07 / 12 / 2025 / Crianças

Fim de tarde, o rabo do sol se escondia por entre as árvores, criando sombras e formas inusitadas. Passávamos o final de semana no sul de Minas, região em que as linhas retas não compareciam no cenário, a não ser pelas linhas do chalé e por furtivos fachos de luz por entre os montes, feito show de rock. Eu e um grupo de amigos, decidimos ficar nesse recanto afastado para um contato mais íntimo com a Natureza. Acendemos o fogo da lareira e quatro lampiões e saímos para caminhar um pouco até uma pedra mais elevada para ver o entardecer, 250 metros acima.

Passados uns 20 minutos, a escuridão baixou quase que instantaneamente. Ficamos cegos, a não ser pela luzinha vinda do chalé, como se fosse uma estrela fora do céu. Por iniciativa aprovada por todos, havíamos deixado os celulares no chalé. Percebemos que não havia sido uma boa decisão. Quisemos ser naturalistas sem saber que a Natureza tem regras que fogem ao conhecimento de gente da cidade.

Fora tudo tão repentino que de início não nos demos conta de que estávamos num mato sem cachorro. Brincamos com negrume do ambiente e sobre a possibilidade de começarmos a sentir o toque de bichos estranhos a envolverem nossos corpos. Para não passar a sensação de que estivéssemos perdidos, decidimos nos sentar no vazio até encontrarmos o chão. Agora estáveis, começamos a especular sobre o que faríamos.

Éramos como crianças sem pai nem mãe. O frio começou a aumentar de uma hora para outra e a ansiedade pouco a pouco surgiu, evidenciado pelo tom de voz cada vez mais alterado. Seis adultos  ̶  três casais  ̶  perdidos no nada, indecisos se deviam ou não empreender a jornada de volta, curta, mas perigosa pela irregularidade do caminho. Até vermos uma luz bruxuleante saindo do chalé e vindo em nossa direção.

̶  Aqui, aqui, aqui!  ̶  gritamos todos.

Era Ricardo, o filho de sete anos do Arnaldo, que ficara na cabana, brincando. Ao escurecer, o menino deve ter percebido que demorávamos e quis nos encontrar com a bravura que toda criança tem e que falta a muitos adultos. Empunhava um dos lampiões e caminhava resoluto. Arnaldo e Tatá, com a aproximação do filho, foram abraçá-lo. O resto de nós, pulamos feito seus companheiros de escolinha. Nós nos achegamos uns aos outros o suficiente para que o lampião erguido por Arnaldo cobrisse a nós de luz amarela. Nesse instante, pude perceber o quanto estava apaixonado por Clara, com as linhas do rosto fracamente clareada sob o caminho de estrelas da Via Láctea.   

10 / 10 / 2025 / Luar*

Alta madrugada, mais ou menos 3h da manhã, desliguei as luzes de casa, mas estranhamente, os móveis permaneceram iluminados por uma cintilação tênue que entrava pelas janelas. Curioso, abri uma delas e vi a Lua projetando o seu brilho prateado sobre tudo. Não resisti e saí para vê-la. Como o céu estava limpo, as estrelas também podiam ser vistas a queimar quietamente no firmamento. As Três Marias permaneciam perfeitamente perfiladas uma ao lado da outra, como por todo o sempre. Lembrei de minha infância, em que tendo me mudado para a periferia, tive a oportunidade de começar a apreciá-las de “perto”. Pensei que, nesta vida de momentos fugazes, na quantidade de vezes que deixamos de voltar os nossos olhos para o eterno. Tentei registrar àquele instante. Como se pode (quase) ver, não foi da maneira que queria. Mas talvez a imagem obtida venha a calhar, por sua aparência onírica. Tudo não passa, mesmo, de um sonho…

*Texto de 2014. Hoje, a Lua continua a brilhar, mas a sua luz está obliterada pelas nuvens carregadas que despencam em forma de chuva.

22 / 07 / 2025 / Tempos

Passou-se todo um dia.
Do cinza à cor,
caminhou os meus olhos
pelo horizonte diverso.
Registro de tons e dons,
com quantos tempos se faz um dia?

Caçar com os olhos.
Arrebatar com a retina.
Beijar a tarde em queda.
Amar em cores.
A rima fica por conta da beleza…

18 / 02 / 2025 / Amor E Aparência*

Eles se conheceram no Segundo Grau. Ela era esguia e alta. Praticava esportes e chamava a atenção por seus olhos claros. Ele era rechonchudo e usava óculos. Descendente de pai preto e mãe branca, apresentava uma bela cor amorenada. Preferia se dedicar aos estudos e era bom em Português.

Calhou dela precisar de um reforço na conjugação dos verbos, na identificação das sílabas tônicas e dos complementos nominais e dele ser um cara bonachão que gostava de ajudar… Desde então, a dupla inseparável se formou. Nos três anos que estiveram juntos, compartilharam vários interesses e desenvolveram uma sólida amizade permeada de estudos, festas e confidências.

