Amor E Sangue*

Aquela parecia ser mais uma história como muitas outras que eu já lera em revistas ou livros ou já vira na televisão em filmes ou novelas. Eu era um garoto tímido que se entretinha a escrever poemas para amores sonhados e perfeitos, vividos em paisagens perfeitas, enquanto à minha frente escorria o esgoto a céu aberto na rua de periferia na qual morava.

A diferença é que, enquanto me divertia com o distanciamento seguro que mantinha dos contos de amores fictícios, houve uma época que passei a sentir dor física por amar. Como em um típico enredo juvenil, amava a uma colega de classe. A mais linda. Ou era o amor que a tornava mais linda. Eu amava cada gesto com o qual feria o ar e enchia o momento de beleza perante os meus olhos de garoto míope. Os seus olhos verdes se confundiam com a luz vestida de verde por causa das árvores do entorno do pátio da escola onde passávamos o recreio. Quando os seus cabelos, à linha do ombro, brincavam com o vento, eu segurava a respiração ao ver os longos dedos de suas mãos tentando manter alinhados os fios castanhos do alto até as pontas, que terminavam em semicírculos naturais. A sua boca sorria por graça e de graça porque tudo era motivo de alegria naquela idade de descobertas.

Eu me admirava de como ninguém percebesse que tamanho encanto existisse e o mundo não parasse para vê-la passar. Ao mesmo tempo, a recusa em correr atrás da bola improvisada com papel, saco plástico e elástico com a qual eu e outros meninos jogávamos na quadra, no período entre as aulas, começou a gerar suspeitas entre os colegas. Obviamente, estava doente… Ou apaixonado. O que terminava por ser o mesmo, todo mundo o sabia, mesmo naquela idade. Só restava saber por quem. A tentativa em disfarçar o objeto de atenção talvez até soasse mais eloquente do que quisesse fazer entender. Porém, nem para o meu melhor amigo revelei o seu nome e o guardei tão secretamente que hoje não me lembro realmente qual fosse. O que torna a história ainda mais autoral, pois posso escolher qualquer um.

Contudo, essa história não foi totalmente platônica. Houve um momento de aproximação e sangue. Aconteceu o que era mais comum do que seria bom para a imagem de alguém que quisesse parecer forte, que o meu nariz começasse a sangrar. Sem mais, nem menos, lá estávamos nós, os alunos, reunidos para alguma atividade, quando, rubra como a minha vergonha, se deu a hemorragia. Colocava a cabeça para trás e quase me afogava com o grande fluxo do líquido de origem arterial que não cessava de vir à tona quando, no momento mais crítico, vejo, meio nebulosamente, pois tirara os óculos, a figura da minha amada, bem próxima do meu rosto.

“Olha”, disse, “pega isso!”

Ela, gentilmente, me oferecia um lenço branco, que eu quis recusar, alegando que o mancharia. Ela retorquiu que aquilo não tinha a menor importância e insistiu que o pegasse. Aceitei, meio envergonhado e, meia hora depois, consegui fazer cessar o sangramento. Não me lembro direito como evoluiu o nosso relacionamento, mas o mais provável é que a minha vergonha por não poder devolver o lenço, manchado de vermelho paixão, impediu que eu fizesse algo a mais do que esperar que o ano letivo terminasse, deixando que o tempo se incumbisse que eu a esquecesse. O que se pode perceber que não aconteceu…

*Texto constante de REALidade, livro de crônicas lançado pela Scenarium Plural – Livros Artesanais em 2017.

Sem Rodeios*

Estádio do Morumbi / Cícero Pompeu de Toledo

SEM RODEIOS

As minhas interlocutoras me pedem: “Pai, fale sem rodeios!”…

Respondi com outra pergunta: “Vocês acham que faço muitos rodeios para falar?”…

Não precisei ouvir a resposta, que, aliás, foram risadas de escárnio carinhoso, como só pessoas que são amadas incondicionalmente dão sem temerem represálias. Eu mesmo respondo: sou um homem que faz muitos rodeios. E isso não é algo novo em minha história.

Para nascer, a fórceps, fiz rodeio… Aliás, havia rodado pela barriga da minha mãe e me encontrava invertido. No começo da adolescência, fiz tantos rodeios para dizer que amava uma coleguinha de escola que depois a vi beijando outro rapaz… No entanto, foi por volta dos meus 14 anos que talvez tenha feito o meu maior rodeio…

Eu e mais dois amigos com os quais jogava futebol, decidimos fazer um teste no São Paulo Futebol Clube, meu clube do coração. Nunca fui um jogador notável. Não nasci com a habilidade natural para o jogo que muitos meninos demonstram desde cedo. Mas era aplicado e tinha visão estratégica do jogo. Na falta de outras capacidades, achava que isso deveria bastar para chamar atenção dos selecionadores.

