BEDA / Anti-Sinais

sinais são importantes
a eles devemos ficar
atentos
caetano
               perguntado se respeitava sinais disse
claro
          são sinais
                          pergunto
por que queremos desrespeitar
                                                  o que nos sinalizam?
propaganda de cremes anunciam
serem anti-sinais
como se quiséssemos
apagar
                                               a nossa trajetória
aos meus 14
                     uma senhora disse para seu filho
no ônibus
                 deixa o moço passar
fiquei espantado
                           eu me tornara um moço
barba branca no rosto
atendentes me chamam
                                      de moço
sei que é uma maneira
                                     de afagar a vaidade
estratégia de recepção ao cliente
mas o meu espanto persiste
sou velho demais
                             para ser chamado
                                                          de moço
cabelo rareado
                         redemoinho falhado
para suavizar discrepâncias
raspo a cabeça
                         cheia de mentais
                                                     reentrâncias
reafirmo a queda inevitável
palavras caducam?
tenho evitado escrever algumas…
sempre
              e
                 nunca
tenho as considerado definitivas demais
aliás
         tenho tentado evitar também
                                                        demais
aliás
         também
                       e aliás
e sempre
               é logo mais
o nunca
              nunca mais
porque viver nos ensina que marcar
coisas como definitivas
não pertence
                      ao nosso mundo
imediatista
                   impermanente
se me contradigo aqui
é por falta de opção
                                 como não há opção
para a morte do corpo
                                    como sei que a energia
é infinita
                enquanto este universo existir…

Foto por SHVETS production em Pexels.com

Participam do BEDA: Suzana Martins / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Darlene Regina

Blogagem Coletiva Scenarium / De Que Eu Me Lembro? / Lembrar-Me

Do que eu me lembro, nada obedece a uma sequência programada, sequencial, consequente. Talvez, caso eu fosse chamado para um interrogatório — onde você estava em tal dia, em tal lugar, com quem, de que maneira chegou até lá, quais eram as suas intenções? — quem sabe conseguisse puxar pela memória fatos que me revelassem o crime cometido.

Por mais que me sinta culpado — aquela culpa atávica de estar vivo e inteiro num mundo em processo de desintegração não creio que seja um sujeito ruim. Colabora para esse sentimento liquefeito a facilidade de me esquecer. Por uma estratégia de sobrevivência, vou me desvencilhando dos elos da pesada corrente que nos puxam para o passado. Não as arrasto feito fantasma de mim mesmo. Ainda que identifique aqui e ali marcas de ferrugem na minha memória.

Ao mesmo tempo, tento me manter atento ao fato de fazer parte da espécie que me dá as referências sobre as quais caminho — Homo sapiens — homem, brasileiro, idoso (renitente), simpatizante da diversidade de gêneros e identidades sexuais, feminista mentalmente formado no Patriarcado, portanto, contraditório. A situação mais marcante que aconteceu comigo nos últimos tempos foi o arredondamento da minha idade para os fatídicos 60 anos que me faz automaticamente precipitar para o abismo dos “idosos”. Brincando, digo que o “fardo” que carrego é de alguém com 59.

Para muitos, é como se fosse a chancela para seja sacrificado por sua inutilidade. Para mim, é a oportunidade de demonstrar para mim mesmo as teorias que desenvolvi desde novo, quando já não sentia acolhido pelos números que designam os ritos de passagem de criança, para adolescente, depois para jovem adulto, adulto, meia-idade, velho, decrépito… — a que o processo de desenvolvimento é pessoal. As idades mentais não se coadunam muitas vezes como as físicas, que o espírito é independente do corpo, apesar da gravidade atuar inexoravelmente para que concordemos com os parâmetros confortáveis que ditam tarefas afeitas a cada tempo de vida.

De modo mais claro, eu me lembro que transitei por “idades” díspares pelas quais era identificado. Já fui um velho moço, um adolescente quase à morte, um senhor criança e sou, se é que se pode estipular dessa maneira, um eterno curioso de mim no mundo, em busca de uma desesperada identificação com os outros seres da minha espécie. No entanto, rejeito rótulos, oblitero exteriorizações, tento caminhar por referências pessoais, procuro me incluir entre os tolerantes. Ainda que seja eu a principal vítima de minha intolerância.

