A Célia (Vila Madalena)

Dança da Solidão, com Marisa Monte e Paulinho da Viola, seu autor.

O abraço excitante que trocamos, Fábia e eu, foi tanto inesperado quanto marcante. O que teria me causado tamanha excitação que propiciasse a embaraçosa, porém festejada intumescência do meu membro? Há muito tempo que nada me estimulava fisicamente, como era tão comum, anos antes. O episódio da separação de Ella foi penosa e criou um fosso de tristeza que afetou todos os meus sentidos. Ainda que esse processo me auxiliasse na produção de textos que me levaram a escrever em plataformas na Rede, revistas e jornais profusamente. Toda a pulsão que jogava em nosso relacionamento se direcionou à escrita.

Sempre fui um sujeito diferente dos meus pares nessa questão da sexualidade – só o soube ao conversar com os meus amigos. Para mim, a beleza não bastava, ainda que meus critérios fossem esquisitos. Altura, largura, raça não eram critérios para me apaixonar. O andar, a postura, o sorriso, o olhar, o gestual, o que diziam me atraíam independentemente de padrões. Meus companheiros de noitadas, cretinos como só poderiam ser, me apelidaram de São Jorge. Até que surgiu Ella e não tive mais olhos para mais nenhuma mulher. Até que o encanto e o canto de Fábia me arrebataram.

Já que decidi expor tudo de modo claro, houve um tempo, principalmente após a separação, que me masturbava bastante, lembrando do sexo gostoso que segurou o nosso casamento mesmo nas piores crises. Meses seguidos de solidão, nada mais me estimulava. Em uma ocasião, cheguei a tomar a pílula azul para me masturbar… Porém, a depressão era tão grande – no sentido de me sentir enterrado – que tive que recorrer a um filminho pornô para me ajudar.

Voltei a lembrança para a minha juventude, quando ia aos cinemas que começaram a exibir filmes americanos de sexo explícito dos Anos 70, alguns dos melhores já produzidos. Anos da Ditadura Militar, me divirto com os que desejam que o Exército volte a comandar os rumos do País para moralizar a Sociedade. Foi na época dos militares que o “cinema de autor” foi combatido pela Censura, o inviabilizando. Atores, diretores e técnicos cinematográficos buscaram sobreviver trabalhando nas chamadas “pornochanchadas” – histórias divertidas e maliciosas – recheadas de corpos nus em coreografias bisonhas de encontros sexuais. Alguns argumentos eram até criativos e pastelões pornográficos poderiam vir a ganhar o título de cult.

Eu estava ansioso para voltar a encontrar Fábia. Matheus disse que as suas participações seriam mais frequentes, quase semanais. Ele, sabendo de meu “interesse musical” pelo trabalho dela, me convidou para o ensaio, na madrugada de domingo para segunda, o único período em que o Bar do Pereira, fechado, poderia ser usado para ensaios das bandas. Quando chegamos, havia outros músicos que terminaram de ensaiar. Entre eles, uma moça muito bonita, de cabelo raspado lateralmente. Conversava com Fábia. Seus rostos bem próximos, olhos nos olhos, pareciam estar fora daquele lugar. Um minuto mais e se beijaram breve e docemente. Estranhamente, fiquei excitado.

Ao me ver, sorriu, pegou na mão da bela moça e se encaminhou em minha direção.

Chico, querido! Está é a Célia, uma bela cantora, em todos os aspectos! Minha namorada…

Tentando manter a fleuma, sorri. E, de certa maneira, estava mesmo tranquilo e meio que enlevado, na presença de mulheres lindas e talentosas. Confiava no critério de Fábia ao dizer que a Célia cantava muito bem.

— Como vai, Célia? Gostaria de ouvi-la qualquer dia desses…

— Boa madrugada, Chico! A Fábia acertou ao dizer que você é muito charmoso…

Fiquei curioso por ser motivo de conversa entre as duas artistas. Fábia retomou a palavra.

