EU
Eu não tenho escrito tanto quanto gostaria, ainda que os temas passem diante dos meus olhos em todos os sentidos, como citadinos caminhantes nos amplos calçadões do Centrão. Eu já testemunhei cachorros mais conscientes de seu destino do que algumas pessoas. Entre elas, estaria eu. Aos outros, os observo, os absorvo, mas não os testifico em tela ou papel. Tenho me dedicado mais a realizar projetos caseiros, a montar e desmontar coisas, fazer exercícios de permanência material, erguer um jardim, pintar ou destruir uma parede. Leio esparsamente. Quando paro diante do computador, comento aqui e ali nas redes sociais. No ano passado, tomei estranhas decisões, como enviar saudações de aniversários a todos que nasceram em outubro — mês do meu aniversário — depois de ficar um tempão sem prestar atenção a isso. Foram desafios inúteis, mas inescapáveis, sob o risco da sensação que sofreria uma pesada represália (seria do deus Zuckerberg?): delírio pandêmico?… De toda a forma, estou preso a meus pés e minhas mãos não me libertam…
BAMBINO
A minha mãe foi para um lugar distante chamado Bahia. Ela me deixou com o meu avô. Eu gosto dele, mas além de mim, ele tem que cuidar das outras filhas e netas. Na casa de minha mãe, eu era tratado como um rei. Na verdade, lá, sou chamado de “Princeso”. Será que isso se deve ao fato de eu ter sido castrado? Ou por que sou delicado e assustado? Quando vim para cá, vomitei quatro vezes no carro. O meu avô ficou comigo o tempo todo com um saco para que não sujasse o banco. Ao chegar, ainda vomitei mais uma vez. Mas agora estou bem, mas parece que quem não está é ele. Eu o vejo triste, caminhando de um lugar ao outro, sem se demorar em cada canto. Muitas vezes, quando para, sem muito entusiasmo, fica diante de um objeto estranho, dando dedilhadas espaçadas. Antes, ficava um tempão batucando naquilo. Quando terminava, apresentava um sorriso no rosto…
Quanto ao medo de andar de carro, minhas tias e ele, os ouvi tentando interpretar a razão desse meu sintoma. Especularam que seria pelo fato de ter sido abandonado pelo antigo cuidador, que me deixou na estrada, após eu ter dado um passeio que achava que fosse para o parque. Eu não sei… esqueci. Assim como é uma lembrança vaga o canil em que estava ter sido atacado por uma onça… Malditos gatos!
O amor é um curativo muito bom para essas coisas…