17 / 07 / 2025 / O Buraco

madrugada alta

em quarto crescente

dois quartos de ano

sem lhe falar

longa noite escuridão

buraco aberto no peito

feito a lua no firmamento

bala perdida amor perdido

em sangue coagulado o fim

morro lentamente

paira em minha mente

se ela ainda pensa em mim…

Alunar

Alta madrugada, mais ou menos 3h da manhã, desliguei as luzes de casa, mas estranhamente, os móveis permaneceram iluminados por uma cintilação tênue que entrava pelas janelas. Curioso, abri uma delas e vi a Lua projetando o seu brilho prateado sobre tudo. Não resisti e saí para vê-la. Como o céu estava limpo, as estrelas também podiam ser vistas a queimar quietamente no firmamento. As Três Marias permaneciam perfeitamente perfiladas uma ao lado da outra, como por todo o sempre.

Lembrei de minha infância, em que tendo me mudado para a Periferia, tive a oportunidade de começar a apreciá-las de “perto”. Pensei que, nesta vida de momentos fugazes, na quantidade de vezes que deixamos de voltar os nossos olhos para o Eterno. Tentei registrar àquele instante. Como se pode ver, não foi da maneira que queria. Mas talvez a imagem obtida venha a calhar, por sua aparência onírica. Afinal, tudo não passa, mesmo, de um sonho…

BEDA / Das Dores E Ratinho

Das Dores, conhecida como Jaqueline, carregava imensos olhos verdes, quais duas bandeiras nacionais desfraldadas em desfile no Dia da Independência. Em torno deles, o seu rosto, ainda interessante, encimava um corpo ainda atraente de formas brasileiras o suficiente para entusiasmar os mais ufanistas. Essa forma física lhe proporcionava condições suficientes para sobreviver em sua profissão, ainda que não fizesse o sucesso de vinte anos antes.

Ratinho era um velho músico aposentado, mas que ainda tocava esporadicamente nas noites paulistanas o seu trompete americano, comprado nos bons tempos em que saía de salões de baile para programas de televisão ou estúdios de gravação, quase sem intervalo, há quarenta ou cinquenta anos antes.

Por caminhos marcados pela mesma pouca iluminada noite madura, encontraram-se num bar de esquina do Bexiga. A voz profunda e de acentuação nordestina chamou a atenção de Das Dores por lembrar a de seu pai, homem rigoroso que a expulsou de casa quando, adolescente, se deitou com um dono de posto de gasolina de sua cidade, no interior do Ceará. Fascinada pela possibilidade de ascender no conceito de suas amigas, bonita e despachada, chamou a atenção de Seu Romarinho, o sujeito mais rico que conhecia. Desgraçou a vida dele e possibilitou que a sua ganhasse rumo em direção a São Paulo.

Ratinho, que tinha esse apelido por ser branquinho como um filhote recém-nascido do roedor, depois de uma apresentação em um baile de dança de salão, decidiu esperar o horário do seu ônibus madrugador a tomar um conhaque batizado. Falava pouco, sorria muito e seu tamanho compacto lhe conferia um toque de presença quase alienígena. A sua pele descamava e poderia até parecer repugnante se não fosse a sua evidente simpatia. Estranhou quando aquela mulher bonita se aproximou e puxou conversa.

Com os seus cabelos espetados agora tão brancos que pareciam brilhar no escuro, Ratinho estava acostumado a ser rechaçado até mesmo por prostitutas que procurava. Não queria àquelas que fariam qualquer coisa para obter o dinheiro da droga que as mantinham funcionais. Naquela idade, mais do que qualquer outra coisa, ele apenas queria conversar. Era absolutamente sozinho. Nunca se casou. Os seus parentes mais próximos moravam longe. Bastante resignado com a sua condição de terceiro trompete, sentava tão perto da beira do palco que certo dia caiu e desapareceu sob a estrutura. Desmaiado, só deram por sua ausência no intervalo entre uma seleção e outra.

Das Dores pareceu genuinamente interessada em conhecê-lo. No decorrer da conversa, se surpreendeu com a candura daquele senhor desajeitado e de gestos parcimoniosos. Principalmente, o incentivava a falar o máximo que pudesse. O som daquela voz a fazia retroceder anos dentro de sua alma. Era como um acalanto vindo de longe. Percebeu que sentia mais saudade de seu pai do que gostaria de admitir. Ele nunca a perdoou e o dinheiro que lhe enviou ao longo do tempo nunca foi aceito pelo Senhor José. Ao amanhecer, se despediram e marcaram um encontro para breve. Ratinho precisava voltar para a casa. Estava cansado e sabia que Arturo, seu gato, o esperava ansioso pelo leitinho da manhã. Jaqueline precisava ainda faturar algum para Das Dores comer algo e ainda levar um presentinho para a filha da vizinha que aniversariava.