— Eu conversei com a Célia e ela deu seu aval para que namorássemos – eu e você. Quer?

O sujeito de um pouco mais de meio século de vida se sentiu como se recém tivesse começado a vida amorosa. Surpreendentemente, sorri e ousei beijar Fábia longamente. O pessoal no bar, que conversava aqui e ali, voltou-se para nós e aplaudiu efusivamente. Matheus colocava a mão na boca, enquanto ria.

Após o beijo, enquanto Célia dava uma gostosa risada, Fábia ainda brincava comigo.

— Que fofo! Seu rosto está vermelho feito um pimentão!

A inusual sensação de liberdade e de libertação veio misturada a uma que tive quando dei o primeiro beijo, numa garota do colégio: de transgressão. Minha melhor amiga e eu, estávamos um pouco bêbados numa festinha da turma. Quebramos uma regra sagrada. Talvez, e por isso mesmo, nem então me senti tão estimulado e potente… Queria ficar com Fábia, já naquela madrugada, mas logo sobreveio dois temores. O primeiro, é que demoraria para acontecer. O ensaio duraria por pelo menos uma hora. Será que estaria tão excitado como naquele momento? O segundo é que depois de tanto tempo, talvez tivesse uma ejaculação precoce. Passado o ataque de juvenil ansiedade, lembrei que sempre valorizei às preliminares, não apenas para estimular a minha companheira, mas porque sentia um real prazer em proporcionar prazer.

O ensaio durou menos tempo do que eu esperava. Resolvidas as notações de notas, tons e passagens melódicas, Fábia aprovava e logo passava para outra canção. Com Matheus, se deteve mais tempo, com duas interpretações. Dizia que o garoto chegara com novos acordes que enriqueceram a canção – Dança da Solidão – e que merecia um aprimoramento na colocação da voz. Seus olhos brilhavam quando se dirigia ao meu filho. Parecia haver cumplicidade artística nesses instantes que só o olhar conseguia traduzir.  

Dada por satisfeita, anunciou o fim do ensaio. Abracei e beijei o Carlão no rosto, como nos acostumamos a fazer com o estreitamento de nossa amizade. Abracei Matheus, lhe dizendo o quanto eu estava entusiasmado com o seu progresso no violão. Nós nos despedimos com a bitoca de costume. Por trás, senti alguém segurando a minha cintura. Senti o perfume de Fábia e me voltei devagar. Seus olhos iridescentes atravessaram os meus, míopes, que anteviram uma conexão que, a esta altura da vida, não esperava acontecer. Célia se pôs no lado oposto da namorada, me abraçando também. Conduzido pelas duas, estava sendo levado, segundo fui informado, para o apartamento no qual viviam, ali perto.

A noite na Vila Madalena estava calma, com poucos transeuntes, depois de uma chuva rápida e intensa de verão. E como se fosse a primeira vez que caminhava por aquelas vias, eu me sentia renovado. Quase como se me movesse no tempo, trinta anos pulverizaram-se em minutos. Sorria, desvencilhado de meu antigo eu, como se fosse o filho do velho…

Carta À Vitória

Vitória Gabrielly — Foto: Reprodução/TV TEM

“Enquanto boa parte do país vibrava com os jogos da Copa do Mundo em junho de 2018, na tarde do dia 16 daquele mês, Araçariguama, no interior de São Paulo, entrava em luto pelo assassinato de Vitória Gabrielly. A família tenta manter a memória da adolescente viva em ações sociais voltadas para crianças no município.” (G1)

Depois de dois anos da época do crime, eu cheguei a escrever um primeiro parágrafo que abandonei até há dois dias, quando surgiu uma frase nas lembranças do Facebook: “Vitória… Ela lutou! Às minhas filhas. Esta é uma homenagem às mulheres, mesmo às ainda tão meninas”.

