Fico sempre encantado quando subimos para o Planalto ou descemos para o Litoral, ao passarmos pela Serra do Mar, onde podemos encontrar ainda parte da Mata Atlântica preservada.
Ao mesmo tempo, resta sempre o assombro ao saber que, para alcançar o interior do País, Homens do passado venceram tremendos obstáculos em nome de viver uma vida nova…
Um caminho feito de sangue, suor e lágrimas, que o tempo escondeu sob o azul celeste do céu e sobre o verde da mata.
“Talvez eu não consiga estar em outro lugar que São Paulo, aqui no Brasil. Por aqui, já estive em muitas cidades, mas ainda não consegui me ver vivendo fora desta loucura, principalmente em termos profissionais.
A Europa, autointitulada de Velho Mundo, alcançou a atual qualidade de vida tendo 2 mil anos a mais de História e por meio da exploração da riqueza do Novo Mundo, Ásia e África. Muitos europeus, conscientes desse fato histórico, tentam fazer um belo trabalho na área social, através de organizações não governamentais que atuam na América do Sul, África, Ásia e algures.
Na América do Norte, temos os Estados Unidos, que seriam uma exceção, por sua própria formação, em que os seus colonizadores fugiram da Inglaterra por incompatibilidade religiosa com a realeza para criar um novo país e permanecer definitivamente na terra.
Para colaborar, a religião desses colonizadores americanos preconizava que a riqueza angariada era sinal de benção divina, bem diferente dos colonizadores portugueses e espanhóis, de formação católica que pregava para seus fiéis que o reino dos céus pertencia aos pobres, enquanto a elite extraía o máximo de benefícios, para que ricos voltassem para a Metrópole nobilizados, inclusive pela compra de títulos.
Esse comportamento predatório perdura até hoje, em todos os níveis da população, de modo geral. Dê a oportunidade de um despossuído alcançar uma benesse e ele irá brigar com unhas e dentes para mantê-la, passando por cima de qualquer ética. A minha terra é linda, mas o meu povo…”.
O texto acima foi escrito num momento de amargor, muitos anos antes. Talvez há 10 ou 15 anos. Não que eu tenha mudado muito a minha ideia sobre isso, mas creio que não deva deixar de tentar mudar a realidade em nosso entorno para que as coisas não fiquem ao léu, ao gosto dos poderosos comandando um Sistema predatório. Sem essa crença, nunca construiremos um país melhor. Por fim, caso eu pudesse, me mudaria para uma cidade no Litoral, ainda que saiba que seria um dos prováveis primeiros locais a serem atingidos pela subida do nível do Mar devido à crise climática.
Junto à praia de uma das ilhas da região de Paraty
Como presente aos meus 60 anos, minhas filhas nos ofertaram — a mim e á Tânia, minha companheira de 33 anos e mãe delas — uma ida à Paraty por quatro dias. Como está junto ao mar e sabedoras de minha paixão pela água e por História, criam (e acertaram) que ficaria feliz em passar alguns dias na histórica cidade do litoral sul-fluminense. Patrimônio da Humanidade, a colonial Paraty apresenta uma integração excepcional entre valores associados ao acervo cultural e ao natural; constituindo-se no primeiro sítio misto do Brasil.
A cidade vibra com suas histórias a percorrer suas ruas de pedra, mesmo para quem caminha por elas sem conhecê-las de antemão. Pensei em pesquisar antes sobre o que iria encontrar, mas preferi deixar me banhar de sua energia sem ter a cabeça preenchida por dados esparsos. Assim pude usufruir da energia que ultrapassava paredes, tão eloquentes quanto as belas conformações estruturais-arquitetônicas. Aos poucos, as histórias foram se apresentando através de imagens e informações aleatórias dadas por moradores.
Sozinho, saía para caminhar pela cidade vazia no início da manhã e via passar milhares de personagens invisíveis por sobre os calçamentos de pedras vivas. Ao passar por uma das esquinas, senti-me atraído a entrar por uma rua curta e estreita que, ao término, apresentava a placa Rua do Fogo. Imaginei que eventualmente em alguma época um incêndio tivesse se abatido em uma das velhas casas.
