09 / 01 / 2025 / Mares E Marés

Eu gosto de ir ao mar. No confronto com as ondas, volto à infância. Me revisto de quase nenhuma vestimenta. Vibro com o vento as suas fragrâncias sopradas e sons sugeridos por arvoredos de folhas farfalhadas ao sabor. Mas percebo que são visões do passado, quando menino caminhava pelas ruas de areia, terrenos tomados por mangues e casa de madeira. Se houve uma época em que tive uma convivência mais leve com meu pai foi então… Talvez seja por isso que vivo a retornar para esse oásis no meio do deserto da minha juventude.

BOMBAS & COPOS DE PLÁSTICO PARA JESUS

De hoje para a amanhã, celebraremos o Natal. Gosto do termo em espanhol – Navidad – o que soa quase como ” novidade”. O que condiz com um episódio tão revolucionário quanto o nascimento de uma criança que pregaria o amor como conduta numa época em que a hegemonia das armas sobre populações de países ocupados ditava as normas, a violência como linguagem de dominação. Quer dizer, as coisas não mudaram tanto assim… apenas as armas se sofisticaram a ponto de poder matar mais e pior, em fogo e dor.

Amanhã, não estarei em casa na passagem da meia-noite. Estarei em atividade, longe dela. Mas sei que haverá espocar de fogos de artifício ou simples rojões. Os cães que moram conosco estarão dentro de casa, tendo o olhar compreensivo de seus tutores, o que deverá tranquilizá-los um pouco, mas ainda assim, haverá sofrimento. Fico imaginando se em vez de tanto barulho, misturado à execução de músicas de gosto duvidoso em volume excessivo, houvesse o silêncio que uma criança recém-nascida merece ao chegar ao mundo. Se as pessoas percebessem que a grandiosidade de tal fato maravilhoso, o aceitariam com a reverência de quem compreende a sua importância.

Em sua simples manjedoura no estábulo onde os animais o aqueciam com a sua respiração do frio do ambiente externo, a criança ficaria tranquila, assim como as outras espécies que participavam dessa aventura que foi o surgimento de alguém que mudaria a História. A sua família, por causa do anúncio de sua chegada, viveu em fuga, assim como tantas centenas de milhões antes e depois dela, por perseguição política, religiosa ou étnica. Como tantos antes dela e depois dela, seus filhos foram perseguidos por suas ideias, enfrentaram o padecimento do corpo físico, torturados por buscar melhores condições de vida para seu povo. Como a falta de um lugar para morar.

É tão estranho ver representantes da massa que se dizem cristãos, quando eleitos, tentarem impedir que isso se torne realidade. Porque dessa maneira sempre haverá mercado para promessas fáceis de serem esquecidas. Alguns contrapõem espertamente: “A casa de meu Pai tem muitas moradas” – disse Jesus. Acenam com uma vida idílica fora deste lugar, enquanto vivem como nababos em templos sem fé.

Por aqui, ontem de manhã, recolhi um saco grande com copos plásticos que desceram por um duto feito para escoar a água da chuva da parte de cima da vila. A noite toda, dava para ouvir o som alto da festa que rolou durante horas. Assim como nos outros anos, desde antes da meia-noite, as ruas serão fechadas para a reunião de jovens que beberão como se não houvesse amanhã. Jogarão os copos na rua e a chuva se encarregará de conduzi-los para outros pontos. Vivemos em comunidade, mas a consciência comunitária passa longe de quem quer apenas usufruir o momento que passa. O feriado e seu motivo, qual seria mesmo?

Quem chegou até esta linha, talvez duvide que este texto tenha inspiração natalina, mas assim como aqueles que beberão até cair ou se empanturrarão de comida pesada, aproveitei a data para expressar a minha escrita – um defeito meu. Valorizo tanto o Natal que não participo dele como os outros. Ainda que pela Ortega Luz & Som participe viabilizando tecnicamente que músicos possam interpretar canções que alegram convidados nos eventos que realizamos. Contraditório, não?

