Da esquerda para a direita: meus pais, Sr. Odulio e D. Madalena; eu e Tânia; Sr. Manoel e D. Floripes.
Estará para completar, em 2014, 25 anos! Foi em 13 de maio de 1989 que celebramos a nossa união oficial, Tânia e eu. Já tínhamos um laço indissolúvel a nos unir, pois a Romy já estava sendo gestada há cinco meses em seu ventre. Para mim, assim era. Não fazia questão de cumprir as convenções formais de declarar um fato que já estava sacramentado. Mas as respectivas famílias faziam questão e como não ligava para formalidades, igualmente não objetava em cumpri-las, se dessa forma satisfazia às pessoas ao meu redor.
Foi a decisão mais acertada que tomei em minha vida! Nunca usei anéis, mas me emocionei em colocar um em minha companheira dali por diante e de ter recebido outro em meus dedos. É bem verdade que não o usei por muito tempo, já que devido ao trabalho, acabei por torná-lo em um objeto octogonal. Tive que guardá-lo, mas uma aliança material não suplanta uma mental e espiritual. Tudo o que passamos desde então, entre altos e baixos, nos provou que estamos vivos e funcionais, qual um gráfico de eletrocardiograma nos indica. Nunca registramos um traço e, por isso, aprendemos encontrar momentos de plenitude e estabilidade em meio às variações de todas as ordens – físicas, mentais, espirituais e econômica-materiais.
Conforme propago sempre que posso e que alguém já deve ter exemplificado em algum ensaio por aí, no tempo e no espaço, prometer qualquer coisa diante do altar é sempre temerário. Quem promete naquele instante não é mesma pessoa tantos anos depois para afirmar que um relacionamento seja eterno. Apesar de o ser, para mim, ainda que o compromisso possa ser desfeito um dia. Afinal, o que vivemos nos influenciará pelo resto de nossas vidas. As pessoas se modificam no decorrer de sua existência. Um casal modifica um ao outro e a identidade do casal como tal também sofre mutações diante dos acontecimentos cotidianos. A boa surpresa é que, mesmo com todas as modificações e desequilíbrios pelos quais passamos, é possível nos apaixonarmos por aquela nova pessoa, como se uma nova pessoa fora, se bem que, naquela altura da vida, os corpos apenas se pareçam com os antigos corpos que carregam o mesmo RG.
Além disso, normalmente temos os filhos! Ora, os filhos! Com a chegada deles, aprendemos a dedicar o nosso tempo para outras pessoas que não nós mesmos. Eles são fontes de alegrias e preocupações e, quando crescem, saudavelmente fazem questão de contestar a nossa autoridade e refutar os nossos ensinamentos, cometendo os mesmos erros que nós quando tínhamos as suas idades.
Para encerrar, me sinto compelido a dizer que o meu relacionamento com a Tâniajá passa dos 25 anos oficiais que o ano de 2014 contemplará. Ele começou quando a vi pela primeira vez, magérrima e petulante, dois anos antes. Nós nos estranhamos desde o início. Recomeçou quando encetamos a conversar como gente civilizada, alguns meses depois. Recomeçou quando nos beijamos pela primeira vez, meses à frente. Recomeçou quando recebi a notícia da chegada da Romy. Recomeçou, mais uma vez, quando nos casamos. Recomeçou todas as vezes que veio à luz cada uma das nossas outras crias – a Ingride a Lívia. E a partir do momento que decidi viver um dia de cada vez, recomeça todos os dias.
Magdalena depositou a taça de vinho do seu lado, no chão, enquanto revistava mais um dos livros que estava separando para encaixotar. Aquele, era dela, com algumas marcações de trechos que considerou significativo de alguma maneira. Numa coletânea de contos de Machado de Assis, havia sublinhado a frase: “Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito”. Bem que gostaria que com ela fosse dessa maneira… Ao contrário, era muito comum vivenciar histórias dentro de histórias. Ela se sentia à vontade em meio a barafunda de referências que colecionava, sabendo separar o que lhe interessava. Naquele momento, pensava no namorado distante fisicamente, morador de outro Estado e… casado — um cantor conhecido. Gostava muito dele e a ausência do homem amado era “compensada” na intimidade de seu quarto por dedos sôfregos e o auxílio de brinquedinhos ao final da noite, antes de dormir, chamando por seu nome… Em meio a tudo isso, organizava a mudança de apartamento, enquanto no trabalho tinha decisões importantes a tomar.