Após o passeio de escuna, parte da cidade junto ao cais estava inundada devido à maré cheia. Conhecedora de alternativas, uma das integrantes da tripulação nos acompanhou por terra até nos separarmos. Nesse momento, citei a rua que me impressionou pela qual passávamos então, e ela disse que o termo “fogo” se devia por ali ter existido uma zona de meretrício em tempos idos. Depois, soube que talvez ainda existisse aquele tipo de função. Essa informação confirmou que o meu radar vibracional-energético estava ativo. A calor do que ali ocorria ainda queimava.
Ainda que fosse um comércio de subjugação de pessoas (como quase sempre é) nas atividades que exercemos, se buscava o amor em sua expressão mais física, travestido em dominação. Bem como quando percorri caminhos em que o peso das pedras era mais opressor do que o habitual. Normalmente tratava-se de locais onde eram mercantilizados corpos de outra maneira — na compra e venda de gente escravizada. Janelas mínimas para deixarem um pouco de luz corromper a escuridão interna de mínima esperança.
Foram quatro dias intensos, em que que percorri por pés, mãos e mente fogosa terra, água e respirei o ar antigo de Paraty territorial e ilhas próximas, as quais acessei física e visualmente através de passeio de escuna. A cidade, fundada em 28 de fevereiro de 1647, teve seu apogeu quando foi por quase dois séculos um dos principais entrepostos do comércio de ouro vindo de Minas Gerais pela Estrada Real ou Caminho do Ouro. Com a abertura do Caminho Novo, o antigo caminho de indígenas calçado com pedras, passou a ser usado para o transporte de escravizados, de forma clandestina devido à proibição do tráfico no período regencial. Passei pelo antigo caminho quando fomos às cachoeiras por entre a vegetação exuberante da Serra da Bocaina.
Com o advento do plantio da cana-de-açúcar e o surgimento de centenas de engenhos artesanais, a produção de aguardente ganhou preponderância, sendo o nome Parati elevado a sinônimo desse destilado. Visitei uma das destilarias e pude apreciar os diversos tipos de aguardentes e licores. Porém isso não impediu a decadência da cidade desde o final do Século XIX. O que resultou numa espécie de congelamento de sua antiga conformação. O que poderia ser colocado como maldição pelo passado decadente, a união da beleza preservada da biodiversidade natural e a recuperação do conjunto arquitetônico propiciaram que o turismo se desenvolvesse, tornando-se sua principal fonte de renda de Paraty.
Graças a isso, pude usufruir do contato com a alma antiga dessa cidade que nos diz tanto através de suas características peculiares. Quem consegue se sensibilizar com o canto do vento, dos pássaros, da Natureza, das pedras, da História, quer voltar porque ainda que caminhemos reiteradamente por seus calçamentos, ainda é possível sentir no ar o mistério que se apenas advinha por trás de cada porta e janela, a nos surpreender com a sua magia feita de sabores tênues, sons surdos, visões esquivas, toques delicados e odores entremeados de maresia, ainda que o cheiro de esgoto vindo do Rio Perequê-açu que desemboca junto ao Cais na Praia do Pontal.
Fico sempre encantado quando subimos para o planalto ou descemos para o litoral, ao passarmos pela Serra do Mar, onde podemos encontrar ainda parte da Mata Atlântica preservada. Ao mesmo tempo, cresce meu assombro ao saber que, para alcançar o interior do País, Homens do passado venceram tremendos obstáculos em nome de viver uma vida nova… Um caminho feito de sangue, suor e lágrimas, heroísmos e covardias, amor e ódio, crimes e massacres, que o Tempo escondeu sob o azul celeste e o verde da mata.
Eu estou passando um tempo de folga no litoral paulista. Dias prazerosos, pelo simples fato de, ao estar junto ao mar e ao sol, sinto fazer parte de algo maior. A luz me atravessa, a brisa me deixa recados naturais e me vejo com os horizontes ampliados, física e mentalmente.