Mas reservo dentro de mim a força de uma revolução sagrada que marcou e marca a minha vida por anos. Eu reservo o meu espírito para vivenciar intimamente a magia de um acontecimento que me mantém no desejo de transcender, ainda que encarnado, ainda que em busca de me manter materialmente contrariando algumas das minhas convicções. Sei que vivemos na corda bamba entre sermos no que acreditamos ser e entre o que é possível ser.

Que todos possam vivenciar um Natal ideal, de alegria e amor!

Foto por Zuko Sikhafungana em Pexels.com

Um Pai*

Com a chegada de datas marcadas como importantes — aniversário, por exemplo — passamos por reflexões acerca da passagem do Tempo, lembranças fugidias ou outras, mais palpáveis, porém de certa maneira dolorosas. Em 2014*, escrevi:

“Por poucos anos, tive uma convivência normal com o meu pai. Ele era (é) um homem elegante, com tez amorenada e os olhos puxados, devido a sua ascendência indígena. Eu me pareço mais com o pai dele, o ‘Seu’ Eustáquio Humberto, mas não são poucas as vezes que o vejo em mim, no espelho ou fotografias, e o ouço reproduzido em minha voz. Quando houve a cisão definitiva entre ele e minha mãe, que fisicamente já passou, deixei igualmente de tê-lo mais assiduamente por perto. O Senhor Ortega ainda está presente em meu tempo e espaço e o homenageio, mesmo que de modo torto, mostrando que, um dia, formamos uma família como pai e filho”.

Post Scriptum: Não o imagino me segurando em seu colo muito tempo depois da foto. Ele não afeito a certas formalidades e certamente não se mostrava carinhoso. Na minha memória, no entanto, ele era o meu herói. Essas contradições se pacificaram na tremenda objeção ao seu comportamento que acabei por usá-lo como a um exemplo não ser seguido. O meu pai faleceu há alguns anos… cinco anos, talvez. Não foi marcante como deveria, a não ser pelo fato de que, prestes a entregar um projeto para a Scenarium Livros ArtesanaisRUA 2 — sequei. Posteriormente, consegui desenvolver o livro de contos curtos, mas o tema recorrente foi a morte.

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Páginas de Livros

Página da mais recente publicação de minha autoria — O Cão Branco. Está no formato de plaquete, uma alternativa interessante para projetos literários independentes como são os que eu pratico, sob os auspícios da Scenarium Livros Artesanais. Nessa edição, eu respondo a uma carta de Lunna Guedes, mencionando a experiência da tentativa de resgatar um cão provavelmente abandonado, a relacionando a um personagem de sua infância, um homem que ficou passeando em sua mente desde então, parado na Estação Ferroviária de Nervi, em Gênova, na Itália.

Eu me tornei escritor quando assumi que essa era a identificação pela qual queria ser conhecido. Publicar um livro apenas referendou o desejo de menino materializado no meu primeiro livro, que veio a se chamar REALidade, lançado em 2017. É constituído por crônicas que publicava nas redes sociais, além de algumas outras, inéditas. É uma edição que envelheceu bem. Gosto muita dela.

A minha atividade profissional implica em certo trabalho físico. Tenho uma pequena empresa de locação de equipamentos de som e luz para eventos festivos e/ou artísticos. Melhor dizendo, eu loco serviço de sonorização e iluminação. Trabalho com muitos artistas da música, do teatro e também em eventos empresariais. Frequento ambientes o mais diversos e não são poucas as vezes que volta e meia me chegam histórias das mais simples até as mais estranhas, ainda que verdadeiras. Instado por minha editora a incrementar uma história de abuso infantil, fui mergulhando nos meandros que envolvem o poder e a manipulação de pessoas através da minha personagem — Elizabeth Gonçalves — em Senzala, uma novela. Na foto das páginas não estranhem as minhas unhas sujas. Faz parte do rescaldo da manipulação dos equipamentos da minha atividade. Muito menos vergonhosas que o quadro que talvez pareça pintado em tintas fortes demais, mas que chegam a ficar distante da realidade dura e crua.

