raras as ocasiões que nos dão “lição de moral”.

Com elas, conversamos sobre a vida, nossa família, amigos e relações interpessoais, que muitas vezes se sobrepõem às de pais e filhos. É normal ocorrerem críticas de parte a parte, que podem vir a desembocar em brigas mais sérias. Caras viradas, olhares desviados que duram o tempo necessário para prevalecer o amor mútuo e a volta da palavra trocada. Como as meninas têm seus assuntos pessoais que prescindem, em sua maior parte, da nossa participação, restam apenas nossa presença na casa vazia que não ecoam as suas vozes a chamar: “pai!… mãe!”…

Mulheres que variam de 23 a 29 anos, minhas filhas não pensam em casar, o que me alivia muito. Não que não quisesse netos. Caso quisessem ter filhos, não me oporia, contudo, casarem já é outra história. Admito até que netos viriam a renovar nossa vida com interesses diferentes, mas estamos tão ocupados com nossos próprios afazeres, que não sei como arranjaríamos tempo para isso. Antes, quem que passou dos cinquenta anos apenas esperava a chegada dos pimpolhos para lhes preencherem a vida. São novas épocas, com questões incabíveis anteriormente, com projetos pessoais a serem buscados pelos avós em potencial, como no nosso caso.

Não ajuda nada o atual panorama que vivemos, em que ter filhos envolve “questões de Estado”. Este Outubro, tem sido intenso. Além de eu estar renovando mais uma Primavera – pela quinquagésima sétima vez – este mês tem sido inédito pela manifestação de uma faceta da nação que já intuía, mas que ganhou clareza nestas eleições. Nosso povo, oriundo de misturas de credos, cores, preferências e origens étnicas, decidiu se orientar por uma bússola que determina um norte magnetizado na direção do latifúndio monocultural, em que expressões “diferentes” das “tradicionais” devem ser repudiadas, como se fossem responsáveis por suas íntimas contradições.

Beijo na boca pode vir a ser considerado crime. Andar de mãos dadas pode ser um ato político. Com grande risco de ver pessoas serem atacadas por preferências que supúnhamos ter superado quanto à liberdade de ação. Nesse estágio, apesar das diferenças pessoais quanto à visão do que consideramos individualmente os projetos mais apropriados para construir o País, temos como medida a Liberdade e a Democracia, acima de tudo. Fico muito feliz em perceber que, como pais, fizemos um excelente trabalho com as nossas crianças. Elas se batem e se colocam a favor das boas causas. Contra a volta de ideologias que fizeram tanto mal no início do século passado. Nossos netos, se vierem a nascer, merecem um mundo melhor…

 

 

Prazo de Validade

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Sarah está para entrar em seus quarenta anos de idade ainda cheia de planos, talvez até mais do que quando casou, aos vinte. Na época, apesar de vir de uma família de mulheres atuantes profissionalmente, decidiu ser dona de casa em tempo integral. Mãe e cuidadora dos filhos – Filipe e Mirian – cria que administrar um lar a completasse fielmente. Durante os primeiros cinco primeiros anos de união com Bento, se sentiu realizada nessa atuação. Mais ou menos por esse tempo, o companheiro começou a se ausentar da vida familiar. De início, apesar de perceber a mudança, acreditou na alegação de que o crescimento profissional o ocupava por tempo demais.

Dois anos depois, as coisas voltaram à rotina anterior. O entusiasmo de Felipe com o futebol, o mesmo que Bento sempre carregou, fez com que se esforçasse ao máximo para estar nas ocasiões de convívio doméstico. Levava e trazia Felipe na escolinha de futebol ou assistia aos torneios do qual o menino participava. No entanto, a atenção dispensada à caçula não era igualitária. Certa vez, deixou de ir à uma apresentação do balé na escola. Gradativamente, cresceu seu alheamento quanto à menina.

Quando Sarah advertiu Bento sobre a sua atitude insensível, ele a olhou de uma maneira que nunca vira antes, quase com desprezo. Aquilo a magoou profundamente. Sentiu-se como que estapeada no rosto. Dali por diante, mesmo se percebendo cada vez menos ligada à Bento, Sarah preferiu sustentar o casamento. Aos familiares, que nunca entenderam sua postura sem protagonismo, dizia que o fazia pelos filhos.

As desavenças entre os dois cresceram em volume e rispidez. Por volta dos dezoito anos de matrimônio, decidiram se separar judicialmente. O fato de Sarah ter decidido iniciar um curso de Educação Física, teria precipitado a separação. Bento repisava que a faculdade a deixaria exposta, já que a grande maioria dos alunos era composta por jovens na flor da idade. Aquilo, para ele, era uma ofensa pessoal. Convenientemente, não mencionava os seguidos casos extraconjugais que viveu, principalmente o penúltimo, com uma amiga próxima, que foi revelado com estardalhaço em uma festa de família, para a humilhação de Sarah.

Filipe, que já há muito tempo percebia que o pai não agia corretamente com a mãe, a apoiou, enquanto Mirian, foi contra. Ela se sentia traída, justamente no momento que seu pai passou a demonstrar maior atenção e a presenteá-la com mimos. Quanto a Bento, secretamente parecia concordar com a possível separação na esperança de demover Sarah aos poucos de frequentar a faculdade. Ele dificilmente encontraria uma mulher tão prestimosa e manipulável quanto Sarah, ao mesmo tempo que poderia manter a coleção de casos em série, em competição informal com os seus colegas de trabalho.