Em visita a casa do meu amigo Coimbra, um talentoso DJ e que, nas horas vagas, é guia turístico particular das belezas de Itanhaém, fui visitar um recanto que me deixou com expectativas infantis antes de me aproximar. Não via a hora de chegar ao local. Escondi bem a minha animação, mas não pude deixar de demonstrar a minha decepção quando lá cheguei.
Estávamos no final da tarde e o movimento maior havia diminuído. Chegamos a um largo próximo, onde deixamos o carro e seguimos por uma passarela de madeira longa que se estende por sobre pedras junto ao mar. A cada dez metros, havia portais contando trechos da história daquele espanhol, jesuíta como Francisco, o atual Papa. O seu nome — José de Anchieta.
Vivo na cidade fundada por ele e seu grupo de catequizadores, comandada oficialmente pelo português Manuel da Nóbrega, que se embrenhou nas matas, serra acima, até alcançar o alto de um planalto e ali construir uma choupana que daria origem a uma igreja e a um colégio — um local de orações e de estudos — uma aparente contradição para quem crê que fé e conhecimento sejam coisas irreconciliáveis. Isso ocorreu há 460 anos, onde está São Paulo dos Campos de Piratininga, a serem completados daqui a alguns dias, em 25 de Janeiro.
Voltando ao local em questão, pela passarela encontrei uma senhorinha de seus 80 anos ou mais, que mal conseguia se locomover por suas próprias pernas. Era ajudada por outra mulher que talvez fosse sua neta. Ela dava cinco passos e parava. Teimosamente, justificava para quem a acompanhava que conseguiria chegar até a gruta. Apenas precisava descansar um pouco a cada instante. Passei por ela e quando me aproximei, senti ter quase a mesma sensação de Jesus (guardada as devidas proporções) ao presenciar os vendilhões no santuário. Apenas, não saí espancando todos que estavam “conspurcando o templo” porque entendi que eles não sabiam o que faziam.
Naquele local, um dia, esteve José de Anchieta e naquela pedra em forma de cama, ele se deitou para dormir e diminuir as terríveis dores nas costas que o acometia. Grupos de pessoas entravam e saíam debaixo da gruta. Algumas se deitavam sobre a “cama”, com as faces risonhas e acenos de mãos. Alguns vão me achar exagerado ou até ridículo por exprimir um sentimento de objeção tão inadequado aos nossos tempos. Talvez até conjecturem que aquelas pessoas faziam uma alegre interação entre o passado e o presente, uma homenagem àquele incrível personagem histórico. Não foi o que senti…
O que eu senti foi que ali se praticava um simples ato de exposição midiática — poses para fotos — sacadas em um lugar o qual não alcançavam a real dimensão na perspectiva histórica brasileira. Creio mesmo que mal soubessem onde estavam e o que representava aquele lugar. Apenas, ouviram dizer que… Antes fosse uma postura de aversão a História dos invasores de Pindorama e o massacre ou a destruição de costumes dos habitantes naturais.
Para corroborar a minha visão, a gruta apresentava pichações horrendas, garranchos pintados como se fossem assinaturas de quem acreditava que apenas escrever os seus nomes nas pedras bastava para se colocarem em um lugar na História. Afinal, quem é aquele João que aparece mais nitidamente mencionado? Só ele sabe, talvez a imaginar que fosse seu prémio particular entre tantos outros Joãos.
Eu estava sem o meu celular e pedi para o Coimbra tirar uma foto da gruta para irmos embora. Não sem antes conjecturar que a ignorância é, muitas vezes, uma benção. Mais tarde, o meu acompanhante repetiu a mesma frase por ocasião de outro fato. Ao voltar, passei pela velha senhora, que ainda se arrastava até onde estive. Não duvido que tenha chegado bem perto da Cama de Pedra de Anchieta, mas não acredito que as dores na perna a tenham permitido entrar na cobertura natural. Porventura, outra dor tenha se juntado às que já sentia…