BEDA / Sábado Maldito Em Vila Madalena*

Sábado, normalmente, é um dia de trabalho para mim. E neste último, não foi diferente. Dia 25 de Março, estive em trabalho de parto. Homens também geram do seu “útero”, ainda que inexistente fisicamente, os seus filhos. E isso é uma REALidade. Tinha que ser na Vila Madalena. Eu não acredito em coincidências. Madalena era o nome que a minha mãe preferia nomear-se, mais do que o prenome Maria que também carregava. O seu nome foi dado em a homenagem à Maria Madalena, discípula de Jesus. Uma maldita entre as mulheres, ativista das boas novas. Ela, passados dois mil anos, ainda é motivo de discussões acaloradas por seu papel preponderante e proximidade com o Mestre.

Dito isso, mal dito talvez, esclareço que ser maldito é um característica particular de quem escreve. O escritor é um formulador de orações coordenadas, essa coisa antiquada e quase sem função em tempos de onomatopeias. Nada contra a quem se exprime dessa maneira. Mas é um anátema enviada ao sistema que não estimula a diversidade de expressões e faz crer aos mais jovens, que estão a chegar agora no planeta, que essa deva ser a regra. Ler, escrever, executar operações, como pensar a palavra, estimula o raciocínio, a planificação das ações, a antecipação das consequências. Que governante desejaria isso a um eleitor, por exemplo? Um leitor é, provavelmente, o pior eleitor para os mercadores do templos políticos.

Maldições à parte, bendigo o dia do meu encontro, patrocinado por Edward Hopper, com Lunna Guedes e, por decorrência, com o Marco Antonio Guedes. Eles são os mentores e malditos promotores da Scenarium Plural – Livros Artesanais, selo editorial que engloba seres que acreditam no ato da escrita como uma missão pessoal. Missão, eis outra palavra maldita. Ela está indissoluvelmente ligada à religião e creio que, como escritores que a compomos, religiosamente escrevemos para nos expormos como transformadores-transformados-em transformação. Malditos mutantes, nos unimos para orar orações em louvor aos deuses das Letras.

No Sábado Maldito Na Vila Madalena, compareceram amigos, conhecidos e parentes dos escritores que estavam a lançar os seus filhos, em páginas, à luz do mundo. Os meus companheiros de ScenariumAden Leonardo, com “Diário das Coisas Que Não Aconteceram”, Akira Yamasaki, com “Oliveira Blues” e Virginia M Finzetto, com “vi e/ou vi” – além de alguns dos formuladores da Revista Plural Avesso, em caminho conduzido por nosso Mário de Andrade. Estiveram lá, Joaquim Antonio, Marcelo Moro, Claudinei Vieira, Maria C. Florencio, Roseli V. Pedroso, Tatiana Kielberman (minha revisora), entre outros, a prestigiar-nos. Sei que quem não pode comparecer, estava igualmente presente de coração, a torcer para continuemos a cumprir a maldição de escrever – função artesanal e plural – livros de maldições, para o livramento da maldição do obscurantismo urdido pelos donos do Poder.

*Texto de 27 de Março de 2015, gerado a partir do lançamento de REALidade, meu primeiro livro pela Scenarium.

Participam do BEDA: Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia / Cláudia Leonardi / Darlene Regina

BEDA / Scenarium / Projeto Fotográfico 6 On 6 / À…gosto

Agosto de 2020 — Pandemia de Covid-19 grassando no País com a média de mais de 1.000 mortes por dia — por volta de 100.000 mortos oficialmente registrados, amplamente subnotificados. A direção da companhia indicou que poderíamos postar seis imagens à gosto. Escolhi algumas imagens que remetem ao passado. O presente indicado acima está um tanto estéril e o futuro não parece ser muito diferente, com tendência para ser um tanto enigmático, feito um jogo de azar.

