BEDA / Jerry Adriani

Jerry Adriani
Jair Alves de Sousa (1947-2017)

Há uns vinte e cinco anos, fui contratado para sonorizar um evento no Clube Gonzaga Nipo-Brasileiro, em São Caetano do Sul, que além da banda teria como atração principal a Jerry Adriani. Filho dos Anos 60, um garoto que pedia para a mãe comprar a calça “Tremendão”, do Erasmo e a camisa de franjas do Rei Roberto Carlos, tinha uma grande expectativa para ver o antigo ídolo da Jovem Guarda de perto.

Foi nessa ocasião que comecei a perceber mais de perto a dimensão do sucesso e as suas diversas facetas, a incluir o declínio. Na época que foram lançados, todos os cantores pertencentes ao movimento da Jovem Guarda carregavam atrás de si uma legião de fãs enlouquecidos que chegavam a obstruir as ruas em torno do local onde se apresentariam. A calma da região do clube onde haveria a apresentação de então contrastava amplamente com o que cresci vendo acontecer na infância.

De certa maneira, essa histeria coletiva, nunca a considerei saudável. Porém, ao mesmo tempo, vinha a demonstrar o quanto a mensagem ou a imagem que um ídolo externa impacta no imaginário de quem a expressa. Antes da apresentação, Jerry foi ao palco e demonstrou ser acessível e muito educado, característica que presenciei em 98% dos componentes da Jovem Guarda com os quais vim a trabalhar esporadicamente ao longo dos anos, individualmente e em shows especiais que reuniam vários deles. Credito esse traço em comum ao fato de serem filhos do Flower Power e da mensagem de Paz e Amor. Até hoje, por mais que possa parecer uma frase de mercado, eu mesmo a levo bastante a sério.

Ao longo dos anos, devido ao perfil que quisemos imprimir ao nosso negócio, de porte pequeno para médio, com atendimento pessoal e restrito, eu e meu irmão, Humberto, pela Ortega Luz & Som tivemos contato com artistas do canto que estavam tanto iniciando suas carreiras como aqueles que já haviam atingido o auge de popularidade e agora atendiam a eventos que atraíam saudosistas, em sua maior parte. Há aqueles que ainda carreiam grande prestígio, a ocupar o qualitativo de cults e fãs de novas gerações. Normalmente, são artistas que nunca foram tão bem-sucedidos em termos de divulgação, mas que sempre transmitem uma mensagem peculiar ou apresentam um apelo perene, ainda que muitas vezes indecifrável.

Há dois anos, no dia 23 de abril, em meio a um evento que sonorizávamos, na sua maior parte frequentada por pessoas que gostam de dançar juntinhos, característica passadista, recebi a notícia do desenlace físico de Jerry Adriani, aos 70 anos. Além do homem que partia, mais um ícone de uma época que marcou uma geração inteira, saía de cena. Descia do palco físico o gentleman, o homem com planos ainda a realizar, o artista de voz única (ou quase).

Quando surgiu Renato Russo, me perguntava quem era aquele sujeito que tentava imitar Jerry Adriani. Achei irônico Russo revelar que não o conhecia, demonstrando o fosso entre as gerações. Depois, chegaram a aparecer juntos em apresentações, por causa da semelhança vocal. Tive a boa sorte de poder participar infimamente de seu percurso, assim de como vários outros músicos da mesma era. Além de ter o prazer de trabalhar com a máquina do tempo que a música põe em movimento, tive a oportunidade de de-cifrar os meandros da minha própria história.

BEDA / Dos Perigos De Viver

Cajueiro
Cajueiro

Em canção dos Anos 70, que conheci na voz do imenso Wilson Simonal, ouvia: “Papai, mamãe não quer que eu suba no cajueiro. Ela falou se subir eu caio da galha do cajueiro…” (Galha do Cajueiro). Subir em árvores era um perigo, com certeza, mas nenhum garoto deixava de abraçar troncos e agarrar galhos para se posicionarem mais alto e melhor para pegar uma fruta. Fazia parte da formação do repertório de movimentos que a liberdade daqueles dias permitia. Tempos de caminhos desobstruídos e campos abertos.

Jogar bola na rua ou em campos de várzea era programa obrigatório, não no sentido de obrigação, mas de prazer. Antes ou depois da escola (e no intervalo das aulas), os meninos buscavam o perigo de ralar o joelho, lanhar a canela, bater a cabeça. Nossos impetuosos corações nos pediam que agíssemos como se não houvesse amanhã. No máximo, acalentávamos o sonho de nos tornarmos jogadores de futebol.