Ela lhe falava dos colegas com os quais ficava e do assédio constante que sofria. Quase maldizia ser tão bonita, enquanto ele… sabia ouvir… Não era incomum dele enxugar as lágrimas da moça com a mesma manga de camisa que enxugava as suas… mais tarde, na calada da noite.

Apesar de estarem sempre juntos, nunca passou pela cabeça de ninguém que os dois pudessem ter um envolvimento romântico. Igualmente, não passava pela cabeça dele que ela o quisesse como namorado. Isso o deixava confortável diante dela, ainda que tivesse se apaixonado desde que a vira pela primeira vez. À vista de todos, era um casal improvável, formado pela garota mais popular da escola e o nerd esquisito.

As coisas começaram a ficar estranhas nos últimos seis meses de relação direta. Frequentemente, ficavam encabulados ao se depararem olhando longamente um para o outro e, às vezes, bem dentro dos olhos. Simultaneamente, entravam em um mundo onde o jogo de aparências não exercia uma força tão poderosa quanto no que viviam — de amigas maldosas e colegas ressentidos que só gostavam de debochar. Nesses momentos, então, conseguiam escapar ao doloroso efeito venenoso dos seus pequenos grupos sociais.

Logo após a formatura, os pais da moça decidiram se mudar para outro Estado, onde buscariam maior tranquilidade e novas oportunidades de trabalho. Esse fato acabou por afastar os dois apenas fisicamente. Nos três anos seguintes, apesar de não se verem, passaram a se corresponder por cartas manuscritas. Ele sempre fora avesso às redes sociais e ela, depois que mudou, decidiu também abolir essa ferramenta de comunicação. Sequer trocavam fotos. Aparentemente, as cartas, que inicialmente serviriam somente como exercícios para a melhoria no uso da Língua, de uma forma incrível, fez crescer a integração entre os dois.

Depois de dois anos, ela começou a insistir para que ele a visitasse e conhecesse as paisagens pelas quais se apaixonara, onde agora vivia. Ele objetou que estava envolvido em um projeto pessoal importante, para além dos estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que não poderia revelar naquela ocasião. Ao mesmo tempo, ela dizia que também tinha novidades a lhe revelar, mas apenas pessoalmente. Apesar da crescente expectativa, somente após mais um ano, finalmente iriam se reencontrar, nas férias de verão dos respectivos cursos.

No dia da viagem, o rapaz mal conseguia permanecer sentado em sua poltrona no avião. Ela, em terra, desde a manhã, chorou algumas vezes. No horário programado, se deslocou ao aeroporto com o coração a pulsar fortemente. Finalmente, dentro de instantes, iriam se reencontrar… Ela sabia que a decisão que tomou poderia impactar na relação, negativamente…

À espera de seu amigo, ficou impaciente ao ver que quase todos haviam passado e não o localizava … Até que um rapaz parado já há alguns minutos se aproximou dela e a chamou pelo nome. Ao prestar maior atenção, custou a crer que ali estava quem esperava. Diante de si, estava um jovem forte e bem apessoado. Sem os habituais óculos, os seus olhos ficaram maiores e sentiu quase ser engolida por eles.

Quase ao mesmo tempo, disseram: “Você mudou!… — Depois de um momento, ecoaram: “Mudei por você!”… Ele, com muito sacrifício, havia feito dieta, começou a desenvolver um programa de atividade física e aprumou a sua aparência. Ela, aproveitando o afastamento de seus conhecidos diretos, decidiu relaxar corporalmente e deixar de ser tão obsessiva no controle alimentar. Engordou para ficar com a aparência semelhante a da dele. Apesar da correspondência constante, não haviam conversado que gostavam um do outro apesar ou por causa das características que carregavam…

Passado o momento do primeiro impacto visual, ao se aproximarem, olharam profundamente nos olhos um do outro, como faziam no passado. Imediatamente se reconheceram em si mesmos, tocaram os lábios delicadamente como nunca fizeram e, abraçados, saíram rumo ao mundo novo do amor que se descortinava, para além das aparências…

Foto por Orione Conceiu00e7u00e3o em Pexels.com

*Conto de 2016

12 / 01 / 2025 / Encontro Calado

voltei a encontrá-la
estava entre amigos
ainda que não quisesse
beijei o seu rosto abaixo a luz difusa
de seus olhos de entornos vincados
visíveis apesar da maquiagem
exprimiu um sorriso sem dentes
eu invadira o seu espaço de forma brutal
sabia que a incomodava
com o meu cheiro de antigo amante
o qual fazia questão que mantivesse
sem perfume fantasia industrializado
gostava de cheirar meu pelos
beijar a minha boca de língua intrusa
que descia por pescoço colo mamas pequenas
umbigo perfeito
e triângulo das bermudas
coxas joelhos e pés
que expunha o seu coração de joelhos
costas musculosas ombros que segurava
meu mundo de homem
foi um encontro calado sequer um “tudo bem?”
mas o rumor que ainda percorre por minhas veias
de lembranças alardeia que nunca a esquecerei…

Foto por Cameron Casey em Pexels.com