 

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Esta imagem foi colhida outro dia. Um fusca 1969 estacionado quase em frente à minha casa. 1969, assim como esse ratão, também foi o ano da mudança definitiva para a casa recém levantada no terreno 22 do loteamento realizado na antiga fazenda de fumo, na região da Vila Nova Cachoeirinha. Durante muitos anos, os pés de fumo nasceram a esmo em cada canto livre do quintal. O que ajudou bastante no controle dos piolhinhos que infestavam as galinhas que começamos a criar para completar o orçamento familiar. Tirávamos água do poço, tomávamos banho de canequinha, expulsávamos os cavalos que comiam a cerca feita de bucha (a planta), festejávamos a colheita de bananas, goiabas, abóboras e abacates, nos irritávamos com as picadas dos marimbondos. Eu adorava jogar futebol — balizas improvisadas com tijolos — bola improvisada com pano, recheio de papel e cordinha na rua de terra. Em dias de chuva, andávamos de chinelo, calças arriadas, até o asfalto, distante quase 2 Km para só então colocarmos os sapatos levados em sacolas. Tempos difíceis. Eu era feliz.

 

6 on 6 agosto 6

Essa imagem remete ao sincretismo religioso de minha mãe. São resíduos físicos de um tempo em que eu não compreendia como uma pessoa abarcava todas crenças possíveis em seu cotidiano. Além de acender velas aos “espíritos”, não via contradição em apresentar imagens díspares na prateleira. Um Buda gordo, inadmissível num asceta que jejuava frequentemente, se referia a símbolo de prosperidade. Assim como o elefante de costas. O Cristo em pedra sabão, apontava para a sua criação cristã, de primeira comunhão — a qual também fiz — crisma, missas dominicais e adoração aos santos. No entanto, seu nome — Maria Magdalena — já apontava para a tendência em ultrapassar os cânones e se ater ao teor herético da religião. Ela adorava ter o nome da 13ª Apóstola e, para alguns, mulher de Jesus.

 

6 on 6 agosto 7

Essas conchas estão há muito tempo conosco na casa de praia, onde estou. Porém é bem provável que os moluscos que as ocuparam possam ter vividos mais de um século, antes dos 40 conosco. Há moluscos que, devido ao metabolismo muito lento, chegam a mais de 500 anos, a depender da espécie. São prodígios do passado. Mensagens de eternidade em tempos de rápida deterioração do mundo que nos rodeia, em todas as suas formulações. A arquitetura dessas habitações é esplêndida. Construída pouco a pouco, enquanto cresce, sua natureza é de deixar, após a sua partida, um monumento a beleza e a transcendência, para quem conseguir-quiser ver. São templos dignos de oração.

 

6 on 6 agosto 3

Ao vir para cá, recebi essas toalhas embaladas em plástico. Segundo a Tânia, eu as recebi de presente em meu aniversário de meio século de vida. Nem ela, nem eu nos lembramos quem me presenteou. Eu não sou ligado a regalos. Talvez uma postura de defesa de alguém que dificilmente ganhava presentes quando garoto. Quando acontecia, geralmente eram roupas. Sei que essa impassibilidade é mal recebida, mas não consigo evitar. O meu aniversário de 50 anos foi um acontecimento inesperado para mim. Minha família disse que haveria uma festa a qual deveríamos ir. Era um domingo e eu queria ficar em casa, assistir a um futebolzinho ou um a filme. Fiquei de mal humor. Disseram que não demoraria. O Buffet ficava perto de casa e vi ali a oportunidade de me mandar a pé assim que fosse possível. Ao subir as escadas, pelo menos 50 pessoas me esperavam. Revistas, as fotos com a minha expressão de surpresa dizem tudo. Pessoas que não via há muito tempo, compareceram ao evento e me senti um tanto estranho ao perceber que fosse alguém que merecesse ser homenageado. Os presentes, alguns guardo como marcas, como a camisa do São Paulo F.C. com meu nome e número 50. Outros, pertencem ao passado. O da imagem, tem sido útil para enxugar o meu corpo a caminho dos 60 anos…

