24 / 06 / 2025 / Minta

eu desejo que minta
diga que me quer tomar por inteiro
neste abrasador janeiro
pela última vez neste quarto de quinta
que sujamos os lençóis de fluidos
seres que somos — excluídos
não fazemos conta na multidão
somos dos últimos os derradeiros
aqueles que ninguém gosta
ainda que queira ser percebida como distinta
desista
não gostou quando lhe comparei a uma gimba
de cigarro fumado ao meio
é que não estava presente quando o homem
em andrajos a encontrou jogada no chão
junto ao muro
e em um tênue murmúrio
a desejou entre os lábios
a aspirar sua fumaça cancerígena
perguntou a mim que passava por ele
se eu tinha fogo
se decepcionou quando eu disse que o meu fogo
ardia apenas no coração
praguejou: “caralho, você é mais maluco que eu!”
ficaria feliz a me juntar a ele e esquecer de mim
viver a andar a esmo sem rumo sem destino
em desatino
longe de mim de você que vive em mim
mas agora quero apenas que minta
que finja que simule gozar para mim
que se sinta tão limpidamente suja
como a puta que se vende por pena pura
e sequer dinheiro fatura
se assim for então nunca mais me verá
jamais passarei de novo por perto de sua presença
sei que não sentirá a minha ausência
mas quem sabe sinta uma espécie de vazio
como um calor tépido de uma febre que se perpetua
a fome de algo que lhe caiu bem mal
talvez sinta falta do pavor que lhe causava
como o gosto de sal na comida rala
ou uma topada que lhe lembrava que a dor não é opcional…

Foto por Aleksandar Pasaric em Pexels.com

20 / 06 / 2025 / Sabatina da Marineide*

Normalmente não participo deste tipo de sabatina. Não mais. Há pessoas que não gostam de devassar suas particularidades, por mais prosaicas que sejam. Respeito tanto, que não acionarei o 15º quesito: “15. Oito pessoas que acha que também irão brincar?”

Mas, um pedido da minha querida amiga Marineide, não tenho como negar. Sei do seu prazer em brincar, feito eterna criança que é. Apenas não sei se poderei atender a solicitação: “Consegue preencher sem mentir?”. Afinal, no próprio Facebook, apresento como divisa, a frase: “Sou escritor — digo a verdade, mesmo quando minto… Minto, ainda que diga a verdade…” — parece uma moeda com duas caras, mas a outra face é coroa.

01. Qual foi a última coisa que comeu?
R: Salada de fruta.

02. Onde foi tirada sua foto de perfil?
R: Na varanda da minha casa, olhando o pôr do sol.

03. Pior dor física que teve na vida?
R: Dor na parede intestinal, devido a uma colonoscopia.

04. Lugar preferido que já esteve?
R: Sou da praia, gosto da montanha, mas a visita preferida foi ao Planalto Central, a Brasília de Marineide e Luiz Coutinho, onde redefini o conceito que tinha da capital brasileira. Como em Sodoma e Gomorra, pediria ao anjo para salvá-la da hecatombe por causa de algumas pessoas que vivem lá.

05. Até que horas ficou acordado na noite passada?
R: Três horas da manhã, aliás a média do horário que tenho dormido. Tenho acordado às 9h.

06. Se pudesse se mudar para um outro lugar, onde seria?
R: Sou paulistano da Periferia. São Paulo é o meu lugar.

07 – Doce preferido?
R: Doce de banana.

08. Sente saudades da época da escola?
R: Não, especialmente, a não ser por algumas pessoas das quais recordo até hoje. Eu era um estranhíssimo fora do ninho.

09. Você é normal?
R: Normalíssimo. Não somos todos nós?

10. Qual a sua estação do ano favorita?
R: As que vierem, eu traço!

11. Abacaxi fica bom na pizza?
R: Adoro abacaxi. Vou tentar fazer uma com esse ingrediente.

12. Comida favorita?
R: Arroz (por baixo), feijão (na mesma quantidade, por cima), com farofa e banana.

13. Lugar que gostaria de conhecer?
R: Lugar de origem da família da minha mãe — creio que a Andaluzia — na Espanha. Se bem que seria apenas um déja-vù.

14. Último filme que assistiu?
R: Acabei de assistir a “triquetra” filosófica alemã, chamada DARK. Afinal, como todo mundo sabe e já disse Caetano, “só é possível filosofar em alemão”.

Nudez

Nudez
O semideus Hércules
 
No início dos tempos, principalmente em lugares de temperaturas mais baixas, os seres humanos instituíram o hábito protetivo de se vestirem. No decorrer do desenvolvimento das civilizações, mesmo em países mais quentes, essa proteção – a roupa – passou a intermediar a relação de nosso corpo com o meio. A moda tornou-se a linguagem sofisticada desse processo e estabeleceu um critério que, para muitos, veio a definir uma maneira de ser. Para tantos, “somos” o que vestimos.
 
