… me sinto como a abelha que perdida tentava encontrar o rumo até perder as forças e perecer registrei a cessação de movimentos e bater de asas inúteis para movê-la de onde permaneceu logo me identifiquei com ela eu mesmo meio que perdido meio que se decompondo como se cada fase da minha vida parecesse desconectada da minha história íntima não me reconheço desvirtuado desestimulado a continuar caminhando caminhante ficar parado ajuda? não… reflito que talvez fosse melhor subir a cume mais alto e saltar quem sabe as minhas asas voltassem a bater…
Fazia algum tempo que eu não via uma aranha pega-moscas. Esta, estava no banheiro externo. Quando garoto, pelas paredes de cimento cru do meu quarto, encontrava algumas aranhas dessa espécie, fascinado com a inteligência de seus movimentos, sempre atenta aos meus. Lá, eu não via medo, mas atenção. Apenas mais recentemente, descobri que ela tem oito olhos, sendo que o par frontal é o mais desenvolvido. Isso com certeza a ajuda a ter controle sobre possíveis inimigos. Qualquer perigo mais premente, o seu salto gigantesco (20 vezes o seu próprio tamanho), a coloca longe de ser aprisionada ou morta. Aliás, também é o modo que usa para alcançar moscas e mosquitos. Muitas vezes as observava esperar o momento exato para saltar sobre a presa, apreciando cada movimento, como se fizesse de distraída. Passadas décadas desde que olhava esses seres especiais como iguais, fico feliz de não ter perdido a minha admiração por elas.
há momentos em que me desconfiguro como ser pensante passo a ser um animal que quer não ser apenas agarrar parte de mim me tornar tornado pelo toque me satisfazer por inteiro em frêmito arrepio arrancar galhos folhas troncos raízes árvores bosque sem identidade pedaço de carne seios em pele recobertos corpo esponjoso antros cavernosos lado a lado rios a se preencherem de sangue vou por uma única mão em direção ao prazer solo chão sentido centro-periferia todas as forças concentradas fantasio a outra pessoa em intenção ausência presente feito saudade dor desejo de auto compensação de proximidade consciência da imensa distância entre mim e o sim permaneço em êxtase suspenso resisto à chegada do fim pressão entre os dedos me agarro em respiração profunda permaneço corro é quando por ele eu-falo sou totalmente certeza vigor anima em movimentos cada vez mais rápidos fibras retesadas veias intumescidas talo rigidez da madeira troncos separados imagino invadir a fenda do tempo-templo macio escuro com a delicadeza de quem morre tão livre e brevemente feito vida e voo de borboleta expulsando pelos canais condutores lágrimas de quem chora um choro solitário…
Uma pipa ficou pendurada na beira do telhado da varanda da minha casa. Estava inteira, mas com o tempo, rasgou aqui e ali com o movimento do vento ocasional. Vê-la presa, qual um pássaro que se debatia amarrado a uma armadilha, fez com me apiedasse e a retirasse de onde estava. Não era um artefato de beleza especial e decidi destruí-lo. Cometi o erro de virá-lo e perceber os detalhes de sua confecção – as varetas bem-posicionadas, as linhas de costura as alinhando devidamente, o papel de seda delicadamente colado a elas. Quem fez a pipa, além da habilidade, supus que tenha juntado sua energia às forças antigravitacionais da imaginação que antecipou vê-la singrar o mar dos céus – uma obra feita para voar.
Isso me inspirou um poema que colocaria mais ou menos nesses termos, mas o voo da pipa mudou a sua trajetória quando publiquei a foto. Uma amiga me questionou se sabia dos últimos acontecimentos referentes a acidentes graves provocados por pipas. Na verdade, não são as pipas que devam ser condenadas, mas quem as utilizam com linhas besuntadas de cerol – uma mistura cortante de pó de vidro e cola de madeira – para colocá-las ao alto.
A intenção de quem faz isso é, supostamente, se defender de outras pipas igualmente preparadas para cortar as linhas adversárias. De diversão inocente, a atividade inventada pelos chineses há milênios de anos se transformou em luta aérea. São empinados pipas como se fossem aviões da Segunda Guerra em movimentos ousados – mergulhos, rasantes, embicadas – para defender os seus territórios sobre os Oceanos de ruas.