Depois daquela primeira vez, Das Dores e Ratinho se tornaram grandes amigos. A madrugada sempre terminava num dos quartos dos hotéis do Centrão. Quase ninguém compreendia aquele relacionamento, mas que deu a Ratinho uma receptividade mais calorosa por parte de seus pares da noite. Durante os encontros, Das Dores pedia a Ratinho que contasse as suas histórias, ainda que repetidas. Em determinada ocasião, ela percebeu que encontrava muito prazer em se masturbar ao ouvi-lo, enquanto ele adorava tocar as suas fartas mamas e estapear a sua bunda rotunda. Era só o que o seu coração fraquejado lhe permitia fazer.

Um dia, Ratinho decidiu morrer. Já não conseguia alcançar as notas exigidas pelas partituras. Sabia que logo não seria mais chamado para trabalhar e isso o martirizava. Nem tanto por causa do dinheiro, mas pela companhia que desfrutava de velhos amigos dos tempos áureos da música no Rádio e na TV. Além disso, um a um dos seus companheiros estavam partindo ou não conseguiam mais tocar. Programou um encontro com Jaqueline, a sua Das Dores, e lhe avisou que aquele dia seria especial, a comemoração de uma data importante – a sua primeira apresentação na TV Rádio Clube de Pernambuco, em 1966.

Ratinho pediu para que Das Dores vestisse seu vestido mais bonito, a levou para comer em uma boa cantina e, de táxi, a conduziu para um motel de classe. Ao final de três horas, pediu para penetrá-la. Surpresa por vê-lo ereto, amorosamente abriu-se e o recebeu. Um minuto e dois suspiros depois, seu coração parou de bater no peito de sua amiga e gozou de seu descanso merecido.

Foto por Kendall Hoopes em Pexels.com

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F.

BEDA / Projeto Fotográfico 6 On 6 / The Color Of The Rain

Eu gosto da chuva como expressão, mas devido ao fato de estarmos causando o aquecimento global através de nossa ganância, o anúncio de sua chegada tem sido causa de preocupação. Principalmente para aqueles que moram em áreas instáveis, em que os mais pobres arriscam viver, sempre no limite, um olho aberto e outro fechado, os ouvidos sempre atentos ao primeiro trovão, dias, noites, madrugadas. Antes, havia meses específicos em que a chuva era mais abundante, como já foi cantada em versos. Em contrapartida, afora a inconstância dos intervalos, há período de secas que tem demonstrado que o clima adquiriu um humor imprevisível. Mas aqui eu anuncio períodos em que a chuva foi criadeira, como quem planta diria ou como o escritor aprecia.

TRABALHO (2013)

Primeiro dia de outono e não importa que parte do dia estejamos – manhã, tarde, noite ou madrugada – sempre haverá chuva, amena ou intensa, em algum ponto da cidade pelo qual qual passamos. Como tivemos problema com a nossa “kombosa”, emprestamos uma outra de amigos que conhecem como dividir as horas do dia. Neste momento, passávamos por trás de uma igreja. Em São Paulo, isso não significa estar no lugar mais calmo da cidade, mesmo porque, tratava-se da Catedral da Sé, no Centrão. Um lembrete, mesmo agora sendo noite, estamos, meu irmão, Humberto, e eu, trabalhando no lugar onde os outros se divertem…

ACADEMIA (2011)

Chuva forte, preguiça e outras coisas para fazer – tudo seria motivo para eu deixar de ir à academia neste dia indefinido, que não sabe se é útil ou feriado – até que eu recebi o devido incentivo do DJ Ari (um senhor vizinho a nós), com seu eclético repertório a todo volume. Naquele momento, acabei por receber a motivação necessária para partir para a suadeira. Obrigado, DJ Ari!

PISCINÃO (2015)

Após as chuvas da noite, no Piscinão Guarau, os urubus esperam a água baixar para celebrarem o almoço de domingo, em família.

SÃO FRANCISCO (2016)

Antes da chuva noturna, o dia de São Francisco proporcionou um entardecer em que os astros encenaram a troca de guarda. Mas não por muito tempo, já que nuvens negras e espessas assumiram a linhas do horizonte. A pontuar, o Santo foi dignamente representado pelo canto de seus companheiros, os pássaros…

CHUVA E SOL (2022)

Neste primeiro dia do ano, subi para a varanda, tentando capturar as gotas da chuva contra a luz solar. “Chuva e Sol, casamento de espanhol. Sol e Chuva, casamento de viúva!”. Quando criança, ficava a imaginar se seria o caso do espanhol ter se casado com a viúva. E viajava nas possibilidades. A Bethânia subiu comigo e se postou na mureta, tentando encontrar alguma novidade pelo entorno. Pedi para que fizesse uma pose para enviar para as outras filhas e ela não se fez de rogada. Feliz 2022 para todos os seres!