 
Outra roupa que vestimos é a nossa própria pele. O nosso corpo carrega tantas informações sobre as nossas origens – fisionomia, forma, cor, idade – que, dependendo do uso que fazemos dele, passamos informações e conceitos claros e/ou subjetivos que queremos dar aos outros, quando podemos escolher. Se não, fugimos às comparações, porque ficamos à margem. Dessa maneira, preconceituosamente, nos conectamos a dados que “definem” o ser humano que se põe a nossa frente ou caminha do nosso lado.
 
 
Uma terceira vestimenta que carregamos é a cultura. Não falo de erudição, mas de expressão coletiva e de participação individual nesse caldo de saber(-se). Imagens, palavras, movimentos e falas nos mostram… e nos escondem. O jogo que se desenvolve entre nós todos, entremeado pela expressão física, a incluir a escrita, ilumina ou joga sombras sobre a compreensão correta do que, finalmente, somos ou queremos mostrar quem somos.
 
 
Apenas ao nos desnudarmos de tantos trajes poderíamos ser vistos realmente como somos… se é que desejemos que assim seja. Ao vestirmos tantas indumentárias, nos apresentamos como produtos de “histórias” emprestadas, a instituir a nossa própria história. Nessa barafunda de informações, é comum não nos identificarmos plenamente conosco. Tanto quanto seja comum mentirmos a nossa real identidade urbi et orbi, mentimos quem somos para nós mesmos.
 
 
Tivéssemos a visão total de nós mesmos e dos outros seres humanos, talvez não conseguíssemos sobreviver nus em pelo. Depois de desbastarmos todas as nossas camadas, feito uma cebola, talvez não restasse a mínima consistência ou ao menos o odor ou o sabor… Talvez nos restasse somente as lágrimas a preencher o oco vazio…

A Convicção & O Convicto

Stones and shells pyramid
Pedras convictas

Um mestre e seu discípulo caminhavam junto a um lago, quando o homem de barbas brancas estacou o passo e pediu para que o moço ficasse há uns dois metros de onde estava. Junto aos dois, um montículo de pedras arredondadas, quase chegava a constituir uma pequena pirâmide. O sábio preceptor agarrou uma delas e pediu para que ele se posicionasse de costas, lateralmente ao lago.

– Rapaz, feche os olhos…

Logo, ouviu-se, a uns quatro metros, o som característico do choque da pedra contra a água do lago. Passados alguns segundos, o Mestre solicitou que o jovem se voltasse e olhasse para a linha d´água.

– O que você vê? – perguntou.

– Eu vejo círculos concêntricos a se espalhar do ponto onde o Mestre jogou a pedra…

– E se eu lhe dissesse que o que você supõe não corresponde à verdade? Que eu, na verdade, não arremessei a pedra em direção ao lago?…

– Eu ficaria surpreso, Mestre! O senhor pegou uma pedra do monte e, mesmo que não tenha visto, tudo indica que tenha arremessado em direção àquele ponto, pelo som que ouvi e pelo efeito visual que produziu… O que corresponde perfeitamente à experiência que já vivenciei outras vezes.

– Você confia em seu digno Mestre?

– Sim, eu confio, Reverendo…

– Então, acredite quando eu digo que não arremessei aquela pedra… Nem tudo o que nos indica a experiência condiz à veracidade dos fatos.

Meio a contragosto, o aluno aceitou o seu argumento. Pela tarde inteira, a mesma situação se repetiu, até que a pequena pirâmide se desfez completamente. O discípulo tinha plena convicção que o grande condutor do rebanho de seguidores, do qual ele fazia parte, atirara todas as pedras ao lago e desfizera a pirâmide. No entanto, a recusa do Mestre em confessar que cometera reiteradamente aquela ação talvez não significasse que o Mestre mentisse, como todos.

O discípulo confiava, como tantos, que aquele ser iluminado, que nascera para mudar o mundo, estava apenas a tentar demonstrar uma lição e um propósito, o qual ele não alcançara totalmente a acepção, e que, talvez, só o tempo revelasse. Ele começou a acreditar que havia um simbolismo. Eventualmente, a de que não importaria de que maneira, mas que o objetivo seria o de nivelar as bases, reduzir a pirâmide ao rés do chão… Tudo se justificaria, se assim fosse… Até mentir?

De toda a forma, o discípulo continuaria ao lado do Mestre, ainda que surgisse testemunhas que dissessem terem visto o supremo magistrado de destinos a jogar seixos no lago… Aliás, todas as provas do mundo não demonstrariam a verdade que tinha para si – a de que a crença era mais poderosa que a realidade…

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