Ao contrário dos dias atuais, o acesso à informação não era tão fácil e por não sabermos onde poderíamos fazer a “peneira”, decidimos nos dirigir ao Estádio Cícero Pompeu de Toledo, no longínquo bairro do Morumbi, principalmente para quem morava do outro lado da cidade, como nós.

Ao chegarmos à região do Clube, não soubemos com quem falar sobre o que pretendíamos. Na verdade, creio que ficamos intimidados diante do “gigante de concreto armado” e decidimos caminhar junto ao muro que o cercava e o rodeamos inteiramente. A circunavegação por nossos sonhos durou cerca de uma hora, mais ou menos… Talvez pudéssemos ver alguma movimentação em algumas das várias entradas, perceber algum garoto da nossa idade vestindo um uniforme de jogador… sei lá…

O que sei é que voltamos para a casa sem termos coragem de pedir alguma orientação a algum funcionário ou mesmo a algum transeunte. Eu, pessoalmente, já míope desde os 12 anos, escudado no conhecimento de que Pelé era igualmente falho de olhos, já havia ultrapassado a minha cota de ousadia apenas pelo fato de acompanhar os meus dois colegas naquela empreitada…

Poderia continuar a descrever várias ocasiões em que fiz rodeios intermináveis para chegar a algum lugar. Em uma dessas situações, não fosse pela mãe das meninas me imprensar contra a geladeira, eu provavelmente não estaria aqui para contar esta história para as minhas filhas…

Texto de 2016*

BEDA / Amor E Sangue

Amor E Sangue

Aquela parecia ser mais uma história como muitas outras que eu já lera em revistas ou livros ou já vira na televisão em filmes ou novelas. Eu era um garoto tímido que se entretinha a escrever poemas para amores sonhados e perfeitos, vividos em paisagens perfeitas, enquanto à minha frente escorria o esgoto a céu aberto na rua de periferia na qual morava.

A diferença é que, enquanto me divertia com o distanciamento seguro que mantinha dos contos de amores fictícios, houve uma época que passei a sentir dor física por amar. Como em um típico enredo juvenil, amava a uma colega de classe. A mais linda. Ou era o amor que a tornava mais linda. Eu amava cada gesto com o qual feria o ar e enchia o momento de beleza perante os meus olhos de garoto míope. Os seus olhos verdes se confundiam com a luz vestida de verde por causa das árvores do entorno do pátio da escola onde fazíamos o recreio. Quando os seus cabelos, à linha do ombro, brincavam com o vento, eu segurava a respiração ao ver os longos dedos de suas mãos tentando manter alinhados os fios castanhos do alto até as pontas, que terminavam em semicírculos naturais. A sua boca sorria por graça e de graça porque tudo era motivo de alegria naquela idade de descobertas.

Eu me admirava de como ninguém percebesse que tamanho encanto existisse e o mundo não parasse para vê-la passar. Ao mesmo tempo, a recusa em correr atrás da bola improvisada com papel, saco plástico e elástico com a qual eu e outros meninos jogávamos na quadra, no período entre as aulas, começou a gerar suspeitas entre os colegas. Obviamente, estava doente… Ou apaixonado. O que terminava por ser o mesmo, todo mundo o sabia, mesmo naquela idade. Só restava saber por quem. A tentativa em disfarçar o objeto de atenção talvez até soasse mais eloquente do que quisesse fazer entender. Porém, nem para o meu melhor amigo revelei o seu nome e o guardei tão secretamente que hoje não me lembro realmente qual fosse. O que torna a história ainda mais autoral, pois posso escolher qualquer um.

Contudo, essa história não foi totalmente platônica. Houve um momento de aproximação e sangue. Aconteceu o que era mais comum do que seria bom para a imagem de alguém que quisesse parecer forte, que o meu nariz começasse a sangrar. Sem mais, nem menos, lá estávamos nós, os alunos, reunidos para alguma atividade, quando, rubra como a minha vergonha, se deu a hemorragia. Colocava a cabeça para trás e quase me afogava com o grande fluxo do líquido de origem arterial que não cessava de vir à tona quando, no momento mais crítico, vejo, meio nebulosamente, pois tirara os óculos, a figura da minha amada, bem próxima do meu rosto.

“Olha”, disse, “pega isso!”

Ela, gentilmente, me oferecia um lenço branco, que eu quis recusar, alegando que o mancharia. Ela retorquiu que aquilo não tinha a menor importância e insistiu que o pegasse. Aceitei, meio envergonhado e, meia-hora depois, consegui fazer cessar o sangramento. Não me lembro direito como evoluiu o nosso relacionamento, mas o mais provável é que a minha vergonha por não poder devolver o lenço, manchado de vermelho paixão, impediu que eu fizesse algo a mais do que esperar que o ano letivo terminasse, deixando que o tempo se incumbisse que eu a esquecesse. O que se pode perceber que não aconteceu…