Quanto a Sarah fazia força para acreditar que os primeiros anos de matrimônio tenham sido felizes o suficiente para lhe garantir a certeza meio dúbia de que nem tudo teria sido em vão. Apenas não saberia se teria coragem de voltar a se entregar a mais alguém. Ela, quando percebeu que o seu projeto de mulher caseira falira, decidiu voltar suas energias para algo que sempre gostou desde menina. Na verdade, as longas caminhadas e a frequência na academia a mantiveram estável durante todo o processo de desgaste de seu relacionamento. Nos exercícios, expurgava, junto com o suor, a mágoa que crescia progressivamente.

A assiduidade ao curso a afastou um tanto da rotina doméstica. Não sem o protesto velado dos que sempre se sentiram totalmente atendidos nos anos anteriores. Sabia que a separação iminente a deixaria como uma laranja chupada e sem sustentação. O seu sonho teria se mostrado quase um pesadelo se não fosse a presença dos filhos, pessoas boas e sensíveis. Compreendia perfeitamente a atitude de Mirian, que se deixava levar por uma estratégia torpe de Bento para atingi-la.

Sempre ouvira dizer que a paixão, o amor, as afinidades sentimentais tinham um prazo de validade variável, a depender de quem os compartilhasse. Apenas não sabia que poderiam tão facilmente puírem com o tempo ou até se transformarem em outra coisa e que a sua dedicação viesse a inspirar desprezo por quem foi objeto dela. Quais leis regeriam as emoções?

No curso, percebeu que um rapaz, quinze anos mais novo, lhe dedicava uma atenção maior. Nos momentos mais intensos de sua crise conjugal, quando sentia quase ceder à depressão, magicamente ele surgia com uma frase engraçada, uma palavra agradável, uma ação de solidariedade, como quando a ajudou em um trabalho importante. Começou a se sentir atraída por seu sorriso aberto. Sua presença física que parecia lhe proporcionar uma sombra refrescante em dias quentes de verão.

Defensivamente, começou a se evadir de situações ou lugares que os colocasse juntos. O que era quase impossível. Completado dois anos de curso, quando finalmente assinou as papeladas do divórcio, insistiu em ir a aula. Teve uma crise de choro em plena classe. Saiu correndo, sem perceber que ele fora atrás. Todos os mais próximos sabiam que ele a amava, o que havia despertado o ressentimento de algumas moças que não entendiam o que ele vira naquela “velha”. Quando parou de correr e se posicionou no muro junto a uma árvore, ouviu a voz de Satriani a lhe chamar suavemente: Sarah!… Não sabia se aquilo aconteceria, mas queria que ele a tivesse a seguido. Quando se voltou, o abraçou e o beijou como se fosse o último gole de água na terra ressequida.

Dali por diante, ficaram juntos sempre que puderam. Eram alunos esforçados e não queriam que o aprendizado fosse prejudicado. Esse apoio fez com que melhorassem as notas, mutuamente. Quase sem querer, faziam planos para o futuro. Para ele, aconteceu de maneira natural. Para ela, foi uma surpresa se envolver tão rápida e profundamente com outra pessoa.

O fato dele ser mais jovem não trouxeram dúvidas quanto ao seu sentimento. Ela o percebia ponderado e seguro como nunca sentira que Bento fosse. Enquanto este vazava vaidade por todos os poros, aquele, muito bonito, sequer parecia saber o efeito que causava em mulheres e homens. E dentre todos, ele preferiu deferi-la com a sua atenção. Isso a fez sentir o quanto era prazeroso não apenas ofertar, mas igualmente receber dedicação.

Seus pais, pessoas de posturas libertárias, cuidavam para que o filho observasse a liberdade com responsabilidade. Por isso, ao se apaixonar pela bela mulher de rosto maduro, mas com um quê de inocência, não quis invadir a sua vida com a sua paixão instantânea. Quando soube, por comentários laterais de colegas em comum, que o casamento de Sarah estava por um fio, não deixou escapar a oportunidade de se fazer presente e solidário. Sabia que enfrentaria objeções de amigos, como sabia que a barra não seria mais leve para Sarah. Contudo, com o apoio dos pais, cientes de suas decisões sãs, se sentiu confiante em viver aquele amor.

Sarah, finalmente revelou o que estava a acontecer para sua mãe, irmãs, primas e tias, que aplaudiram alegremente a incrível comunicação. Queria se aconselhar antes com a “facção” feminina da família quando e como deveria fazer o anúncio da novidade para os filhos. Disseram a ela deveria ser direta, sem muito esperar. Inevitavelmente, lhe perguntaram o que estava realmente a sentir. Sarah respondeu que, ao ficar tantos anos preservada do contato com a vida fora do lar, causou certo retardamento em sua maturidade emocional. Assumia que fora responsável por se abster de vivenciar certas emoções que a congelaram no tempo.

Sarah havia gostado de Satriani desde que o conhecera, porém nunca quis aprofundar o contato. A atração mútua só explodiu em carinhos, beijos, abraços e sexo do bom apenas após o seu divórcio. Quanto à diferença de idades, ela simplesmente respondeu, convicta, que o casamento durou apenas cinco anos e se arrastou por mais quinze. Quanto ao novo amor, qualquer tempo que se entregasse a ele –  o que a fazia muito feliz – seria com os olhos bem abertos, sentimentos reais e sem falsas expectativas. Com a intensidade redobrada de quem se sentia viva, o prazo de validade era indeterminado – um, dois, vinte anos – cada momento seria para sempre…