BEDA / Scenarium / A Pizza E A Forma

Pizza

Em Quarentena, estando isolado na casa da praia, não tenho horários específicos para as refeições. Quase dez horas da noite, decido fazer pizza. Saio, compro os ingredientes necessários e, ao revirar o armário em busca da fôrma, encontro a máquina do tempo, ainda que incompleta, sem as presilhas. Nela, produzo uma boa pizza de atum e cebola com molho de tomate.

A minha mãe adorava novidades em apetrechos para o lar. Logo que foi lançada, Dona Madalena adquiriu uma fôrma que poderia assar pizzas utilizando as bocas do fogão. Economizava o uso do forno, em tempos de escassez, além ser mais prática e rápida. O segredo era saber dosar o volume do fogo para que não queimasse. E foi através daquele utensílio que voltei para mais de quarenta anos antes no tempo.

Vários instrumentos caseiros usados em décadas anteriores vieram para a casa da praia. Volta e meia, me deparo com pratos, xícaras, louças, copos e talheres antigos, além de vários outras coisas-mecanismos que me fazem voltar ao passado. Quase imediatamente, despontam visões da minha mãe a manipulá-los, como se fossem videoaulas de utilidades domésticas.

A pizza ficou boa. Sei fazê-las – as pizzas – assim como outras comidinhas, de maneira que minhas filhas voltam sempre a pedi-las. Nunca busquei aprender anotando ou medindo dosagens de ingredientes. Simplesmente comecei a reproduzi-las quase magicamente. Feijão, arroz, sopas, misturas variadas e outros componentes de refeições ou lanches se materializam concluídas e saborosas. O segredo – eu era ajudante de cozinha de minha mãe. Acho que, ainda que não estivesse atento, a repetição cotidiana foi apreendida de algum modo.

Talvez seja isso ou mamãe se apossa de minhas mãos e por elas revive o prazer de cozinhar para aqueles que ama. O ingrediente secreto, porém, é evidente – aquele que torna os alimentos mais simples em experiências tão saborosamente dolorosas, na verdade, uma junção rica de saudade e amor.

Beda Scenarium

BEDA / Amor E Carros

Amor & Carros
Malageña, Fusca de 1973. Proprietário: Humberto N. Ortega

Por dois dias seguidos, duas cenas parecidas, em dois lugares diferentes, chamaram a minha atenção, a envolver pessoas e carros. Nada de atropelamentos ou choques entre veículos, batidas contra paredes ou postes. Antes, foram cenas em parecia haver uma incomum comunhão entre máquina e ser humano, uma identificação entre carne e aço, criador e criatura.

Eu estava em minha atividade quando observei pela janela um rapaz com um pano na mão a rodear um automóvel branco. Por associação, devido ao seu biótipo alongado e à coreografia que executava, me pareceu um toureiro a empunhar um florete contra o touro. Porém, em vez de estocadas, “El Matador” caminhava, parava e passava o pano na “fronte”, nas laterais, na traseira, olhava de perto, se afastava, até que, no momento final, se postou diante da “fera” e ficou parado por um longo minuto, com os braços cruzados. O que eu supunha ser o proprietário, a tudo observava e parecia, tanto quanto eu, encantado com toda aquela movimentação. Mais um pouco, os dois entraram no carro e saíram, provavelmente, para o “test-drive”. Não mais os vi…

No dia seguinte, caminhava em direção ao banco, quando avistei, ao virar uma esquina de uma rua calma, três homens em torno de outro automóvel a uns vinte metros de onde estava. Dois deles, como expectadores daquele que examinava mais detidamente um veículo de cor escura diante deles. Eles se entreolhavam e giravam em torno dele, enquanto o que examinava volta e meia se agachava com insuspeita agilidade pelo corpanzil e idade presumível de quase setenta anos, com o olhar a se direcionar de cima para baixo. Curioso, diminuí os passos e quase parei, a fingir que buscava algo no bolso, enquanto presenciava o namorado diante de sua pretendida.

Em determinado momento, ele se aproximou da coluna dianteira direita da amada, passou carinhosamente a manga esquerda e pareceu conversar ao pé do ouvido de seu objeto de desejo, como a pedir que contasse a sua história, confidenciasse os seus segredos. Nesse momento, tropecei. Disfarcei o susto e voltei a cabeça para frente, a deixar a todos do corpo de baile executarem os passos daquela estranha ciranda em torno da dama, com a luz inclinada do inverno a conferir um brilho sedutor do capô do cisne negro.

O impacto desses encontros fez que eu voltasse a avaliar essa incrível conexão entre o homem e suas máquinas, especialmente o carro, ícone fundamental na revolução na história da humanidade desde o final do século XIX. Sei o quanto esse envolvimento passou do campo tecnológico para o pessoal. Dizer que muitas pessoas amam o seu meio de transporte como a “alguém”, não como algo, fez com imaginasse um futuro em que o desenvolvimento de novas tecnologias, fará com que um automóvel seja formatado de acordo com as preferências do dono, a ponto de haver tal simbiose que poderá se proclamar, ao ser avistado um automóvel: lá vem o João, a Maria, o José, a Raquel. Tal personalização conferirá o status de quase ser humano a uma coisa movida pela vontade de quem o conduzir… Ou será o inverso (que fará jus a sua nomenclatura)?

Amor e identidade entre carne e aço já é algo contado por aí e muitos que cresceram sendo levados de lá para cá no carro da família costumam lembrar-se com saudade do membro movido a motor à explosão. Não faltam histórias de amores explosivos movidos a dezenas de força-cavalo. Em meus devaneios mais severos, chego a enveredar para uma versão futurista tal o qual presenciei há quarenta anos em Geração Proteus*.

*Um supercomputador, Proteus IV, adquire autoconsciência e, como qualquer ser senciente, é curioso, questiona a razão das coisas e quer se reproduzir. Para tal, ele aprisiona a esposa do cientista que o criou, com a intenção de inseminá-la com o que poderia ser o início de uma nova raça, misto de homem e máquina. Produção americana de 1977, com o título de “Demon Seed“, no original. Estrelando, uma atriz que eu amava – Julie Christie.