BEDA / O Dia Da Mentira

Mentira I
1º de Abril de 1964

A decisão final foi tomada um dia antes, mas apenas na madrugada do dia 1º de Abril de 1964 – iniciou-se a movimentação das tropas para fora dos quartéis. O País amanheceu sob novas diretivas. As corporações militares, sempiternas entidades presentes no ao longo de nossa “democracia republicana”, assumiram o comando do governo – Golpe de Estado. Depois de vinte anos, o Brasil voltou a vivenciar outro regime de exceção, ainda que houvesse a promessa que fosse um expediente de breve duração. O pretexto usado pelos generais e almirantes de mar e ar era o de recolocar nos trilhos o trem institucional e impedir o eminente caos social. Depois de quatro anos, em 1968, com o Ato Institucional Nº 5, a Ditadura definitivamente foi sacramentada.

A discussão, que se acirra de tempos em tempos, entre “vencedores” e “vencidos”, ao denominar de “Contrarrevolução” ou “Golpe” o acontecimento que se deu no “Dia da Mentira” não foi a principal consequência desse episódio. Não foi mentira que grupos armados empreenderam ações para atacar o Regime, como não foi mentira que o Estado sob o comando das Forças Armadas prendeu, torturou, matou e fez desaparecer opositores do Regime. Não foi mentira que pessoas que pensavam diferente do estabelecido como padrão pelo Governo Central foram presas e exiladas. Não foi mentira que a Censura ganhou ares de Grilo Falante onipresente.

Não foi mentira que a serviço do combate aos soldados do sonho de uma América Latina unida sob o Socialismo, foram empregados agentes oficializados, aqueles tipos que sob qualquer bandeira se aprazem em executar, com requintes de crueldade, as piores atrocidades que um ser humano pode fazer ao outro. Meu pai relatou que durante os meses em que ficou preso passou pelo “pau-de-arara” e por aplicações de choques elétricos sob as unhas e no pênis. Normalmente realizadas a noite, essas sessões rasgavam o manto do silêncio com os urros de dor dos torturados, que ecoavam pelos corredores e celas dos outros “detidos para averiguação”. A tortura física de uns era a psicológica de outros. Denunciado por um companheiro de “atividades clandestinas”, que também foi “convencido” a entregá-lo, o tempo que meu pai passou na prisão causou a ruptura nos últimos liames de união familiar.

Desde que voltou do cárcere, o medo de que fosse buscado na calada da noite, o impediu que se sentisse tranquilo em nossa casa. Ele preferiu estabelecer outros esconderijos. Quando finalmente se sentiu à vontade diante das mudanças que ocorreram nos anos seguintes – Lei da Anistia, volta dos exilados, formação de novos partidos, eleições para cargos majoritários (exceto Presidência) – escolheu um quartel definitivo. Minha mãe, que sempre o acompanhou nas peripécias e incursões contra a Ditadura, foi deixada de lado. Meu pai se estabeleceu em uma base de retaguarda melhor para ele. Segura o suficiente para lançar a contraofensiva que viria um dia e veio, democraticamente, tendo a mim como aliado.

Sonho de chegada ao poder materializado, no entanto quem havia lutado contra o “status quo”, ao tê-lo nas mãos, se estregou paulatinamente às suas redes de sustentação-prisão. Para mim, seu filho, era uma derrota anunciada. Coloquei os meus receios, lembrando as denúncias que ele mesmo fizera em certo momento à direção do partido. Estranhamente, em outro, elas foram atenuadas ou esquecidas.

Decisões que tomou no âmbito familiar ajudaram a matar intimamente o meu antigo herói. Divergências mescladas a essas questões pessoais nos distanciaram a ponto de não nos reconciliarmos até a sua passagem, há um ano. Talvez tenha sido melhor que tenha ido antes que visse se avolumar a sombra de prenúncios de tempos soturnos, ao som de coturnos e gritos noturnos. Apesar de tudo, um dia eu amei aquele homem que acreditava na Revolução popular. Homem inteligente, deve ter sentido o que estava para acontecer. Quis fugir para o refúgio definitivo…

Maratona Setembrina | Como Posso Ajudar?