Ao crescermos, acrescentamos obrigações nem tão prazerosas. Porém, na mesma canção, há a seguinte passagem: “Me tira, mamãe, me tira, me tira deste castigo. Eu subo naquela galha. Não corro nenhum perigo. Eu quero tirar caju. Eu vendo e ganho dinheiro. Me deixa, mamãe, subir, deixa subir na galha do cajueiro!”. O garoto tem consciência que o dinheiro é a maneira pela qual intermediávamos o desejo pelo objeto e a satisfação do desejo.

Não passava pela cabeça que haveria outro modo em conseguir o que se queria, por maior que fosse a privação pela qual passássemos. Em algum momento, em nosso percurso como País, nos desviamos de nossos propósitos de como obter algum bem. Se pudéssemos adentrar na mente de algum garoto desassistido, certamente a facilidade da vida criminosa será muito mais atraente do que trabalhar pesado para conseguir realizar o sonho imediato de conseguir o tênis da moda ou o celular “da hora”.

Ontem, um rapaz de 20 anos foi morto por estar desatento aos perigos de viver nos dias de hoje. Usava fones de ouvido, escutava as músicas de sua preferência, se divertia após deixar a jornada de trabalho. Era noite, estava no ponto de ônibus. Iria para a casa. Não chegou. Dois rapazes, provavelmente da mesma faixa social, montados em uma moto, o mataram para obter o que conseguiu com seu esforço.

Menino, suba no cajueiro! Viva o perigo de viver livremente! Venda caju! Consiga com o seu trabalho e abnegação os recursos para crescer, namorar, casar, constituir família – viver! Que o presente do País não o impeça de sonhar…

https://m.youtube.com/watch?time_continue=35&v=lJOVBAjRvt4

BEDA / Elton

Chamarei este texto de “Elton”, mas poderia ser chamado de Fred, Cazuza, Renato ou George. Em comum, nomes de pessoas conhecidas como artistas da música popular. Em comum, além da exposição midiática de suas vidas e vísceras, a criatividade, o talento para determinada função, o abuso no uso de substâncias químicas, a extremosa paixão que geraram. O mesmo vigor que empregaram para produzir momentos que marcaram gerações de fãs foi da mesma gênese que levaram a quase todos a nos deixarem mais do cedo do que gostaríamos, egoístas sugadores de energia que somos.

Insone, passei parte da madrugada a ver clipes musicais. Vivo no meio musical, a dar suporte técnico para as apresentações de artistas – instrumentistas mecânicos e vocais – músico frustrado que sou, se bem que não tenha perseverado a tocar ou cantar. Apesar do dom (no meu caso, pequeno), chama inicial que tem exercitada – a vocação – nada é tão fácil que não mereça treino, aperfeiçoamento, prática e disciplina, tudo em favor da melhor expressão possível.

A minha vontade sempre foi volúvel. E, cedo, os vários possíveis talentos que talvez tivesse, maiores e menores, foram sendo deixados de lados a favor da vontade de escrever. E, mesmo essa, coloquei em segundo plano em algum momento da minha vida. Ao voltar, percebi que a falta do exercício da escrita me conduziu a enganos – troquei a revelação da minha verdade pelos truques fáceis que podem até vir a seduzir, mas nem sempre eram autênticos – ou quase nunca.

Os temas que explorei durante a madrugada foram a ser sugeridos pela causalidade. Tento fugir das indicações normalmente ditadas por nossas preferências, perfeitamente captadas pelo sistema que nos vigia na Internet, mas logo vim a recair nos meus preferidos – Bowie, Prince, Clube da Esquina, Elis, Cohen… Tanto quanto os que citei anteriormente, a maioria destes nos deixou precocemente.

Em determinado momento, surge como sugestão a “Don’t Let The Sun Go Down On Me”, na versão ao vivo, trecho do show de George Michael em que convida o autor da música, Elton John, a cantar junto com ele, em uma apresentação climática, em atuações vocais e instrumentais memoráveis. A sugestão surgiu justamente porque David Bowie, Leonard Cohen, Prince e o próprio George Michael morreram em 2016. Todos viveram muito todas vibrações de seu tempo, ainda que a maioria tenha morrido cedo.