Vitória, viver requer coragem, já disseram por aí… Eu passei poucas e boas tentando sobreviver durante todo esse tempo de Pandemia. Produzo conteúdo sem a perspectiva de ser visualizado sequer, ainda que deseje. Eu me sinto como os primeiros homens e mulheres que “produziam conteúdo” nas cavernas que viviam, apenas por desejo de expressão. Nunca imaginaram que milhares de anos depois suas obras fossem resgatadas como registros históricos. Igualmente, na Idade Média, uma igreja poderia demorar séculos para ser concluída e centenas de anónimos produziam arte sem terem seus nomes colocados na História. O sentimento de “aparecer” em meio a tantos outros foi ganhando tanta projeção que muitos se perdem pelo caminho e fazem qualquer coisa para isso.

Aves de rapina humanas sobrevoam as presas para apanhá-las desprevenidas quando estão mais fragilizadas. Algumas atacam de frente, com bicadas afiadas a desferirem golpes certeiros no coração. Outras, são mais sádicas. Preferem destilar veneno em forma de palavras jogadas à esmo, atinja a quem atingir. É comum dizerem que fazem isso em nome de algum propósito de teor moral edificante. Ah, a moralidade dos imorais! O pior é que além de faltar solidariedade, empatia, senso de identidade humana com o outro humano, no mínimo, alardeiam estarem corretos em seus posicionamentos. Que destruir uma vida em nome de um coraçãozinho na rede é muito mais importante do que qualquer coisa. Coraçãozinhos se multiplicam – esses predadores se alimentam de coraçãozinhos vermelhos-sangue – e quando sentem o cheiro de sangue se tornam cada vez mais vorazes na caçada à serviço de suas vilipendias. Mencionados, hiper dimensionados para além de sua pequenez, ainda que sejam citados com raiva ou até com ódio, creem que isso é o mais próximo de se sentirem amados.

Essa distorção dos reais valores que deveriam reger a nossa convivência se espraia por toda a sociedade humana, de tal forma que fica difícil acreditar em gente. Sabe, Vitória? Você lutou. Quis viver. Tentou gritar, foi impedida. Foi morta. Mas venceu. Devo acreditar nisso. Você, como tantas meninas, Beatrizes, Klaras, Gabrielas, Patrícias, mulheres, mais novas e mais velhas, são atacadas por serem mulheres. Mas tudo se torna pior quando uma mulher age como um macho escroto e promove ataques contra mulheres. Essa ausência de sororidade é quase como se algo tivesse sido extirpado da personalidade feminina que carrega.

Em benefício da dúvida, acredito que talvez para se defenderem em um mundo de homens, absorvam seus piores predicados para se igualarem em oportunidades de trabalho e protagonismo. Quando justamente a força da mulher para mim é indiscutível. Fomos, como muitos meninos e meninas como eu, criados praticamente apenas pelas mães, como tantas da Periferia, mas não apenas. A alienação parental é uma prática comum em muitas famílias. Nas mais ricas, os homens acham que pagando a terceiros o cuidado da prole já é suficiente.

Chegamos em um ponto, no entanto, em que uma mulher não precisa mais reproduzir para ser vista como uma mulher completa. Essa imposição de dedicar parte de sua vida a gerar vidas não é mais necessário em um mundo que precisa se preocupar com a ocupação desenfreada de nossas crianças em detrimento das crias dos outros seres que ocupam o mesmo planeta. Para que a mulher ganhe a autonomia necessária que venha a promovê-la como uma pessoa igual ao homem, ela tem que assumir o seu corpo como sendo dela mesma. Procriar deve ser uma decisão pessoal. É incrível que para mais da metade da população mundial, não tenha havido um definitivo decreto de libertação. Que a mulher dirija a sua vida da maneira que lhe aprouver e que torne o mundo mais equilibrado de tal maneira que superemos a dor de vê-las assassinadas, vilipendiadas, marginalizadas por serem mulheres. A Vitória será de todos nós, seres humanos.