Pergunta

Vez ou outra, aperto sem querer alguma tecla no celular que acessa o Google, com a questão: “Oi! Como posso ajudar?”… Não foram poucas as vezes que pensei em perguntar como faria para parar o mundo e descer desta nave que viaja a velocidade orbital média de 107. 200/h em torno do Sol. De fato, em vez de simplesmente causar uma hecatombe mundial, bastaria deixar-se ir… Uma tentação que ressurge de tempos em tempos, apesar da consciência pessoal de que somos mais e melhor do que nos apresentamos como seres humanos.

A sensação é que não há saída objetiva para a situação encalacrada em que nos metemos. Erramos como coletividade, muitas vezes buscando o acerto. Ouço em minha cabeça o dito repetido por minha mãe: “O Inferno, de boas intenções, está cheio!”. Porém, não devemos deixar de perceber que mal-intencionados trabalham ativamente a favor da continuação deste quadrante confuso em que nos perdemos, por onde trafegam com habilidade e facilidade.

Eu acredito que seja Espírito encarnado e não apenas uma carne com alma. Portanto, atuo no mundo material e não devo deixar de participar do concerto regido por minhas ações – causa e efeito. Acredito que, conjuntamente, devemos construir nossa realidade física. Acredito que o Amor seja o filtro mais eficiente para nos conectarmos com o repositório energético original de nossa existência. O Amor abre portas, agrega, ajuda e reconforta.

No entanto, a tendência é de que se responda com Ódio a situações difíceis. Dos dois lados, os “separatistas” – oportunistas que buscam nos fragilizar como cidadãos – apostam todas as fichas na desunião para se assenhorarem do poder delegado por nós, através das eleições. Sabem que há divergências de opiniões e as realçam, em vez de buscarem objetivos em comum. Bem aparelhados, se apropriam de um discurso fácil e padronizado, que não dá margem à debates – comandos de ordem-unida. Dado “novo”, em termos de força, as redes sociais ganharam expressão inaudita nessa tarefa.

O que existe de concreto é que, mais do que nunca, as pessoas deixaram suas convicções internas eclodirem, como pústulas. Abriram suas caixas de Pandora particulares e libertaram para o mundo preconceitos e posturas que não contemplam solidariedade, compreensão ou tolerância. A convivência de diferentes opiniões tornou-se quase impossível diante de posturas inflexíveis, em que além da falta de compreensão de texto, entra em cena a pura imposição de valores pessoais de uns sobre os outros.

O fantasma da Ditadura nunca se fez tão perigosamente presente cotejada como solução desde a redemocratização do País. Os militares – igualmente cidadãos brasileiros, mas que são impedidos de atuarem politicamente pela Constituição – tem em seus quadros saudosos do tempo em que imperavam. Naquela época, patrocinaram e deixaram que prosperassem a tortura e o assassinato, com o ativo envolvimento de civis na estrutura montada para a repressão.

Está a se enganar quem crê não houve corrupção nesse período. A carta branca obtida através do Golpe de 64 levou à corporação o bichinho da prevaricação corporativa típica do arcabouço estatal arcaico desenvolvido ao longo da História brasileira. A bem da verdade, sob o manto insuspeito da divisa “Ordem e Progresso”, grupos que sempre se refastelaram de benesses associadas ao poder, continuaram atuando com total proteção daqueles que deveriam promover a segurança e o bem-estar da maioria da Nação.

Como quem noticiasse qualquer irregularidade poderia vir a sofrer represálias como prisão, tortura, desaparecimento, “suicídio” ou morte, as vozes se calaram ou foram caladas. Daí a errônea perspectiva de que não ocorresse as “tenebrosas transações” enquanto estávamos distraídos em sobreviver. Assim, estamos a nos postarmos diante da urna com a dúvida cruel entre votar em quem acreditamos ser a melhor alternativa para nós ou contra quem representa retrocesso e insegurança, ainda que anuncie combatê-la como mote de governo.

Enquanto isso, observo a noite estrelada, tendo a Lua como rainha soberana. Algumas luzes já estão mortas a milhões de anos, alheias aos nossos prosaicos problemas. Porém, ainda podemos a vê-las. Registros legíveis de um passado. Assim como certos fantasmas que apenas esperam a oportunidade para ressurgirem da escuridão dos porões ondem vivem…

maratone-se