O Broche

Segunda-feira de rescaldo dos eventos do final de semana pela Ortega Luz & Som. Satisfeito, mas cansado, começo a fazer as tarefas caseiras costumeiras: recolher o lixo, alimentar as cachorras e as garnisés, varrer os pisos da casa e do quintal, lavar a louça. São tarefas que me reconectam. Tenho textos a escrever, mas a perspectiva é que não possa ver o sol se pôr… pela nebulosidade que tomou conta do entardecer.

Entre os itens a serem descartados, encontrei um broche. A Tânia deve considerar que não seja importante ou que possa vir a usar eventualmente. Tem um aspecto passadista e um tanto chamativo. Normalmente, não encontraria guarida na caixa de acessórios das vestimentas e serem usados sem chamar a atenção como uma bijuteria espalhafatosa. Eu apenas suponho. Não perguntei a ela. Não a perturbaria no trabalho para questionar sobre isso.

Mas não a jogarei fora. Foi apenas vê-lo para lembrar de Dona Magdalena Nuñez (Blanco Y Prieto) Ortega. Mamãe adorava esses apetrechos. Tinha um estojo com alguns deles. Eu, em pequeno, os olhava fascinado como se fossem tesouros resgatados de piratas ou de Ali Babá. Eu a via experimentar vez ou outra, ensaiando para as ocasiões que em determinada época não eram tantas, em que nos reuníamos à grande família espanhola.

Incrível é o poder que uma simples peça sem valor tenha o poder de movimentar as pesadas engrenagens endurecidas do Passado e faça funcionar a Máquina do Tempo, o levando num átimo ao passado de meio século, nos transformando no menino que ficava a admirar a mãe a se pentear e se maquiar na antiga penteadeira, ao qual ela chamava de “pechinchê”. Os perfumes são reavivados, a escova volta a deslizar pelo sedoso e abundante cabelo, a luz indireta a entrar pela janela do passado é generosa ao trazer para os olhos míopes do velho a clareza da visão juvenil.

Um simples broche não é um simples broche. O seu corpo carrega tanta energia memorial que mesmo sendo feito de latão e plástico colorido, passa a ser tão valioso tanto quanto o tempo inteiro de nossa vida…
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Dulce

Dulce — doce, em espanhol — era realmente uma presença doce. Pequena, com as patinhas defeituosas, o peito e a barriguinha peladinha, ela não sobreviveria se vivesse livre. Sendo uma calopsita, de origem australiana, não encontraria espaço e clima ideais para viver por aqui. Nós a recebemos novinha e ficou com conosco por pelo menos 13 ou 14 anos.

Discreta, nos últimos anos estava sozinha, sem o companheiro, Horácio, que faleceu inesperadamente. A relação entre eles não era muito harmoniosa ou, pelo menos não era interativa. A gaiola onde ficava, nós a colocávamos para fora de manhã e a recolhíamos à tarde. Quando a temperatura estava mais alta, ficava até mais tarde e, às vezes, até passava a noite fora.

Acredito que ela gostasse de ficar no quintal, já que reclamava quando não a púnhamos em contato com os outros pássaros, as árvores e plantas do quintal, principalmente quando percebia movimento na casa. Ao encontrá-la, ela esticava uma das patinhas e uma das asas, que eu soube se tratar de um ato de satisfação. Normalmente, colocava comidinha no seu potinho, mas quando esquecia, também se fazia ouvir, reclamando.

De vez em quando, a soltávamos dentro de casa. Mas ela não gostava de que a pegássemos, dando picadinhas delicadas, como se protestasse. Vez ou outra, conversava com ela através de assovios, porém nunca consegui me comunicar convenientemente. Era comum, a Bethânia correr em direção à sua gaiola para assustá-la, por pura diversão. Quando a gaiola se esvaziou de sua presença, ela correu, mas parou assim que percebeu a sua ausência. Assim como ao passar no corredor que ela ficava, também a senti.

Ela compunha a nossa paisagem emocional e visual. Tentava me aproximar dela e entender o que ela estaria “pensando”, “sentindo”. Será que a sua solidão seria igual à nossa? Será que sabia estar presa a um espaço restrito ou aquele mundo era suficiente para sua expressão? Já que sempre viveu assim, institivamente sequer “imaginaria” que seus irmãos voassem livres, buscassem o seu próprio alimento, namorassem, procriassem e estavam à mercê de predadores, principalmente os seres humanos? Era feliz ou felicidade é uma quimera tipicamente humana?

Ontem, a Tânia fez um memorial com a gaiola da Dulce. Ela a preencheu com plantas. Acho que é uma linda homenagem à vida. A nossa promessa é que nunca mais teremos pássaros presos em nossa casa, mesmo porque tudo começou em atendimento a um desejo das meninas quando mais novas, que receberam calopsitas de presente. Em nosso jardim, temos pássaros constantemente a nos presentear com seus cantos e voos. Prendê-los para mim é um ato de pura inveja pelas asas que possuem.