Obdulio Nuñes Ortega

BEDA / Scenarium / Domingo-Domingo

Sunday

Este é um domingo que realmente é um domingo-domingo. Hoje se celebra a Páscoa, o principal dia do calendário litúrgico cristão, em que se comemora a Ressurreição de Cristo, sendo que é a partir dela que todas as outras datas importantes do Cristianismo são calculadas – Semana Santa, Quaresma, Quarta-feira de Cinzas… Efeméride religiosa que se transformou em data comercial, o motivacional consumo de ovos de chocolate poderá animar um pouco àqueles que estão dispostos a cumprir a Quarentena que se estenderá até o dia 22 de Abril, por enquanto…

Tanto quanto na Páscoa de 2013, estou sem recursos para adoçar o domingo de Páscoa da minha família com chocolate por dois motivos: estou sem grana e permaneço isolado na Praia Grande. Até talvez voltasse para Sampa, mas prefeitos da região litorânea decidiram impedir a entrada de turistas moradores de outras regiões a partir de quinta-feira, ainda que tenham imóvel por aqui. Os casos de Covid-19 cresceram muito nos últimos dias, tanto na capital quanto no resto do Estado de São Paulo. E estamos longe do pico de propagação da doença. Sem ninguém que me busque, com a escassez de transporte igualmente de ida, por aqui estou.

Mesmo para a parte da população acostumada a viver uma Páscoa mais religiosa, em recantos deste Brasil multicultural, a comemoração não acontecerá sem levarmos em conta que somos, todos nós, possíveis infectados ou agentes infectantes do novo corona vírus. As procissões em tapetes de flores seriam vistas com preocupação, se ocorressem; adentrar pelas residências para saldar em cantos seus moradores seriam consideradas insurgências contra o distanciamento social; a aproximação dos corpos em igrejas potencialmente cheias pelo ritual da missa poderiam levar muitos fiéis para mais perto do Senhor muito mais rápido do que desejariam. Porém, ontem, perto das 22h, quando prefiro ir ao supermercado (com máscara), para evitar aglomerações, procissões de compradores de ovos de chocolate pelos corredores denotava duas características do brasileiro: deixar tudo para a última hora e indisciplina.

Todos os dias surgem notícias de pêsames entre parentes e conhecidos componentes da minha lista do Facebook. Muitos não indicam a causa da morte, mas a aparente falta de informação é demonstrativa – não há como saber o motivo do óbito sem o resultado do teste. As notificações estão atrasadas ou não estão sendo identificadas. Isso pode levar a quem não tem a intenção de manter o afastamento social a crer que a doença não seja assim tão abrangente como pintam os trabalhos científicos e alertas veiculadas pelos meios de comunicação. Há uma concordância ampla entre médicos e infectologistas de todas as latitudes que vivemos uma pandemia de graves proporções ao contrário do que muitos gostariam de aceitar.

No Brasil, temos a tendência, como povo, e desdenhar da Ciência, de contrariar os estudos e os estudiosos. De refutar pesquisas, de valorizar o jeitinho e a magia do inesperado-improvisado. Quando somos chamados a cumprir um recesso de nossas atividades por um certo período a fim de evitar que a sociedade não sofra a perda de uma grande porção de seus membros, percebemos que a solidariedade e a empatia também não são características assim tão apreciáveis por parte de nossos cidadãos. Ao mesmo tempo, vemos surgir iniciativas de alguns de seus membros que nos dão a esperança de que nos tornemos um País melhor.

Tanto quanto o Pessach judaico, que inspirou o surgimento da Páscoa e representou um episódio libertador-transformador na nossa História, espero que este doloroso processo pelo qual estamos passando se transfigure em transição para algo muito maior – um novo mundo – de novas e belas possibilidades.

Feliz domingo-domingo!

P.S.: Como a brincar com nossas expectativas, vivi poucos outonos, ainda que no seu início, com dias tão bonitos quanto os que tenho presenciado. O mar, limpo de nossos corpos infectados, continua a repetir o seu eterno canto em ondas…

Beda Scenarium