Segunda-feira de rescaldo dos eventos do final de semana pela Ortega Luz & Som. Satisfeito, mas cansado, começo a fazer as tarefas caseiras costumeiras: recolher o lixo, alimentar as cachorras e as garnisés, varrer os pisos da casa e do quintal, lavar a louça. São tarefas que me reconectam. Tenho textos a escrever, mas a perspectiva é que não possa ver o sol se pôr… pela nebulosidade que tomou conta do entardecer.
Entre os itens a serem descartados, encontrei um broche. A Tânia deve considerar que não seja importante ou que possa vir a usar eventualmente. Tem um aspecto passadista e um tanto chamativo. Normalmente, não encontraria guarida na caixa de acessórios das vestimentas e serem usados sem chamar a atenção como uma bijuteria espalhafatosa. Eu apenas suponho. Não perguntei a ela. Não a perturbaria no trabalho para questionar sobre isso.
Mas não a jogarei fora. Foi apenas vê-lo para lembrar de Dona Magdalena Nuñez (Blanco Y Prieto) Ortega. Mamãe adorava esses apetrechos. Tinha um estojo com alguns deles. Eu, em pequeno, os olhava fascinado como se fossem tesouros resgatados de piratas ou de Ali Babá. Eu a via experimentar vez ou outra, ensaiando para as ocasiões que em determinada época não eram tantas, em que nos reuníamos à grande família espanhola.
Incrível é o poder que uma simples peça sem valor tenha o poder de movimentar as pesadas engrenagens endurecidas do Passado e faça funcionar a Máquina do Tempo, o levando num átimo ao passado de meio século, nos transformando no menino que ficava a admirar a mãe a se pentear e se maquiar na antiga penteadeira, ao qual ela chamava de “pechinchê”. Os perfumes são reavivados, a escova volta a deslizar pelo sedoso e abundante cabelo, a luz indireta a entrar pela janela do passado é generosa ao trazer para os olhos míopes do velho a clareza da visão juvenil.
Um simples broche não é um simples broche. O seu corpo carrega tanta energia memorial que mesmo sendo feito de latão e plástico colorido, passa a ser tão valioso tanto quanto o tempo inteiro de nossa vida… .
Vivemos, no Brasil, o que chamo de “Síndrome do Ancinho“. E o que viria a ser isso, exatamente? Bem, começo explicando que em casa, eu e a Tânia, queríamos aprimorar o nosso jardim e para isso pensamos em comprar um ancinho, o que nos ajudaria a preparar melhor a terra e recolher o que não gostaríamos que estivesse misturado a ela.
Quando fomos comprá-lo, encontramos dois tipos desse instrumento de jardinagem na loja de ferragens. Um, em maior quantidade, era feito de plástico. E outro, de metal, só tinha um exemplar restante. Levamos esse, por considerá-lo mais robusto e de maior utilidade para o que pretendíamos fazer. O vendedor nos disse que aquele era antigo, o último da sua linha, porque era preterido em relação ao de plástico, que tinha maior saída. Perguntei a razão e ele me disse, expressamente: “Os patrões preferem comprar os de plástico porque os de metal podem ser quebrados pelos empregados”. Ou seja, pela variedade de componentes, podem ser “desmontados” por quem queira boicotar o próprio trabalho.
Pensei comigo mesmo. Os de plástico não seriam mais frágeis? Sim, mas muito mais barato (1/3 do preço), podem ser substituídos sem grande prejuízo. Além disso, ao ser realizada muitas vezes a fraude poderia ser mais facilmente detectada.
Então, vivemos assim — usamos material de segunda, terceira, quarta, quinta qualidade porque, se fossem melhores, certamente seriam avariados por deseducação (que é a falta ou perda de educação), negligência ou mau uso proposital. Esse é o nosso mal — nós, os brasileiros, nos sabotamos — e, por assim dizer, decretamos a nossa sorte: olhar para sempre a bunda de outros povos que caminham à frente, crendo em um belo futuro (filho de nosso presente e de nosso passado) que nunca se cumprirá.