Tinha por característica pessoal conjecturar sobre as situações do cotidiano que, sob a manta da normalidade, abrigavam interpretações mais profundas. Pensava sobre aquele processo em que o relógio da parede tiquetaqueava segundo a segundo o tempo que lhe restava para deixar o seu lar. Sabia que mudanças são o que temos de mais permanente neste mundo. A não ser que o processo seja interrompido. Magdalena lembrava do irmão morto, passagem ainda bastante dolorida. Mudança dimensional. Talvez ainda acreditasse na cura da doença que o levou após um longo e triste período de tentativas em reverter o avanço do mal. Colocar em perspectiva tudo pelo que estava passando, a ajudava a não se afundar na dor que sentia pelo eminente desparto do lugar em que viveu alguns dos fatos mais importantes de sua vida. Principalmente, foi ali que seu filho nasceu, começou a andar, balbuciou as primeiras palavras, aprendeu a desenhar as primeiras letras, a cantar as primeiras musiquinhas, a falar sozinho no espelho, inventando personagens, a fazer dancinhas que criava, a querer se tornar um artista.
Magdalena sabia que a arte era uma das mais sofisticadas linguagens que o ser humano havia criado para a expressão de sua dimensão espiritual. Acabou por se envolver bastante com os caminhos da produção artística e seus criadores, tornando-se produtora de eventos. Seus livros, seus discos, muitos divididos com o ex-marido que viria lhe encontrar para estabelecerem o que iria para um e para outro, marcavam momentos em que construíram vinte anos de casamento. Quando percebeu que a união com Cícero não lhe trazia mais a satisfação da troca prazerosa de antes, decidiu se separar. Algumas de suas atitudes começaram a lhe desagradar, como o de ser excessivamente rigoroso pelo modo de ser de Pedro, além de começar a desviar seu olhar do dela ao ver passar outra mulher.
Separados, os dois mantiveram um bom relacionamento. Permaneceram amigos muito mais por causa dela, que demonstrava maturidade e equilíbrio que quase veio a perder ao saber que logo efetivado o divórcio, engravidou outra mulher depois de uma noitada que mais tarde veio a gerar uma filha, sonho que acalentava enquanto estava casada. Ele nunca quis. Cícero sequer se casou com a moça. Mãe de outra criança, resultado de um breve relacionamento com outro incauto, não queria perder a compensação. Dessa forma, recebia duas pensões alimentícias que lhe garantiam uma vida financeira equilibrada.
O lado bom é que seu filho adorava a irmã, menina bastante sagaz e com um sensível olhar para o mundo. Magdalena gostava de receber a moça de oito anos em sua casa. Conversavam bastante, ela e Bianca. Ela se afligia pelo estilo de vida da mãe, mulher bonita e vaidosa que cria que o mundo se restringia à afetação das redes sociais. Percebia, mesmo tão nova, que a mãe cria que o mundo devesse girar em torno dela. Seu meio-irmão mais velho também se ressentia disso e chegou a dizer para irmã que a mãe se insinuava demais para seus amigos. Amava Pedro e gostava de estar com Magdalena. Espertamente, evitava elogiá-la para a mãe.
Quando Cícero chegou, a apanhou em lágrimas. Ela tinha acabado de ouvir um dos discos favoritos do casal. Vários deles contavam a sua história. A cada lançamento de Alceu Valença, Lenine ou Zeca Baleiro; Chico, Ivan Lins, Djavan ou Zé Ramalho; Caetano, Maria Bethânia ou Gal Costa e Marisa Monte, entre tantos, as histórias em canções derramadas de poesia e paixão, arte e consciência social pontuavam os momentos mais importantes de Magdalena e Cícero. O amor por Elis Regina os uniu, ao frequentarem os mesmos ambientes.