Eu gosto de poesia desde garoto. Eu me identificava, quando adolescente, com os poetas do Mal do Século (XIX) — Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e Junqueira Freire. Adorava declamar Castro Alves e fui bastante apaixonado pela poesia de Gonçalves Dias, principalmente pelos versos de I-Juca-Pirama. Mais maduro, Mario de Andrade e Drumond de Andrade ocuparam a minha mente com as suas incursões na realidade. Eu sempre escrevi poesia. Assim como os poetas do final do Século XIX, incursionava pela dor de amor. Era um amor sem destinatária. As minhas musas eram idealizadas, muitas à partir de pessoais reais (que nunca souberam ser musas involuntárias), outras, atrizes do cinema e da televisão. Mais recentemente, fui escolhido à participar de um Coletivo patrocinado pela ScenariumANDARILHA. Fiquei feliz, ainda que tenha mudado bastante a minha escrita poética, tentando inovar nas imagens e nos temas. É um belo projeto que fiquei contente em participar.

RUA 2 foi o segundo livro que lancei. Foi escrito numa fase pessoal difícil, em que a seca temática foi bastante severa. Abertas as comportas, logo começou a fluir histórias relatadas através de minha experiência na Periferia da Zona Norte de São Paulo. Compostas por contos curtos, relatam situações comuns do cotidiano periférico, sempre com pontuação dramática, muitas vezes, violenta. Talvez resquícios da morte de meu pai, com quem tive várias diferenças ao longo da vida.

Uma das situações em que meu pai causou repercussão longeva em mim, foi a sua atitude em relação ao fato de que eu ter tido incontinência urinária até os meus oito anos, por aí. Apenas mais recentemente li que essa característica pode ser causada por sintoma exacerbado de Ansiedade. Aliás, apenas nos últimos anos eu aceitei que sempre fui ansioso. Essas crises de ansiedade acabou por gerar um isolamento voluntário por um mês que me salvou de uma crise mais severa. É claro que isso acabou no papel. Gerei mais um livro: Curso de Rio, Caminho do Mar — que não está nesta publicação, mas que me ajudou a sair do estado mental no qual estava mergulhado. Ajudou bastante mergulhar igualmente nas águas das praias de Ubatuba.

Participam:
Claudia Leonardi
 
Mariana Gouveia
Lunna Guedes
Roseli Pedroso 
Silvana Lopes

BEDA / Paciência

Na ausência do meu pai, a minha mãe pegou um empréstimo da sua família e construiu um quarto adjacente à lavanderia. Por um tempo, aquele quarto garantiu uma renda extra para a família na sua locação. A única locatária da qual me lembro foi uma senhora com um filho pequeno. Não estranhei que estivesse sem marido. Na Periferia, mulheres sós, com filhos, era regra, não exceção. Incluindo a minha mãe.

Ela se retirou quando o meu pai voltou da prisão política, o ocupando. Eu me perguntava da razão dele não dormir com a minha mãe, sendo casados. Nenhum dos dois me deu qualquer satisfação. Como cabia duas camas, fui dormir com ele. Passado um ano, ele já havia se arranjado em outra casa, com outra mulher e acabei por ficar com o meu irmão na cama que ocupava. A minha mãe acabou por se ausentar na ocasião em que minha avó paterna ficou doente, para cuidar dela. Após o seu falecimento, ela passou a morar na casa da Vila Dionísia. Os meus irmãos se mudaram para lá e acabei por ficar sozinho, cuidando da casa da família.

O meu pendor para a solidão se ampliou e passava boa parte do dia cuidando dos cães, após a escola, lendo e escrevendo. Eu e o quarto convivíamos bem. Como havia umas tintas que sobraram de uma pintura, eu as utilizei para fazer umas experiências visuais excêntricas muito influenciadas por Dali.

Há alguns anos, voltei a visitar o quarto, então abandonado a si, e as pinturas continuavam lá para demonstrar que eu não havia delirado tanto quanto imaginei. Uma palavra pontuava a imagem e resumia o meu credo — PACIÊNCIA — agora encoberta após a colocação de azulejos. Mas o sentido de eternizá-la em minha trajetória é uma busca contínua.