Há quem defenda que o Tempo não existe, de fato. Tradicionalmente, poderia se dizer que Tempo é a duração dos fatos— o que determina os momentos, os períodos, as épocas, as horas, os dias, as semanas, os séculos, etc. Teria surgido a partir do Big Bang, momento em que o Tempo começou a correr, avançando sem parar desde então. A palavra Tempo pode ter vários significados diferentes, dependendo do contexto em que é empregada. Eu, pessoalmente, em contraposição a essa ideia de Tempo contínuo de Cronos, também deus das Estações, gosto da vertente dada por Kairós, seu filho, que propunha uma não-linearidade do Tempo, o valorizando a vivência do momento oportuno. Teorias mais ousadas propõe que o Tempo caminharia em duas direções contrárias, como na mitologia da RomaAntiga, em que Janus, deus dos começos e fins, é geralmente descrito como um homem com duas faces olhando em direções opostas. Além das teorias baseadas na Física tradicional, através de experimentos matemáticos em Física Quântica foram realizadas simulações de como o Tempo funcionaria nessa dinâmica — sem usar a gravidade —, mostrando que o “Tempo Quântico” pode ser tão bizarro quanto os demais fenômenos na escala das partículas atômicas. Isso pode ser relevante para futuras tecnologias. Computadores quânticos que tirem proveito dessa “ordem temporal quântica” para executar operações poderão superar os dispositivos que operem usando apenas sequências fixas. Eu, pessoalmente, sem me ater a teorias de como o meu corpo se desgasta a cada tic-tac do relógio, a duras penas tenho conseguido viver o Presente que creio ser o único Tempo que importa. Há pouco Tempo, quando me desloquei para o Futuro, passei por uma crise pesada que quase me fez sucumbir. Porém, estando vivo, neste momento e lugar, estou festejando a minha história pessoal através do Passado, o que é sempre uma maneira de viajar no Tempo, ao mesmo Tempo que tento decifrar o seu feitiço.
Eu e meu neto, Bambino.
Aos 60 (2021)
Eu sou um homem às portas dos 60 anos, que completarei no libriano 9 de outubro próximo. “Casado, três filhas, tenho cultivado uma proverbial barba branca na tentativa de abrigar um aspecto mais maduro do que a minha alma juvenil (imatura) deixa entrever. A minha imagem veterana tem sido auxiliada pelo desenvolvimento de uma voz mais grave, graças ao envelhecimento das cordas vocais. Assim, como os olhos, pelos (que caem ou embranquecem), pele e outros órgãos que definham, certos aspectos da passagem do tempo físico (rotações em torno do sol) nos transformam gradativamente em outras pessoas ao longo da vida. Efeito do feitiço do Tempo. Somos os mesmos, mas outros. O que não muda é algo a que chamo de energia primordial — uma identidade pessoal — que não envelhece, transcende o Tempo e me acompanha até que venha a me desvencilhar do corpo que a carrega. A minha principal atividade como Obdulio é me procurar, me encontrar e me perder. Descobri dentro de mim lugares inacessíveis. Muitas vezes, quando chego perto de alcançá-los, desisto. Eu me sinto bem em me desdobrar em mistérios… Ou talvez seja apenas covardia. Enquanto não chega o esquecimento na dissolução de moléculas na revolução atômica da morte”.
Identidade (1967)
“Esta foto, tirada provavelmente aos seis anos, foi feita por ocasião da primeira carteirinha de identidade. A minha mãe era muito ciosa com relação aos registros sociais. Na verdade, tinha um medo, que se pelava, de me perder por aí…”. Identidade percebi que não fica restrita a um documento. Perpassa por tantas vertentes e variantes que apenas intimamente podemos saber quem somos… se formos totalmente honestos conosco ou tivermos discernimento e coragem para tal.
