#Blogvember / Sem Arrependimentos

Adriana Aneli, em O Sol Tarde, nos revela que “me despi de tudo / desisti do arrependimento / faria tudo de novo”. Arrepender-se de algo implica em não gostar do resultado de uma ação e imaginar que se fosse feito de outra forma, as consequências seriam outras. Como numa operação matemática em que fatores diversos resultassem em um produto diferente. Bem sabemos que a vida não é assim. Entram em jogo movimentos invisíveis aos nossos olhos. As pessoas creem que as suas ações resultem em determinados efeitos, mas é comum que aconteça diferentemente do que se espera. Isso porque, apesar de boas intenções, as consequências são basicamente incontroláveis. Às vezes, uma gota d’água aleatória faz transbordar o copo cheio, desencadeando uma série de acontecimentos inesperados por mais que busquemos domá-los.

O SIM e o NÃO balizam as diretrizes que utilizamos como parâmetro. As opções que estabelecemos estão centradas em padrões que são apenas aparentemente claros. Aliás, principalmente para nós, envolvidos ideológica, moral, social, intelectual, material e afetivamente numa escolha. Cometemos frequentemente autoenganos por não sabemos com que roupa vestimos um ato disfarçado em outro. Não importa o viés pelo qual nos balizamos, sempre haverá perdas. Essa luta entre duas posições antagônicas e extremas não é resolvida se nos abstivermos de qual lado estaremos. Ficar em cima do muro implicará em algum momento em queda. A Lei da Gravidade é quase um “milagre” ao qual não temos como renunciar. E ela estabelecerá a escolha entre o preto e o branco. Mesmo porque, convenhamos, o cinza é estéril. Ainda que seja a cor padrão de nossa vida.

Em conversa com o meu irmão, eu lhe disse que pagamos por nossos pecados no momento que o cometemos. Essa imagem religiosa é bastante ilustrativa porque as Sociedades sempre se utilizaram da Religião para controlar os excessos que seriam cometidos sem a sua atuação. De certo, inviabilizariam as suas existências. Com promessas de fogo eterno no Inferno, a danação se daria em um lugar específico, localizado nas profundezas da Terra, então centro do Universo. Partindo dessa premissa anticientífica, a não ser que se acredite em relatos de homens supostamente guiados por Deus, a base de sustentação da expiação da culpa já não existiria. Não contesto mandamentos, apenas não acredito que possam ter o condão de condenarem automaticamente quem os contrarie.

Crer em algo é o esteio sobre o qual assentamos os nossos procedimentos. Mesmo que seja em Nada. Ao mesmo tempo, crenças implicam em erros por antepor o condicionamento mental e psicológico à visão clara e refletida de qualquer ocorrência. Em resposta, nossas ações põem em movimento processos no mesmo instante em que ocorrem. Não sendo visíveis de antemão, atuam como um moto-contínuo agindo de forma autônoma. As consequências são verificáveis à posteriori. Ainda assim, não são poucas as vezes que vermos surgir profetas de fatos acabados.

Eu decidi pessoalmente, depois de anos de relutância, me arrepender apenas do que fiz e não do que não fiz. É quase a mesma coisa que me despir de tudo que me levasse ao arrependimento. Algo como me conformar com os meus erros. E sim, faria tudo de novo. Nem que seja para me arrepender, realmente, mais tarde. Acho digno quando o arrependimento é consciente. Não podemos renunciar ao que somos. O outro, aquele em que estava me tornando, não era nada bonito. E este, mesmo feio, tem um certo estilo. E estilo é quase tudo.

Participam: Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Suzana Martins

Língua E Dedo

O assunto é um tanto espinhoso. Transita pela linha fina que existe entre aceitarmos a força que o Patriarcado exerce sobre nós — provocando efeitos dos mais perniciosos — e de como não o reforçar em nossas falas e comportamento social. Volta e meia caímos em armadilhas. Mesmo quem sempre tentou se desvencilhar das amarras machistas como eu, me pego diversas vezes em contradição. Desde muito cedo percebi que o que era incensado como privilégio masculino, joga sobre nós consequências que prejudicam a todos. Tornamo-nos meio-homens enquanto tentamos rebaixar as mulheres ao nível de nossas precárias medidas.

Todos nós — de gêneros, personalidades, preferências e identidades diferentes — claudicamos na compreensão do processo que engendrou a construção de nossa Sociedade e vivemos a reproduzir as suas deficiências. Entre eles, o sexo está no centro de vários desvios que acabam por desenvolver personalidades que não conseguem escapar ao vórtice que o coloca não como uma força criativa e energética, mas como estigma e, em sua égide, termina por suscitar o mal ao semelhante com ofensas, humilhações, ataques físicos e até assassinatos.

