Terminado mais um evento, neste caso, a matinê de terça-feira de Carnaval, começamos a desmontagem do equipamento, item por item. Exitoso, esse trabalho é feito com calma e por etapas. Toda a estrutura é formada por equipamentos como caixas e mesa de mixagem de som, amplificadores, pedestais e microfones, cabos de conexão de sonorização e iluminação, estruturas para os spots de luz e outros tantos detalhes que compõem a complexa aparelhagem que é utilizada para efetivar uma apresentação que busca levar entretenimento e alegria ao público que, mais do que espectador, é participante da festa num evento como é o baile de Carnaval. O clube no qual cumprimos nossa função de prestadores de serviço nesse setor que foi um dos mais prejudicados pela chegada da Pandemia de Covid-19 (por incentivar a aglomeração), ficava próximo a um dos logradouros mais procurados pelos foliões que esperam a passagem dos blocos de rua, um fenômeno cada vez mais popular em São Paulo. O ano 2023 como reinaugura o Carnaval, após dois anos de paralização.
Gosto da minha atividade, filha do circo mambembe — aquele que vai de cidade em cidade — montando e desmontando a lona sob a qual a vida se fantasia de espetáculo a ser admirado. Tenho consciência que passa por nosso manejo a melhor expressão do artista em suas múltiplas dimensões. O eventual sucesso que é obtido pelo músico, cantor, ator, bailarino tem embasamento em nosso esforço mais apurado. Ganho para isso, mas não me sentiria minimamente realizado se o evento que venha a realizar não vier a obter êxito, que é tradução da atuação do artista em aplauso — a moeda corrente mais importante para ele — ainda que também venha a ganhar financeiramente com isso.
Devido ao meu percurso pessoal, sei que não sou exatamente o tipo que seja visto a atuar nesse meio. Mas não sou o único “exemplar” do sujeito que tem uma formação de terceiro grau e goste de “por as mãos na massa”. Carrego um orgulho, que alguém poderia chamar de enviesado, de ser “peão”, ainda que do próprio negócio. Estar na minha posição me dá oportunidade para que possa observar a vida acontecer sem precauções de terceiros. Participo de festas em que o uso de “desbloqueadores comportamentais”, como bebidas etílicas, propicia o relaxamento do comportamento das pessoas em situações limites. Faço uso do meu posto de “observador social” para buscar desvendar os mecanismos por trás de certas atitudes. Festejar talvez tenha algo a ver com esgarçar a linha que separa o permitido do permissivo. Não é a situação que se observa numa matinê como as que fiz no domingo e na terça-feira. Nessas ocasiões, encontramos pais saudosos de suas juventudes tentando transmitir aos filhos a alegria que sentiam, em um ambiente controlado, se fantasiando, cantando, dançando. Ou apenas participando, se satisfazendo ao ver os filhos brincando inocentes entre confetes e serpentinas.
Após terminarmos a desmontagem, a operação a ser realizada é o de carregar o equipamento até o transporte. Havia duas opções: uma mais tranquila e rápida — levar com os carrinhos que dispomos os itens até o veículo que estacionaria a dez metros de distância — e a outra, mais demorada e longa, carregar cinquenta metros distante o equipamento até o portão de entrada. Normalmente, não pediríamos que o veículo fosse até a lateral do palco. Nesse clube, devido à movimentação do sócios, isso não é usual. Mas como durante todos esses dias de Fevereiro tem chovido bastante e o clube estivesse totalmente esvaziado, o meu irmão pediu para o porteiro que permitisse levá-lo até lá para que o equipamento não molhasse. A resposta do porteiro foi bastante emblemática: “Infelizmente, vai molhar”. Em outra ocasião, nesse mesmo clube, uma resposta de outro porteiro deu ensejo que produzisse um outro texto: “Novas Novidades“.
Em outros momentos, já discorri sobre os vassalos do Sistema que sofrem do que eu chamo de “Síndrome do Jagunço“. É aquele sujeito que prefere agir como déspota no lugar do déspota, que interpreta ao pé da letra uma orientação do Chefe ou, às vezes, executam apenas a uma insinuação feita à esmo. “Ordem é ordem”, já ouvi dizerem. A mesma sentença professadas por nazistas ao serem inqueridos sobre a matança que os levaram a eliminarem milhões de Judeus, na Segunda Guerra. Por sorte, a chuva diminuiu e pudemos carregar apenas com alguma dificuldade para impedir que certos equipamentos não ficassem muito molhados. Em certo instante, o porteiro ficou nos olhando de sua posição, há uns trinta metros. Parei o que estava fazendo e o encarei, com o véu da chuva leve a nos separar. Intimidado, voltou para a sua cabine.
Terminado o carregamento, fui até lá e o informei que estávamos prontos para deixar o clube. Sem levantar os olhos, respondeu com um “certo” incerto. Quando viesse, a minha intenção era lhe desejar uma boa noite de plantão e dizer expressamente: “Obrigado pela solidariedade!”. Não pude. Demorou uns dez minutos até que chegasse uma moça que nos abrisse o portão. Bem educada, nos orientou na saída do veículo. Agradecemos com convicção e voltamos para a casa.