17 / 10 / 2025 / Os Olhos Dela

como se entrasse num labirinto
dei de me perder nos olhos dela
parece que me tragavam para dentro de um mundo novo
perdido em antigas tramas de atração fatal
embarcado em nau amarrado ao mastro central
ouvia como que um canto de sereia em calmo mar
da boca que movia os lábios como se fossem ondas
de luz das águas profundas de seu olhar
meu coração batia como se montado em corcovo
de indomável cavalo selvagem em campos de pleno sol
bastava ver bater os cílios de seus olhos em miragem de morte
como se buscasse sugar a minha seiva de depauperada árvore
que tomba como se tivesse cortados caule e ramagem
forças naturais que se avultam em poder e vingança
ao mundo que tenta destruir a vida que palpita
no meu peito de homem velho
parte daqueles que sangram o sangue de escuro vermelho
marcando o chão da estrada na caminhada da terra de perdido brilho…

Foto por Ennie Horvath em Pexels.com

27 / 09 / 2025 / Dominic

Chegou ao fim a nossa relação física, mas aquela atemporal permanecerá. Ainda que a memória se esvaneça, a energia de amor gerada continuará a fazer diferença no mundo. Ela foi a última filha a falecer da Domitila, mais uma das nossas companheiras resgatadas da rua. Aliás, ela surgiu toda manchada de tinta, praticamente sem pelos. Arte de descerebrados maldosos. Duas de suas filhas (as fêmeas sempre foram mais rejeitadas do que os machos), ficaram na família — Frida e Dominic (eu prefiro o nome afrancesado). Esta, na casa vizinha, minha irmã. Quando Frida faleceu, atropelada numa das poucas vezes que saiu à rua, pedimos para a Marisol cuidar da bichinha que já havia quebrado a pata dianteira esquerda e se encontrava com problemas de pele, além de estar muito magra. Cuidamos dela e em pouco tempo, já mais fortinha, se mostrou bastante gulosa. Tanto que mesmo no período do câncer que a vitimou, continuava voraz. Quando começou a recusar comida, percebemos que não viveria muito mais tempo.

Eu estive com as velhinhas que foram falecendo nos últimos anos. No sábado, quando saí para trabalhar, avisei à Tânia que suspeitava que não resistisse ao final do dia. Fiquei triste que não estaria com ela no final de tudo. Mas a Tânia disse que esteve com ela até o último suspiro. E isso me aliviou. Antes de sair, ainda fiquei um tempinho com ela. Percebi o seu olhar um tanto assustado de quem não conseguia mais respirar como antes. Fiz um carinho que supus de despedida, que acabou por acontecer. Essa senhora passou uns bons 10 anos conosco. Ao falecer, contava com uns 15 anos. Mais isso é irrelevante numa história de amor. Todo amor verdadeiro é atemporal.

Até logo, meu amor!

18 / 09 / 2025 / Morte Em Família*

Na saída do Terminal, na pista oposta, em direção ao Centro, jazia o corpo recém atropelado de um pequeno cão. Ao seu lado, pedindo para que os carros parassem, alguém que provavelmente o retiraria do asfalto, cena que não presenciei, já que o meu ônibus havia partido.

No dia seguinte, uma faixa colocada entre dois postes pedia, aliás implorava, que na eventualidade de alguém encontrar uma cadelinha com determinadas características, seria bem recompensado, caso a devolvesse. Ao final do apelo, o motivo recorrente: “criança doente, família desesperada”.

Só mais tarde, vinculei um fato ao outro, já que as características da cadelinha perdida eram bem próximas a do bichinho estendido no chão, pelo que eu pude perceber à distância no dia anterior, pela janela do ônibus. Seria uma, a outra? E a proximidade, o sumiço, e a morte, todos itens do mesmo episódio?

Passei a especular sobre as várias possibilidades relativas à história. Na versão mais feliz, a cachorrinha seria encontrada, a criança ficaria bem, a família estaria contente e alguém acabaria recompensado. No entanto, um cãozinho morrera, de qualquer forma. A quem pertencia, provavelmente faria falta a sua companhia e o sentido de perda persistiria. Na pior versão, aquele corpo que jazia no cinza era o objeto de estimação perdido e, nesse caso, perdido para sempre. Restaria a lembrança eterna na memória de quem conheceu Jully… 

*Texto que compõe REALidade, meu primeiro livro de crônicas, lançado em 2015, pela Scenarium Livros Artesanais.

03 / 09 / 2025 / …7, 8…

Éramos dois perdidos numa cidade suja.
Nossos caminhos se encontraram –– bailarina-cerebrina e espectador-expectador…
Meus olhos a perseguirem seus passos nas esquinas-palcos.
Eu, um solitário, cercado de pessoas e afazeres,
fui beijado por ela em dia de Carnaval diante da porta do trabalho.
Ela brandiu o seu leque, fantasiada de espanhola;
eu, um espanhol fantasiado de ninguém, o roubei…
Apaixonado, atrapalhado, alucinado, amargurado, assustado,
me recusava a olhá-la nos olhos fugidios-furta-cores ––
sabia que neles me perderia para sempre…
Ela me amou como sempre me conhecesse;
eu, como se nunca devesse tê-la encontrado –– pecado em forma de mulher ––
cristão-penitente a me sentir condenado…
Este-eu-pobre-ridículo-homem-tempo-seco,
enquanto ela era tempestade –– raios e trovões em dia claro de Sol ––
visão oscilante feito miragem de oásis no deserto;
nunca soube ou quis amá-la como deveria
e ela gostaria.
Preferi fugir para um lugar onde sentia frio e dor,
mais confortável do que é amar –– ser enganado por meus sentidos –– nunca ter certeza de onde estava ou se caminhava ou se flutuava
ou se estava a cair indefinidamente numa fossa abissal…
Consegui sobreviver à vida por ela ofertada.
Preferi passear comigo mesmo em confortável-estável-imutável-roda-gigante
num eterno domingo no parque da morte…
Nos deixamos por mensagens-rompantes-soluços-choros de criança,
sem adeus ou carta de despedida…

18 / 08 / 2025 / BEDA / Luz

Há dias de luz que nos ofuscam a visão
Enquanto estamos quase cegos
Sombras nos cercam como que atraídas
Para o abismo que nos tornamos
Antes, evitava pensar estando assim
Agora prefiro mergulhar em queda livre
Penetrar em profundidade no meu eu
Saborear a falta de referências sobre a vida
Beijar a possibilidade da morte na boca
Fazer amor com o obscuro e a impermanência
Num triângulo amoroso com a imortalidade
Voltar a respirar acima da superfície
Me assenhorar de mim e dizer simplesmente
Sim!