A idade, em muitos casos, é apenas relativa a referendar a experiência de alguém. Há pessoas intensas que conseguem, com galhardia, aglutinar em si, as riquezas de processos vitais, a encetar lutas pessoais e se colocar à frente de combates coletivos e a favor de bandeiras libertadoras. No entanto, para tantas outras, é comum ocorrer o contrário. Brigar por espaço para a sua expressão, se expor corajosamente por um comportamento alternativo, refirmar a sua sexualidade, pode ser demais para as suas estruturas psíquico-físicas. Cedo ou tarde, cedem às pressões e queimam em praça pública.

O que não aconteceu com o querido Elton John. Ele esteve por terras tupiniquins no mês de março de 2018, quando completou 70 anos de idade. Sobreviveu ao pico da disseminação do vírus HIV, passou ao largo da metralhadora giratória que dizimou os melhores nomes de seu tempo, por abuso químico ou doenças graves. Sobreviveu à geração que preferiu “viver dez anos a mil do que mil anos a dez”, à sedução de “viver rápido e morrer jovem”.

Aquele que foi uma grande influência musical do jovem que começou a prestar atenção aos temas internacionais, depois dos Beatles, Frank Sinatra, Ray Charles e Nat King Cole (sim, o menino da Periferia era muito metido aos 12), continua ativo e produtivo. Eu e minha mulher fomos assisti-lo, com show de abertura de James Taylor, outro sobrevivente. O Poder Velho, na sua melhor definição, tomou conta de todos os espaços do estádio e arrebatou a platéia, que viu o final da apresentação debaixo de chuva torrencial. Lavou a nossa alma…

BEDA / Quase Sem Querer

Quase Sem Querer

Eu estava a caminho do meu trabalho, quando ouvi “Quase Sem Querer”, do Legião Urbana. Talvez passe das duas centenas a quantidade de vezes que a ouvi. Cheguei a cantar essa música para um afeto antigo em pleno ônibus na volta da faculdade pelos anos 80. Gostava da letra, apreciava a canção e a sinceridade do Renato Russo ao entoá-la.

No entanto, por uma dessas circunstâncias estranhas, no momento que a ouvi outro dia, o texto dela me fulminou com um raio. Muito do que era dito ali se encaixava perfeitamente em minha vida como se colocasse as últimas peças de um enorme quebra-cabeças. Quase me envergonhei por ver ressurgir o arroubo juvenil de trinta anos antes.

O meu gosto musical mudou bastante e muitas vezes, por critérios de suposta evolução cultural, abrimos mão de apreciar coisas do passado para parecermos mais elitizados ou para não parecer que temos um “presente congelado”. Talvez seja triste que algo feito há décadas repercuta em mim de forma tão veemente, talvez seja saudável.

Em resumo, apenas sei que declaro a minha cíclica humanidade, pois “tenho andado distraído, impaciente e indeciso e ainda estou confuso, só que agora é diferente: estou tão tranquilo e tão contente… Quantas chances desperdicei quando o que eu mais queria era provar pra todo o mundo que eu não precisava provar nada prá ninguém? Me fiz em mil pedaços prá você juntar e queria sempre achar explicação para o que eu sentia. Como um anjo caído, fiz questão de esquecer que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira. Mas não sou mais tão criança a ponto de saber tudo… Já não me preocupo se eu não sei porque, às vezes o que eu vejo, quase ninguém vê e eu sei que você sabe, quase sem querer, que eu vejo o mesmo que você… Tão correto e tão bonito. O infinito é realmente um dos deuses mais lindos. Sei que às vezes uso palavras repetidas, mas quais são as palavras que nunca são ditas? Me disseram que você estava chorando e foi então que percebi como lhe quero tanto… Já não me preocupo se eu não sei porque, às vezes o que eu vejo quase ninguém vê e eu sei que você sabe quase sem querer que eu quero o mesmo que você…”.

Postagem Coletiva / Scenarium Plural / Oito Curiosidades Sobre Minha Vida Literária

OITO CURIOSIDADES
Meus dois livros: REALidade (Crônicas), de 2017 e RUA 2 (Contos), de 2018, pela Scenarium

1 – Não há diferença entre o início da vida literária de um escritor – em se tratando daquele que transforma a escrita em função criativa – com a de quem escreve apenas para a execução de tarefas práticas. Ela se dá quando começamos a ler. Antes, mesmo que tenhamos recebido estímulos auditivos ou visuais, muitos advindos originalmente da Literatura, apenas o contato direto com as palavras através da leitura nos fará despertar para a fantástica aventura do conhecimento de seus símbolos, signos e significados. Partir para a criação de textos que convidam leitores a ingressarem na realidade alternativa da Literatura se assemelha a recebermos um chamado – ao qual quis atender.