Ciclos da águas…
Água (2014)
“Esta foto pode parecer de suprema ousadia e talvez, até, politicamente incorreta, mas não se preocupem, esse banho durou apenas cinco minutos. Sempre disse que o maior recurso do Brasil era a água. Eu me penitencio de, mesmo sabendo disso, não ter tido muitas das vezes os cuidados necessários para economizar esse bem preciosíssimo. Agora que vivemos a pior estiagem dos últimos cem anos na região Sudeste, se bem que ainda mantendo vários hábitos impensáveis em alguns lugares realmente assolados por secas severas, como tomar um banho por dia, pelo menos, é imprescindível que aprendamos a lidar com a água de maneira a valorizar cada gota”. Passados sete anos, nossos administradores preferiram não acreditar no planejamento. Afinal, são tantos recursos disponíveis que ninguém notaria se, como num curso de rio, tiverem sido desviados para destinos ignorados que não a precaução com a seca há muito Tempo prevista.
Riponga (1999)
“Durante muito tempo adotei um perfil riponga, para a tristeza da Tânia, que não sei como aguentava o visual daquele cara desgrenhado. Do meu lado, a gordinha Ingrid, com cara de quem sempre estava disposta a aprontar”. Nessa imagem, visto uma camiseta que utilizava como uniforme do baile de Carnaval ao qual provavelmente iria fazer mais tarde.
No Outono de minha vida…
Outono (2021)
“Outono de 2021, no outono de minha vida. Mas ainda que as minhas folhas caiam, ainda posso dizer que espero ultrapassar o Inverno e alcançar a Primavera, mais uma vez. O que não será mais possível para centenas de milhares de pessoas neste País que nega direito à vida. O pior é que haja tantos palhaços que prefiram ver o circo pegar fogo, quando não são eles mesmos a acender o fósforo. O que realmente espero, além de sobreviver é que, nada mais, nada menos, venham a perceber o mal que ajudaram a propagar e sofram o pior dos arrependimentos”.
Aos dois, a dois…
Aos dois, a dois… (1963)
“Eu, então com dois anos e meio e minha irmã, Marisol, com menos de um. Desde então, já apreciava a bola”. A família morava na região central de São Paulo, no Largo do Arouche, e mamãe nos levava às praças arborizadas e bem cuidadas de então — República, da Luz, Princesa Isabel, entre outras. Passados quase sessenta anos, o movimento do Tempo “renovou” as orientações e vivemos um ciclo de declínio institucional. Isso, muito devido ao que viria a acontecer logo depois — o Golpe Militar de 1964 — que atrasou o nosso desenvolvimento nas práticas participativas e valorização do bem público como coletivo. O meu irmão caçula, Humberto, nasceria por volta de seis meses à frente, enquanto nosso pai passaria a ser perseguido por suas ideias pelo Regime de Exceção.
Ver, rever, visto, revisto. Ser objeto de observação, observar. Ver verdadeiramente ou apenas passar os olhos sem se aprofundar. Vistas, certas imagens, ganham a dimensão de algo mais a depender de quem as vê. Carregadas de referências pessoais, ver algo é como se pudesse vê-lo para além da percepção imediata e restrita a esse algo — uma visão transcendente. Não vejo como possa ser de outra forma.
Bethânia e eu…
Uma coisa que me intriga é a visão dos outros animais em relação aos mesmos objetos e paisagens que vemos e como são interpretados, dentro de suas referências perceptivas. Que não se restringem apenas à visão, mas incorporam o olfato e o ouvido apurados, o que colabora para que apreendam de uma maneira mais completa o que apenas vislumbramos na superfície ou que valoramos por critérios idealizados. Essa riqueza perceptiva, fora de nosso alcance, é como se fosse uma overdose de vida. Todos os momentos são tão intensos em termos sensoriais que não seja de surpreender que durmam tão profundamente quando se sentem abrigados e seguros. (Periferia, em 2021)
Rua Santa Ephigênia, onde as antigas construções abrigam lojas de equipamentos de ponta em vários setores da tecnologia. É uma festa para os meus olhos, mas não nesse aspecto. Para mim, o que é precioso reside nas edificações… É comum aproveitar a abertura de algum portal do Tempo e viajar para o Passado. São breves instantes de percepção extra-sensorial em que capturo algum momento especial, testemunho a História a acontecer em décimos de milissegundos e volto a caminhar entre carros, pessoas e luzes de LED… (Voltando no Tempo, 2016)
