Passo pela placa fixada em uma estaca de madeira, que adverte – Perigo. É uma seta que aponta para o mar. Caminho resoluto em direção às ondas como quem conhece e respeita a força da Natureza. Por entre a horda de banhistas, avanço aos saltos por cima das vagas que se sucedem crepitosas até um ponto onde fico apenas com o meu pescoço e cabeça acima da linha d’água.
O movimento sob e sobre a superfície do mar ondulado me massageia o corpo. A água quente me faz confortável como se fosse um bebê no útero materno. Após alguns minutos, começo, aos poucos, a sentir uma vibração estranha que me percorre a epiderme e adentra por minha musculatura como um frêmito de energia pulsante. Pensei quase desmaiar e ao olhar para os lados e para trás não vejo mais ninguém.
Não sinto mais os meus pés apoiados no suave piso marinho. Mais propriamente, percebo que o meu corpo mudou e me vejo como um curumim. Eu me tornara um pequeno tupinambá. De imediato, ponho o meu corpinho a deslizar na próxima onda e chego a uma área mais rasa onde se encontram os demais curumins da nação. Eles sorriem quando me veem chegar e Taîaoba, meu melhor amigo, me diz que sou muito ousado. Ninguém daquele grupo se atreveria a ir tão longe. O meu nome é Îagûanharõ (Onça Brava), mas entre nós, me chamam de Iperú (Tubarão). Enquanto nos divertíamos à beira d’água, a bater de encontro às arrebentações, como a enfrentar îakarés, agûarás e îagûáras ou inimigos das outras aldeias em lutas de peito aberto, percebemos que se avolumavam dois ou três pequenos pontos no horizonte. Recuamos todos até a areia e percebemos com espanto se tratar de grandes caíques com uma espécie de imensos caás a brotar de seu interior, em pleno mar.
Corremos todos com nossas pequenas pernas para avisar aos outros tupinambás, mas eles já haviam percebido aquelas presenças estranhas a se avizinharem pelas águas. Os guerreiros não demonstraram nenhum temor ou fizeram alvoroço. Somente Acaninã e Jateim, as cunhãs mais escandalosas da taba, começaram a chorar como se fosse o fim do mundo. O Uvixa (Cacique) Îagûareté (Onça Verdadeira), aliás, meu pai, se reuniu com velho Tesaberába (Olho Brilhante) na oca central, ficaram umas duzentas batidas de pilão para fazer quirela e saíram para instruir o grupo que iria à praia para esperar quem ou o que trazia os grandes caíques à nossa aldeia.
Aquele a quem chamávamos de O Mais Velho Que O Tempo, Tesaberába, se aproximou e disse que o aty deveria se aproximar com coragem dos visitantes. Que a nossa nação havia sido escolhida por Nhanderu para aquele momento. Que previamente já havia sonhado com aquele acontecimento e era inevitável que aquele encontro acontecesse. Aconselhou que, para demonstrar que não queriam guerra, o aty deveria ter cunhãs a formá-lo. Ele escolheu as cunhãporãs, como Moeem, Jacyara, Bartyra, Mbotyra e Poranga para estar junto aos guerreiros, o meu pai à frente e Avaré, o melhor caçador entre nós, a secundá-lo. Nesse momento, Acaninã, que até aquele instante chorava como se uma mboi tivesse lhe mordido, parou e perguntou porque ela também não poderia ir. Todos riram e isso ajudou a deixar o ar mais leve.
Os guerreiros e as cunhãs da nação tupinambá foram juntos até a faixa de areia para ficarem à espera do momento do encontro com os forasteiros. Nós, os menores, tivemos que ficar na taba. Eu, curioso que só, consegui fugir à vigilância da velha Jaçanã e me esgueirei pela mata até uma ypê onde pudesse presenciar, sem ser visto, a chegada dos estranhos. Percebi que, dos grandes caiques, os avas (pelo que pareciam) entraram em caíques menores. Aqueles eram seres estranhíssimos, cobertos por ajukus que lhes tapavam o corpo todo. Usavam akãs que alguns retiraram da cabeça quando aportaram. Parecia que estavam a quase desfalecer por algum motivo. Alguns tinham a cabeça raspada e quase caí do galho quando vi que tinham longos cabelos no rosto, como os cahys que roubavam a nossa comida, aqueles espertinhos. Só que esses eram enormes. Vários empunhavam pedaços de ybiracy com um desenho muito bonito que deve ter tido muito trabalho para fazer. Não se desgrudavam deles.
O encontro demorou bastante. Já dava para ver Guaracy quase ir descansar de um lado e Jacy a surgir, do outro. Os tupinambás parecem ter conseguido se entender com os maíras. Eles olhavam muito curiosos para as cunhãs, como se nunca tivessem visto seres tão formosos. Vi quando dois dos nossos mais valorosos guerreiros, Abaré e Ka’ioby, embarcaram sem receio com os ava-cahy em direção ao caíques maiores. O resto do aty voltou para a taba, a confabular sobre aquele extraordinário evento.
Eu desci rapidamente da árvore e fui em direção aos caíques. Já quase anoitecia e cheguei o mais perto que pude daquela incrível construção feito uma gigantesca ayacá. Fiquei quase submerso e voltei a sentir o meu corpo vibrar como se estivesse a receber um endijá de Tupã. De repente, comecei a ouvir uma algazarra perto de mim e pessoas de todas as cores, menos a minha, estavam a me rodear. Fiquei atarantado a ponto de engolir água salgada pela força de uma onda mais violenta. Havia despertado da imersão. Percebi que a minha viagem terminara. De alguma maneira, fora transportado para bem longe dali, para muito tempo antes. Uma experiência que me deixou bastante desconcertado. Se fora pela energia do elemento que me acolhia, se fora pelo poder do sangue que corre em minhas veias, se fora pela herança atávica que carrego, por algum tempo, fui um curumim.
Ao sair do mar, me sentia pesado, como a carregar toda a História nas costas. Apesar de estar com os olhos marejados, ainda pude ver, fincada na areia, a seta a apontar para o Oceano Atlântico: “Perigo”…
*Texto de 2017