2 – Comecei a ler entre seis e sete anos. Antes disso, desenhava palavras em letra de forma no caderno. O gosto pelo desenho se acentuou nesse período. Foi a primeira maneira que utilizei para produzir temas que, com imagens, contextualizassem histórias. Como não compreendia textos e diálogos dos gibis, produzia enredos de acordo com a sequência dos quadrinhos. Cheguei a ficar decepcionado quando li pela primeira vez as mesmas histórias que anteriormente apenas imaginara as tramas. Primeiro indício claro da confusão entre interpretação e entendimento da mensagem.

3 – Sempre gostei muito de música. De gosto eclético, passeava do erudito para o popular com facilidade e sem preconceito. Cantor amador, gostava de entoar sambas-canção antigos, muitos que conheci na época que tocava violão com meu pai, aos cinco, seis anos de idade. Deixei o instrumento porque as cordas de aço machucavam meus dedos. Fazia versões de músicas que ouvia em outras línguas, desde os oito ou nove anos. Fã dos Beatles, transformei “Hey, Jude” em versos de amor para uma menina pela qual estava apaixonado. Mas foi a tradição de excelentes letristas do cancioneiro brasileiro que me influenciou, a ponto de criar poemas que pudessem ser musicados.

4 – O primeiro gênero que realmente me atraiu, como escritor, foi o de mistérios. Aos dez, onze anos escrevia contos em que o fantástico ganhava vida. Eu lia para o meu irmão menor, que os apreciava. Tendo esse “público” fiel à disposição, fiquei estimulado a produzir cada vez mais. Até que tive contato com Machado de Assis. Leitura obrigatória, entre outras, na escola, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” transformou a minha experiência de leitor e influenciou definitivamente a de escritor. Justamente nesse livro, Machado conseguia conciliar o contrassenso de morto e, com maestria, descrever a natureza humana, desnudada metódica e atentamente em vestimentas, gestuais, minúcias de olhares e silêncios.

5 – Sonhei um dia trabalhar no cinema como roteirista e diretor. Junto aos enredos, me chamava a atenção a maneira como as histórias se desenvolviam através do encadeamento das imagens. Pelos livros que conhecia adaptados para o cinema, pude perceber que um belo tema tanto poderia se esvaziar ou crescer a depender do diretor e edição, poderia ganhar em vivacidade e profundidade. Devido à influência que cinema, teatro e televisão exerceram em determinada época na minha escrita, muitos dos meus textos apresentavam sequências de representação imagética. Era como se escrevesse histórias para vir a público sob o comando de uma voz a clamar: “luz, câmara, ação!”

6 –Durante anos, vivi uma intensa fase mística, principalmente a partir dos 16, 17. De agnóstico praticante, passei a crer – abri a minha percepção para o invisível, obviamente, através da Literatura Não foi a Bíblia, que lia por “recreação”, mas um livro de inspiração na fé orientalista que encontrei – ou ele me encontrou – no “lixo”, pois trabalhava com recicláveis. Tudo que passei a escrever a partir desse “choque de realidade” pessoal trazia a marca do imponderável, do além-Terra. Cada texto que escrevia buscava trazer a mensagem de que a vida era maior do víamos-sentíamos.

7 – Até os 27 anos, escrevi intensamente. Publicá-los era algo que via como algo distante, apesar de não totalmente inviável. Ao casar, a vida familiar e profissional me absorveu de tal forma que aos poucos deixei de escrever regularmente. Praticamente, parei. Filhas crescidas, voltei devagar a lidar com as palavras, agora pelo computador. Com o advento das redes sociais, voltei a produzir textos, apenas para registrá-los. Com a repercussão inesperada dos meus escritos, a possibilidade de materializá-los em páginas do formato-livro tornou-se palpável.

8 – Publicar, percebi com o tempo, não me faria um escritor por si só. Chamar-se de escritor tem um peso absurdo para quem valoriza a palavra escrita. Normalmente é um processo demorado. Pelo menos, foi para mim – uma assunção. Quando a Scenarium Plural finalmente surgiu em minha vida, propiciando que meus textos – crônicas, poemas, contos – viessem a público em forma de revistas e livros, individuais e coletivos, já estava convencido que era um escritor. No entanto, o registro eterno representado pelo livro, realizou um sonho de garoto, que percebi ainda ter lugar no mundo, sem medida de tempo.