Fisicamente, quando passei por um processo de enfermidade, em que emagreci 30 Kg em pouco tempo, lutei para não me assustar com a imagem que via no espelho, totalmente diferente da que carregava em minha memória como sendo a do Obdulio que conhecia. Não apenas eu, mas as pessoas não me reconheciam de imediato e o olhar que apresentavam quando me viam era assustador. Mais novo, ao adotar o vegetarianismo, também havia perdido bastante peso e ocorreu algo diverso — eu continuava a me ver como era antes.

Eu havia desenvolvido a distorção de imagem pela qual muitas pessoas passam em diversas circunstâncias. O ex-gordinho continuava a se ver gordinho e o olhar de horror das pessoas era mais evidente em uma época que a AIDS surgia com força avassaladora. Isso serviu para me identificar com quem sofria a rejeição pela doença e atento às informações sobre a enfermidade, sabia que a “peste” que grassava maior então era a da ignorância — algo cíclico em todos os tempos — que se abateu sem dó sobre quem viveu aquela fase tenebrosa.

Muita da minha memória é autorreferente. Eu fico encantado com quem consegue falar sobre o que aconteceu com os outros como se estivesse descrevendo um filme. As minhas lembranças que pontuam espasmodicamente aqui e ali, normalmente são de aparente insignificância, sem correlação com algo que pudesse ser chamado de “história”. Tem mais a ver com cacos de fatos disparatados como se fossem flashes instantâneos de recordações randômicas, aleatórias. Talvez fosse o caso de fazer análise de forma mais sequencial. Todas as vezes que começo, porém, acontecimentos alheios à minha vontade se interpõem, fazendo com que pare.

Enquanto isso, escrevo. É bem possível que minhas histórias sejam lembranças guardadas em algum depósito mental, liberadas aos poucos como se pertencessem a outros. Ou poderia dizer que essas histórias acabem por se incorporarem à minha, as tomando como se fossem comigo. Essa simulação de ser que muitas vezes me sinto, se mostra débil, mas estranhamente vigorosa, como se fosse a maior característica de minha existência: um sobrevivente que caminha sobre escombros de terra arrasada. Sobreviverei enquanto a curiosidade me guiar à procura de saber quem eu sou.

Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso

B.E.D.A. / O Momento

Sob a Lua invernal, confidencio…

Há quanto tempo? Dependeria de cálculos totalmente aleatórios por tantas variáveis quantas forem possíveis, porque o aspecto mais interessante nessa coisa de demarcar o tempo, sem dúvida, é o quanto essa sinalização guarda relação com outras coisas-situações… Há aqueles que avidamente desejam sofrer a experiência, com urgência. Outros, são levados por circunstâncias diversas a vivenciá-la antes do que seria desejável.

Normalmente, o desejo de sofrer começa mais cedo ou mais tarde a depender das vivências e da intensidade de cada um. No meu caso, a primeira vez aconteceu três lustros depois de eu ter começado a ter atração pela primeira experiência, aos 11 anos… Me rendi aos estímulos, dentro e fora de mim. Mas foi outro dia, há mais de trinta anos, e o revivo em vários momentos com prazer misturado a certa decepção, indissociáveis.

Nesse ínterim, mudou alguma coisa em mim. Comecei a perceber que a vida era um jogo de cartas marcadas e que nós sempre perdemos no final. E contra quem jogava? Contra as imposições que obrigam um moço a viver isso como se fosse inevitável. Pois se era assim, não cairia nessa encenação coletiva. Essa falácia social de que deveria seguir o caminho ao qual todos estávamos destinados.

Concomitantemente, quanto mais negava fazer o rito de passagem que me consagraria “homem”, mais alimentava o fantasma. Sendo fantasma, foi se tornando quase indestrutível. Nunca chegaria perto de alcançar a pequena morte, desejada ardorosamente quanto mais a evitava. Até que o matei. O fantasma. Meu maior crime. Definitiva pena de viver a querer morrer. Dolorosa e deliciosamente. E sempre que a repito, é diferente. Algumas vezes, o sono logo vêm. Em outras, as sensações se espraiam por horas antes de voltar a tê-las, adicto que me tornei.