Antes de girar a chave na porta, ele ainda pode ouvir “Essa menina, essa mulher, essa senhora / Em que esbarro a toda hora / Nos espelhos casuais / É feita de sombra e tanta luz / De tanta lama e tanta cruz / Que acha tudo, natural…”. Eles compraram o disco da Elis que tinha essa canção no início do casamento. Magdalena adorava cantá-la, mas sempre com o sorriso de quem admirava a construção da letra e se solidarizava com a mulher que vivia as contradições de trabalhar fora como artista e em casa, destinada, assim como a mãe, a fazer o papel de trabalhadora doméstica. Depois de vinte anos de casamento, quando voltava a cantá-la, mal conseguia sustentar a voz, entrecortada por soluços.
Foi por essa época que ela decidiu pelo fim do casamento. Ele tentou convencê-la de que com essa atitude viria a perder a qualidade de vida a qual estava acostumada, mas Magdalena se mostrou irredutível. Sua vida ia muito além daquela questão. Passada a vertigem dos primeiros tempos por estar sozinho, percebeu que fora a melhor decisão para os dois. Ela voltou a florescer e ele pode levar uma vida sem tantas demandas, a não ser as ligadas ao filho, que preferiu ficar com ele. Pedro culpava a mãe pela separação, a chamando de egoísta. O adolescente não conseguia entender o porquê da decisão dela pensar mais em si do que nele. Ficaram estremecidos por uns dois anos. Testemunhando as provas do amor nos momentos mais decisivos de sua vida, incluindo o apoio da mãe à vida artística como ator e bailarino, reviu seus posicionamentos, incluindo que a percepção de que o egoísmo ocorrera de sua parte.
Ao vê-la naquela condição, Cícero se aproximou comovido e a abraçou. Agradecendo a vida que tiveram juntos, pediu perdão ao seu ouvido. Ela sorriu e voltou a se lembrar da razão por ter se unido ao pai de seu filho. Ele continuava um homem bonito e embriagada pelo vinho e pelas lembranças que assomavam aos borbotões, se beijaram. Esqueceram os anos passados, as brigas pelo estranhamento crescente entre eles, a falta de cuidado e os carinhos que deixaram de ser feitos de parte a parte. O fogo redivivo espantou aos dois que se sentiram quase incestuosos. O que não impediu que se entregassem com prazer animal um ao outro. É como se voltassem a ser os jovens que se possuíam sempre que podiam, impedidos apenas quando a vida os chamava a comparecer às tarefas cotidianas.
Meia hora depois, exangues sobre livros e capas de LPs, choraram a despedida daquele ponto no Universo aonde foram muito felizes. Em mais uma semana, aquele lugar deveria estar esvaziado. Mas com tanto amor a pintar as paredes, a luz das lâmpadas ofuscadas pelo brilho das pessoas que pisaram aquele assoalho. Recordações de vozes a cantar as músicas preferidas que preenchiam as suas vidas, a de parentes e a de amigos; o espaço preferido de muitos, que nunca mais aportariam naquele que fora o lar do querido casal por duas décadas.
Magdalena e Cícero não se arrependeram daquele instante de eternidade. Sabiam que havia sido um ponto fora da curva temporal, uma singularidade cósmica que pertenceria só a eles. Voltariam para os seus amores. Ele estava gostando muito da nova namorada, ela amava o cantor do Rio. E repisariam as dores pessoais. A dele, porque nunca voltaria a encontrar a Magdalena dos primeiros tempos — forte, destemida, alegre, inteligente — desconhecida a cada nova mulher com a qual ficava. Ela, pela distância que a separava de quem amava e o desejo impossível de passearem como se ele fosse um desconhecido na multidão. Acalentava que vivessem momentos fugidios de amor e entrega, sempre intensos. Apenas. Exausta fisicamente e energizada mentalmente, Magdalena dormiu o sono tranquilo de quem teve um lindo passado, a espera do futuro desafiador de quem nunca temeu o novo.