A sexualidade — ação, formação e ciência — força original humana, carnal, mas não menos vibracional e espiritual, permeia as relações sociais dos adultos de tal maneira que mal percebemos quando está presente em algum assunto, por mais prosaico que seja. Após certa idade, dificilmente alguém escapa à sua influência. As religiões, com as suas interdições, que a tudo proíbem, contribuem para que ocorra o inevitável choque traumático, tornando o conhecimento saudável do corpo e seus processos vitais desde o surgimento da puberdade e antes, quase impossível.

O prazer e a vivência benéfica da libido são transformados em pecado e findam por ser imputados como transgressões. Chefes religiosos conclamam a orações e pagamentos de penitências para alcançarmos a redenção, enquanto ocultamos o nosso desejo tão profundamente que quando irrompe o faz feito um vulcão, jorrando lava quente ao seu redor. Alguém sempre acaba magoado-queimado. Ou quase todos nós. Sou daqueles que entende o sexo como um elemento de transcendência. Apesar da química — em uma interpretação elástica — interferir nos encontros entre os corpos, a dimensão venerável do sexo para mim é evidente.

Contudo, não serei eu a erigir uma base filosófica que resolva as contradições ou instaure uma nova forma de ver o mundo. Seria uma embromação. Tudo já foi dito sobre o sexo no decorrer de milhares de anos de civilizações e culturas. Porém, são escolhidas justamente as regras que cerceiam essa pulsão vital. Filosoficamente, busco analisar certas questões relacionadas ao nosso comportamento sexual tentando destrinchar o que há por trás de certos “mandamentos” repetidos desde tratados até em rodas de amigos. Como exemplo, discorro sobre uma frase que inicialmente demonstraria um aspecto machista, mas que busquei outra forma de contemplá-la.

Um amigo antigo vivia a dizer, enquanto a passagem do tempo impedia que vivenciasse as proezas sexuais que protagonizou na juventude: “enquanto eu tiver língua e dedo, nenhuma mulher me mete medo”. Durante muito tempo o teor um tanto chulo da frase suprimia outra vertente ao qual cotejei indícios menos evidentes do que aparentava.

Primeiro, trata-se de um homem e uma mulher numa relação sexual. No entanto, poderíamos ampliar essas ações para outros agentes de diferentes identidades — o uso de artifícios e apetrechos que ultrapassam a simplicidade do contato entre as genitálias. Quando o sujeito revela que usaria língua e dedo para ajudar uma mulher a chegar ao orgasmo, compreende que na falta de um pênis inflado, ainda que simbolicamente representasse a sua masculinidade, ele não temerá o encontro.  

O que nos leva a questão — o homem teme à mulher ou à opinião que tenha sobre ele? Por amar a uma mulher, um homem se propõe a satisfazê-la, levá-la ao máximo do prazer, ainda que não possa ter uma ereção. Receia que a bem-amada entenda isso como falta de desejo. Teme que seja ridicularizado por não ficar de “pau duro” para ela. Uma mulher magoada, ao querer humilhar um homem, poderia vir chamá-lo de broxa. Nesse caso, ela se serve de uma ofensa de fundo machista, por mais que o Machismo seja a origem de inúmeros casos de abusos sofridos por ela. E será por causa do Machismo que o homem sofrerá quando não vier a responder às demandas e falhas intrínsecas à sua humanidade.

A formulação da frase mostra um homem frágil que busca sobreviver ao temor de broxar e ser atacado por isso. Em um filme de AlmodóvarCarne Trêmula — o marido paraplégico age exatamente dentro desse contexto para dar prazer à sua esposa até que eventualmente isso não seja suficiente para ela. Porém, entram tantos outros fatores alheios ao relacionamento sexual que não será apenas por esse olhar que as relações caminham para um desfecho explosivo.

Eu comecei a minha vida sexual tarde. Relativamente pouco tempo depois, casado, com duas filhas e uma terceira a caminho, a minha esposa aventou a possibilidade de que eu fizesse vasectomia. Ela penou nas gestações e nos dois partos anteriores e não queria mais passar por isso novamente. Ao mesmo tempo, tinha receio que o uso de contraceptivos bagunçasse ainda mais seu equilíbrio hormonal um tanto precário. Também se lembrava que a falta de uso da camisinha em um momento de ardor resultou na gestação de nossa terceira filha. No parto da caçula, decidiu fazer a laqueadura.

Eu acompanhava com empatia os enjoos, os vômitos, o mal-estar, o sono entrecortado, mas por mais que me sensibilizasse, não sofria o que ela sofria. Contrapus que o padecimento pelas gestações era primordialmente dela e que tão jovem eu não tinha condições psicológicas de me tornar infértil. Concordamos nisso na época e até este momento que isso tenha sido o melhor a fazer. Confesso que mesmo que não passasse pela minha cabeça ter outros filhos consanguíneos, a ideia de não mais tê-los me angustiava. Especulo se a postura de manter a fertilidade não seriam ecos do Machismo a reverberarem em minha psique — a do macho que se apraz de ainda poder fecundar uma fêmea…