 

6 on 6 agosto 5

Da parte inferior do cacho da banana ainda imaturo, sai um pendão e, em seu extremo, destaca-se um cone de coloração e consistência diferenciadas (avermelhado-roxo), que é a flor da bananeira. É conhecida como buzina, umbigo, flor, coração ou mangará da banana. Costumo chamar preferencialmente de coração. Dois dos cachos produzidos, cortamos os corações. Deles, podem ser feitas excelentes saladas. Analogamente ao umbigo, quando cortamos o cordão, os filhotes-bananas se desenvolvem mais rapidamente. Deixados sobre a mureta, sem a seiva que os alimentava, murcharam pouco a pouco, até fenecerem. Umbigos ou corações — quedaram amargurados.

 

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A foto mais prosaica deixei para o final. Nela, apareço com a face taciturna, amplificada pela heterocromia dos meus olhos. Quase uma marca registrada da minha condição mental diante do que vivemos, a natureza cromática dos tempos atuais — verso, reverso, controverso — ganham melhor definição em foto em preto, branco e tons de cinza, amálgama-palheta da composição de cores da maldição em ser brasileiro.

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina — Mariana Gouveia —

Lunna Guedes

Brumadinho

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Há uma Rua 2 em cada lugar do mundo…

Estar em Brumadinho foi um dos eventos mais felizes do ano passado, já no final de seu percurso. Reunimos a família e lá fomos para as Minas Gerais, que conhecia apenas por pequenas incursões em algumas cidades por ocasião das minhas atividades profissionais. O objetivo principal, além voltar a reunir a família em um mesmo tempo e espaço, era o de conhecermos o maior museu a céu aberto do planeta: Inhotim. Nele, a Natureza, bela e variada, em arranjos únicos de composição, se apresenta junto a incríveis criações artísticas humanas, em um contraponto que só posso classificar como uma experiência de imersão em realidade paralela.

De Minas, gosto do povo, admiro seus escritores, amo Drummond, venero Guimarães Rosa. Sou fã de músicos e compositores como João Bosco, Milton dos mil tons e da turma do Clube da Esquina.  Considero Minas o Estado que poderia exemplificar várias das melhores características do povo brasileiro – sobriedade, simpatia discreta e desconfiada, olhar de avalista de joia preciosa. Insulado por suas montanhas, o mineiro apresenta um vasto mar interiorizado para onde navega quando quer se recolher.

Em Brumadinho, tivemos contato mais de perto com os donos da pousada onde nos hospedamos – Rozângela e Luciano. Pessoas exemplares, com clareza de ideias, maturidade de sentimentos e saudade permanente do filho na França. Todos os dias, os via conversando através de mensagens, via imagens ou voz, com a parte de seus corações que estava do outro lado do Atlântico.

Certo dia, saímos para encontrar uma das muitas cachoeiras da região. Em dois carros, nós sete andamos por vários caminhos, ladeados por cercas das mineradoras por quase todos os cantos. Chegamos à vila junto ao Córrego do Feijão, com a informação onde haveria uma queda d’água. Véspera de Natal, descobrimos que seria difícil chegar a alguma das corredeiras por ali. Tentamos nos informar com alguns homens que estavam na pracinha quase em frente a Rua 1 com a Rua 3. Havia fotografado a placa da Rua 2 (nome do meu livro de contos) a uma razoável distância dali.