ROMANCE (2013)

A Chuva, ciumenta, assumiu o controle do curso do dia. No entanto, agora à tarde, ela não pôde impedir o triângulo amoroso entre a Terra, o Céu e o Sol. Silenciosamente, os três combinaram de se encontrar no leito macio do horizonte… O encontro foi breve, porém! Logo, soltando raios e trovões, a chuva, furiosa, reassumiu o controle da situação. Pois é, quem está na chuva, tem que se saber amar!

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F. / O Miau Do Leão

BEDA / A Paulista & Eu

Quando frequento a Avenida Paulista como visitante, fico na expectativa de que me revele alguns dos segredos por trás de cada parede. Não será os mesmos segredos de antes, porque por esta artéria de São Paulo passa sempre sangue novo. Não sei se lá estive antes de 1980, quando fui funcionário do primeiro McDonald’s de São Paulo – se tornando o meu primeiro e único emprego de carteira assinada. Aquela era a segunda unidade do Mac no Brasil. A primeira, do Rio de Janeiro, logo foi suplantada em movimentação financeira pela loja da Paulista e eu, que recebera a promessa de revezamento nas várias funções dentro da loja para entender todo o processo – com eventual progressão de carreira, fiquei restrito a uma só função. Foi o preço pago pela eficiência – que consistia em fornecer os ingredientes para os setores de finalização: carregar e descascar batatas (hoje, elas já vem cortadas), entrar nos frigoríficos – New York e Chicago – para pegar pães, latas de morango e chocolate para o Milk-Shake, carnes embaladas, xaropes de refrigerantes e outros itens. Cheguei a fazer sozinho todo o fornecimento. Decidi dar adeus àquele moedor de carne. O mais estranho de tudo aquilo é que eu era vegetariano desde os 17 anos. Prestes a completar 19, não via mais nenhum propósito naquilo, nem como experiência humana.

Paulista, construída pelas mãos de milhões – foto registrada em 2015.

Voltei a trabalhar na Paulista numa função totalmente informal. Passei a vender ingressos de peças de teatro através de um programa mensal. Mantinha o meu ponto em frente ao Teatro Gazeta no qual viria trabalhar algumas vezes no futuro acompanhando a movimentação intensa de estudantes do Curso Objetivo, frequentadores do cinema, do teatro e da Fundação Cásper Líbero. Apesar de não ter horário fixo, permanecia por oito horas na barraquinha. Ao final, eu a desmontava e a colocava num canto da entrada da portaria da Fundação, com o consentimento do pessoal. Cheguei a ser entrevistado o momento violento pelo qual passávamos, início dos Anos 90, por uma repórter sobre o tema. Logo fui deixado de lado, quando respondi: “a violência começa em casa…”. Não era essa a resposta que ela queria ouvir.

Pôr-do-sol, visão ao oeste da Paulista, num agosto de 2015.

Nos últimos 35 anos, em minha atividade de locador de equipamentos de sonorização e iluminação para eventos ao vivo, passei a trabalhar em vários pontos da mais paulista das avenidas e adjacências. Num velho casarão dos Anos 10 do Século XX realizamos uma “rave”, festividades em hotéis das alamedas abaixo, cerimônias em edifícios comerciais (como o da FIESP) e residenciais, SESC, bailes em clubes, diversos shows em outros espaços e ao ar livre. Pude conhecer a Paulista em todos os suas fases e facetas. Luzes e sombras. Percorri por caminhos por dentro do solo e pela superfície, assim como milhões de seres subterrâneos. Na Paulista, olhamos para frente, para o lado, para baixo e para cima. Sempre encontraremos algo que nos moverá do Presente para o Passado que nem sei se é o meu ou da consciência coletiva dos que viveram e morreram nesta via de várias mãos, construída por milhões de mãos.

Visão para o alto e além, ao final de mais um evento na madrugada, em 2018.

Outra lembrança que me pertence diz respeito a outra empreitada que me define escrever. Nas imediações da Paulista, mais propriamente na Alameda Campinas, tive os meus primeiros contatos com aquele ser ainda a ser desvendado, uma outra sagitariana na minha vida, Lunna Guedes. Foi lá que pude privar de sua convivência, conversamos sobre projetos futuros, o planejamento na participação em lançamento de coletâneas pela Scenarium. Como La Lunna é dada a humores, em determinado momento mudamos para uma paralela da mesma Paulista onde lancei Rua 2 , mais perto do Paraíso. Mas escrever fica longe desse mítico lugar o bíblico ainda mais que conversamos bastante com a Serpente no selo.

Texto participante do BEDA: Blog Every Day August

Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Bob F / Lunna Guedes / Suzana Martins / Cláudia Leonardi / Denise Gals