Quando decidi me jogar do despenhadeiro, sabia que não sobreviveria. Tinha que cumprir o ritual. O corpo a sofrer, pele sendo rasgada a cada contato com os seixos, o coração acelerado até parar de bater e morrer para aquela vida. O fluído a se espargir em jato sôfrego. Dor contínua. E outras dores. Muito prazer. Cumpri os ritos, me saciei em gritos, amanheci despedaçado, em gemidos. Morri moço, nasci homem. 

Participam do B.E.D.A.:
Adriana Aneli
Lunna Guedes
Roseli Pedroso
Mariana Gouveia
Darlene Regina
Cláudia Leonardi

Senhora

Michelle Pfeiffer (Lea De Lonval) & Rupert Friend (Chéri), em Chéri, de Stephen Frears

Eu era moço
Ela, uma senhora
E senhora de si
Se enamorou de mim…
Logo, me buscou
E, nela, me encontrei
E com ela aprendi a ser
Senhor de mim…

Aprendi a abrir portas
A usar a língua
Para falar e amar
Aprendi a amá-la…

E, através dela
Amei a todas as mulheres
Amei as feias e as belas
As fortes e as frágeis
As boas e as más
As sãs e as loucas
Amei muitas e muito
Todas, nela…

Certo dia, ela me deixou
Sentiu que fosse a hora
Porém, nunca saiu de mim
Ela me fez um homem
Que ama mulheres
Que ama amá-las
Que a ama eternamente
Nelas…

BEDA| Apaixonado

APAIXONADO
Paixões de garoto…

Quando garoto, por volta dos sete ou oito anos, comecei a me apaixonar. Tornei-me um apaixonado em série. Quanto mais inacessível a menina, a moça ou a mulher, melhor. Aliás, todas eram absolutamente inalcançáveis, não apenas porque eu era um pirralho que acreditava que ninguém notava como também era portador de uma timidez atroz.

Nunca teria coragem para me aproximar de Marylin Monroe, por exemplo, e anunciar que gostava dela, se isso fosse possível… Como não aconteceu com a primeira professorinha, a Profª. Débora, sempre perfumada, com o cabelo louro arrumado e fixado a laquê; com a estranha Marília Pera, de “Uma Rosa Com Amor”; com a mulher mais bela do mundo, Tônia Carrero, de “Pigmalião 70”; com a Ingrid Berman, de “Por Quem Os Sinos Dobram?”; com a Regina Duarte, de “Véu de Noiva” ou com o amor maduro por Romy Schneider, dos filmes europeus que comecei a apreciar mais tarde.

A minha paixão também se estendia às presenças femininas próximas e contemporâneas – à Celinha dos olhos claros, do Parque Infantil; à Bete, igualmente da mesma época, que se enamorou de meu melhor amigo e para qual servia de pombo correio; à menina mais bela da minha classe no ginásio; às moças mais interessantes do colegial, para quais também reservei a minha admiração apaixonada e silente. Eu as usava como musas de versos, canções, contos e versões…

Eu me lembro que versei “Hey Jude”, dos Beatles, aos oito anos. Na verdade, como não soubesse inglês, criei uma letra para a melodia de Paul MacCartney, direcionada à uma Jude que criei em minha imaginação e por quem me apaixonei. Como me apaixonei e fiz um poema para a menina dos olhos verdes que vi num relance, ao abrir e fechar da porta do ônibus – ela, à espera, no ponto e, eu, sentado no banco de trás do coletivo.

Escrevi versos para a moça de pernas bem torneadas, que estava a esperar o carro em que eu estava passar, sentada no selim de sua bicicleta no cruzamento de uma estrada no interior. E para a mulher que percebi verter uma lágrima ao ler um livro sentada em um banco de praça.

O que eu não esperava é que, mesmo mortos o menino, o moço e o rapaz que vivenciaram essas paixões, elas estivessem tão presentes ainda hoje na memória do adulto… Poder-se-ia até dizer que os homens são mortais, mas as paixões… ah, essas, são eternas…