Há músicas em que eu me ouço quando as ouço
Há canções das quais eu gosto, sem entender
O significado das letras ou a intenção do compositor
Mesmo quando cantadas na minha língua
Há canções que admiro pela esperteza de suas saídas
Quando pareciam não me levar a lugar algum
E há melodias que, sem dizer palavra, me conduzem
Para o outro lado do verso e do Universo
Há músicas que se tornam a nossa trilha sonora
Mesmo quando não indique quem realmente somos
(Sou Quereres, por exemplo)
Aquelas que talvez digam o que pensamos
Quando nós mesmos não sabemos o que pensamos
E há canções que apenas muito tempo depois
Perceberemos o quanto nos representaram
Em determinada etapa de nossa vida
Ou ainda aquelas que ouvimos repetidas vezes
Até fazer sentido somente em alguma trilha futura
Que estaremos percorrendo
Quando eu não amava
Eu me emocionava com os amores possíveis e impossíveis
Sem saber dizer porque era intenso o amor que se proclamava
Quando um desse amores sem sentido (para quem não amava)
Se fazia amor compreensível pela força de sua letra
Era um achado tão raro, tão absorvente, que passava a repercutir
Os seus ecos amorosos pelos anos afora da minha existência…
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Sobre Platão E Gengibre

Segundo a teoria platônica, as formas (ou ideias), que são abstratas, não materiais (mas substanciais), eternas e imutáveis, é que seriam dotadas do maior grau de realidade – e não o mundo material, mutável, conhecido por nós através das sensações.
Colhemos gengibre. Lavados, um dos pedaços, a depender da posição que o colocava, ora parecia ser um cachorro, brincando com algo entre suas patas; ora, um cavalinho trotando campo a fora. Pode ser a minha imaginação exacerbada, porém talvez seja um bom exemplo de como podemos distorcer algo que vemos, ouvimos ou sentimos. Afinal, o certo mesmo é que se trata, apenas, de gengibre. Nesse caso, alguns gostam muito, outros, não gostam nenhum um pouco. E gosto, não se discute, já que as sensações são eminentemente pessoais e intransferíveis.
Contudo, há aqueles que gostam de impor seu gosto como padrão, entre todos os demais gostos. Mas essa é outra história, com efeitos que vão desde relacionamentos a preferências político-ideológicas. Pessoalmente, eu não apreciava gengibre. Assim como não gostava de comida japonesa, por puro preconceito – não conhecia e não queria conhecer. Até que “abri o meu coração” ao sabor, textura, aparência e todos os demais detalhes que me levaram a me tornar um fã incondicional. Hoje, consumo o gengibre e me afeiçoei a sua ardência em chás, em pequenas postas e da forma que mais vier a aparecer. Diria que essa raiz termogênica e picante é quase como se apaixonar – queima e vicia.
BEDA / Auto

Vivemos frequentemente situações que condições externas nos impõe restrições de movimentação e de visão. Em uma longa viagem de ônibus ou metrô, temos rostos de estranhos postados tão próximos quanto o de amantes. Paisagens repetidas tornam-se, com o passar do tempo, visões de quadros de artistas sem talento. A solução mais ao alcance de nossas mãos, olhos e ouvidos, tem sido nos distrairmos com a leitura de um livro ou, mais assiduamente, utilização de aparelhos de nexos – ou dispersão.
Vez ou outra, podemos até realizar outras ações nas raras vezes que conseguimos sentar. Lembro-me que um dos meus melhores trabalhos na Faculdade de História foi feito, literalmente, nas coxas, na hora e meia que me levou de casa à USP. No entanto, era outra época, no final dos 80, e os trabalhos podiam ser realizados à mão e as distrações talvez fossem menores.
Estamos cada vez mais vinculados à Rede, onde quer que estejamos. Se a Nossa Senhora das Conexões nos permitir, através dos instrumentos eletrônicos de mediação, como celulares e computadores, podemos jogar contra adversários virtuais de países amigos, recebermos mensagens do além Rio Tietê, nos inteirarmos de novidades que temos urgência em sabermos antes que se tornem antigas na próxima hora, ouvirmos canções de amores perdidos-encontrados e conversarmos com pessoas do outro lado mundo, enquanto o próximo ao seu lado está sendo sonoramente ignorado.
Há alguns anos, ao estar ouvindo o noticiário matutino pelo celular, com os fones de ouvido enterrado nos ouvidos, fui facilmente furtado da minha carteira e de outro celular por um heterogêneo bando de mulheres dentro do ônibus. Foi um perfeito trabalho de equipe – enquanto uma das moças impedia que eu avançasse (uma baixinha que mal alcançava a barra de cima) outras duas se assenhoravam do conteúdo da bolsa de couro que usava para ir à faculdade.
Logo que fizeram o serviço, desceram rapidamente, deixando uma bem vinda clareira na área em meu entorno e na minha bolsa. Com certeza, teria percebido a movimentação estranha se estivesse com meus sentidos em alerta. Enquanto recebia notícias dos tumultos na França, a ação perniciosa de algumas pessoas tumultuava a minha vida.
Outro dia, mais recentemente, ao tentar descer no meu ponto, solicitei ao rapaz à minha frente, em voz alta, que me desse passagem. Como ele não se movimentava, toquei em seu braço como se a minha vida dependesse daquela oportunidade e ele me olhou com a expressão de quem estivesse sendo agredido por um monstro. Percebi, de imediato que ele estava com fones de ouvido. Os dois ou três segundos que se passaram nessa “conversa” de sensações, foram o suficiente para que o ônibus fechasse as portas e, célere, saísse em seguida para aproveitar o semáforo sinalizado em verde. Desci apenas no ponto seguinte.
Fiquei plenamente desconcertado com a situação. Na época, havia deixado de usar dos fones de ouvido, desde o furto que sofrera. Ajudou-me a decidir admoestações da minha mulher, que se sentia ofendida com a minha “ausência”, mesmo quando estava em casa. Por um tempo, abri mão daquele instrumento. Voltei a usá-los mais assiduamente nos últimos anos, desde que deixei de atender clientes no tempo devido em algumas ocasiões. Para meu desgosto.
Ao empregarmos o tempo ocioso dessa forma, nos distanciamos do mundo real… ou do que chamamos de mundo real, que eu traduziria livremente como a arena em que jogamos as nossas individualidades. Como contraponto, podemos começar a exercitar a conversa “ao vivo” com quem esteja presente, ali, do lado. Porém, quem se permitiria ser invadido dessa forma por um desconhecido?