Achei engraçada essa aparente incongruência em que os números estavam tão afastados uns dos outros, em travessas que saíam da via principal. Coisas poéticas de Minas. Apesar de tentarem ajudar, os informantes pareciam confusos, como se não conhecessem o local. Talvez estivessem apenas gostosamente bêbados. Não tinham ideia do que lhes ocorreria dali a um mês. Cervejas nas mãos, vida mansa, dias previsíveis…

 

restaurante
Restaurante fechado

Decidimos buscar o outro lado da cidade, em direção à Aranha. Deixamos aquele espaço para trás – um antigo casarão, transformado em restaurante que fechou, casas, pousada, a igrejinha local, pequeno comércio de portas descidas e dois botecos abertos – sem imaginarmos, nós e eles, o drama que se avizinhava. Porém, apesar de previsível, já que estavam estabelecidas todas as condições para o horror que ocorreria, a vida seguia seu curso de rio limpo.

Atravessamos a região, em busca da cachoeira perdida. Sem conseguirmos, acabamos decidindo comer algo no Bar do Jiló, na esperança que na véspera de Natal estivesse aberto, contra todos os prognósticos. Quando nos aproximamos, carros parados junto ao bambuzal e à uma precária cobertura, denunciaram que ele estava servindo o seu famoso peixe frito. Seu João Jiló – antigo vendedor de verduras e hortaliças – nos atendeu com a simpatia de homem gordo que era.

Cenário de fundo, as águas do Paraopeba apresentavam um tom barroso. Disseram que era resultado do uso das suas águas pelas minas de ferro da Vale. Ao buscar refrigerante no barzinho, acompanhei três homens subindo em um barco para pescarem. Ao me virem, mesmo sem me conhecerem, convidaram para a empreitada. Respondi que não teria tempo. Além do que, se há algo que não vejo nenhuma graça é ficar horas e horas à espera que um bicho escorregadio, como o peixe, fisgar o anzol. Partiram contra a correnteza, munidos de natural coragem e cervejas…

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O Paraopeba, já enlameado antes do vazamento

Descobrimos com casal Gontijo que o nome Brumadinho deriva da cidade ao lado, conhecida como Brumado que, aliás, tem outro nome oficial, ao qual não me lembro. A origem se deve às constantes brumas que caracterizam a região. Após passarmos momentos descontraídos com os Gontijo, Jiló, sua filha e cachorros de rua que ficaram aos nossos pés e alimentamos com carne de peixe sem espinho, as meninas voltaram para o ROZtel. Eu e a Tânia, fomos a um supermercado para buscarmos itens para a ceia de Natal. Até retornarmos para São Paulo, dois dias depois, pudemos vivenciar o bom clima, o ar puro, a vida pacata de uma cidade privilegiada por abrigar pessoas de grande qualidade. A benção daquelas montanhas é também sua maldição. Isso vale para Minas Gerais inteira.

Mesmo a uma boa distância física do fato do dia 25 de janeiro, o que aconteceu com os mineiros de Brumadinho, nos atingiu igualmente. Foi uma parte do corpo brasileiro que foi invadido por todo aquele excremento. Gerações de políticos, de todas as orientações ideológicas, participaram desse concerto macabro. Não há o que consertar. O que aconteceu não tem remédio. Nós devemos lutar para que esse terror seja a base de sustentação para a revisão de nossos valores como nação. Devemos reavaliar nossas prioridades. Sem isso, a alternativa é que voltemos a chorar muitas mais vidas perdidas por pura ganância, materializada por contribuições para parlamentares e bônus de executivos sujos de sangue.

 

Por Rozângela Gontijo – Com a morte/lama na alma

“A morte de um ente familiar/amigo abre um buraco em nós. A morte de tantos, milhares de entes, pessoas, animais, plantas, pedras e rios deixa um abismo. Essa sensação abismal de morte/ausência/desaparecimento é uma das piores do mundo porque não pode ser representada. É a manifestação de um Nada absoluto. Como fazer o luto de um rosto que não se pode imaginar/pensar nessa grandeza de tantos, tantos, tantos que se infinitam? A imaginação não dá conta, o pensamento se perde e o Nada absoluto se revela no sentimento mais terrível para o ser humano: a angústia. A angústia é o sentimento do terrível inapresentável que sobrevém em nós e tudo que podemos ver é essa lama que inundou nossa alma.”