Tudo bem, se essas pipas não descessem ao nível da terra dos mortais e provocassem acidentes fatais ao cortar pescoços de motociclistas, ciclistas e pedestres. Nos “menos” graves, há casos de mutilação de dedos. Além de haver relatos de acidentes com aeronaves e paraquedistas. Tudo é muito triste, se considerarmos que o espírito de competição engendrado pelo Sistema sob o qual vivemos não estimulasse aos homenzinhos “ganharem” o espaço azul como únicos soberanos.
Não foi por outro motivo que nas oportunidades que surgiram de empinar pipas com as minhas filhas, evitei. Imaginava que como não me defenderia usando “cortante”, a cada uma que colocasse no alto, ocorreria uma perda para a distância, lenta e decepcionante. Outra coisa sobre o qual Farfalla me chamou a atenção, é que chamava o objeto em discussão pelo artigo masculino – “o” pipa. Conjecturei que talvez fosse uma imposição inconsciente do Patriarcado recebida na meninice sobre algo de tamanho poder – voar para além do corpo.
Eu e meu irmão, Humberto, em Matão, no início dos 80′.
Sempre fui uma pessoa passadista. Desde garoto, gostava de viajar por tempos idos, buscando e encontrando a minha identidade em outras épocas. Isso não me impedia que fosse para um futuro imaginado. H.G. Wells, Monteiro Lobato e Júlio Verne, entre outros, além de filmes de ficção científica, me descolocavam para outros lugares e idades imaginados.
Lendo muito, visitei versões de Grécias, Romas, Pérsias e Egitos. Decidi fazer o curso de História, ao mesmo tempo que era atraído por Filosofia, Psicologia e Sociedade. Definitivamente, eu era um sujeito de Humanas, ainda que os números me fascinassem. Apenas porque me eram incompreensíveis. Embora, perfeitos per si só.
O fato é que quase nunca estava no Presente e no mesmo Espaço do meu corpo. Ausente das pessoas, passeava distraído da minha própria presença, numa espécie de alienação que me custou lembranças apenas resgatáveis por imagens e relatos de terceiros. Como nesta foto em que estamos, meu irmão e eu, na praça central de Matão, para onde fomos para rever terras que foram da família adotiva de meu pai, no início dos Anos 80.
Os meus cabelos desgrenhados tentavam tanto refletir os ecos cada vez mais distantes do movimento Power Flower, como denotava a influência do movimento black. Eu era atraído pela Soul Music e o R&B norte-americanos, bem como pelo samba-rock, uma vertente brasileira do Funk de James Brown, que também apreciava. Chegava a usar garfos para pentear os meus fios, assim como no banho, os lavava com sabão de coco, baixava a cabeça e deixava a água cair para os deixar encaracolados.
Porém, outra utilidade da cabelereira era me proteger. Sentia-me normalmente desambientado e em contrapartida não fazia nenhuma questão de me entrosar. O que o futebol com os amigos e colegas de classe contrapunha para que não fosse uma situação mais grave. Ligado à espiritualidade oriental, o meu desejo sempre foi o de transcender em vida. Um erro, já que a minha evidente inexperiência se transformou em profunda inaptidão para a vida prática. Mas talvez por minha aparência alternativa, chamava a atenção. Os meus sempiternos óculos ajudavam a bloquear olhares que o manto peludo deixava apenas entrever.
Para evitar possíveis gozações, mantinha uma postura marrenta e um tanto distante. Enfim, um rapaz esquisito que amava as mulheres tanto quanto fazia questão de mantê-las afastadas. Sentia-me inseguro quanto ao que dizer e quando falava alguma coisa, receava que fosse inadequado por não usar o jargão cotidiano da turma. Afinal, Machado de Assis era o meu escritor favorito e volta e meia utilizava termos que os olhares denunciavam incompreensão ou estranhamento jocoso. Que fosse considerado estranho era menos doloroso do que me acharem doido ou, pior, causasse dó.
Consegui ultrapassar todas essas barreiras erguidas por mim mesmo e chego até aqui podendo versar sobre essa época em que estava sempre por um fio em minha sanidade. Não no sentido de loucura, mas de saúde mental mais prosaica – ansiedade – que descobri que tinha desde pequeno, além de “crises existenciais” seguidas por saber que não conseguiria me contrapor ao Sistema. Quando decidi abandonar o projeto de me tornar Frei Franciscano, empreendi o caminho de cumprir o destino de pai de família, microempreendedor e, finalmente, escritor. Pertenço ao Sistema ao qual sempre defenestrei, mas sei que com amor tudo pode ser diferente.