A luz foi engolida por grossas camadas de nuvens escuras, repentinamente. O calor ameno deu lugar ao frio que se projetou por nossas peles desprotegidas. O ser humano vem a perceber, nesses momentos de humor ciclotímico do tempo, que é muito frágil diante do clima, diante da Terra. Será por inveja que queremos destrui-la? (São Caetano do Sul, 2015)
Observo do ponto que estou, no alto de um prédio, que o vento movimenta as nuvens como se fora ondas no mar, enquanto no recife de corais abaixo, pululam seres em suas fainas diárias de nadarem contra a corrente, em busca de alimento. (Comunidade de Paraisópolis, 2014)
Caminhando pelos calçadões do Centrão, costumo me perder em olhares por seus descaminhos confusionais de Tempo e Espaço. Assim como citei acima sobre a Santa Ephigênia, apesar de gostar de me sentir desconfortável por não estar onde estou, vez ou outra me sinto surpreendido por observar essas construções tão velhas quanto eu com um olhar novo. Neste caso, talvez seja pela fluídica árvore nova, a destoar do ambiente concreto. Depois de observar melhor, o edifício ao lado parece ter uma forma alternativa que só poderei confirmar ao voltar a vê-lo. Quanto ao prédio protagonista, é ele que sinto me observar por seus muitíssimos olhos. (Vista desde a vazia Rua Marconi, em 2021).
“Duque de Caxias, empunhando o seu sabre, cavalgando eternamente o seu cavalo. Conheci esse monumento ainda bem menino e ele continua por lá, impassível, rumo ao futuro.” — escrevi sobre essa imagem, em 2014. O monumento do Duque Caxias está estacionado na Praça Princesa Isabel. Ambos, são nomes de referência do Segundo Império. Enquanto a Redentora está sofrendo um cancelamento por parte do movimento negro, apesar de ter assinado a Abolição da Escravatura, a atuação de Caxias tem sido revisada como senhor da guerra. Guindado à condição de grande nome do Exército, talvez a sua fama de estrategista e honradez tenha sido convenientemente inflada ao logo do tempo para alimentar o herói. A praça em si, está ocupada por desvalidos, moradores de rua, drogados, pessoas que perderam a guerra contra o Sistema, escravizados pelo vício.
Estamos envolvidos no enredo da Pandemia desde meados de março de 2020. Essa marcação seria desnecessária, se o eventual leitor deste texto estiver no Presente. Porém, quem estiver correndo os olhos por estas palavras no Futuro, estará em seu presente sem uma doença que afligiu a população de todos os países, com dolorosas perdas pessoais, sociais, depressão econômica e instabilidade política. Estabelecido o “quando”, cumpre dizer “onde”. Estou no Brasil (ou estive) e talvez quem me leia repercutirá o que leu no meu hipotético futuro em que estarei fora deste território ou, fortuitamente, fora desta dimensão.
Estou no meu Passado alguns dias fora de São Paulo, em Cidade Ocian, na Praia Grande, no litoral que, com o tempo, ganhou o nome de Litoral Santista, por influência da cidade mais importante da região. Quanto ao tempo, me refiro à importância que este local representa em minha história pessoal. É como se o que experimentei aqui tenha sido tão forte que retorno às vivências ensolaradas e delas me alimente no Presente, mesmo neste dia frio de julho. Aproveito o tempo para ler, escrever e fazer exercícios localizados (músculos superiores), ciclismo e caminhada. Estes últimos, com o uso de máscara, atento que estou ao contato com os aerossóis.
Você, do Futuro, que talvez não esteja entendendo ao que estou me referindo, saiba que o contágio pelo Novocoronavírus podia ocorrer de variadas maneiras — pelo ar, no contato com objetos infectados (infimamente) e, principalmente, no contato físico próximo (sem o uso de máscara). A depender do futuro que esteja vivendo, o uso de roupas impermeáveis ou objetos similares já é uma realidade para uma parcela da população, a se considerar que as diferenças sociais não terão sido superadas, como é, aliás, característica intimamente ligada às sociedades humanas, permanentemente.
De certe maneira, o que na Índia milenar tornou-se o padrão na formação de sua sociedade — a divisão em castas — foi reproduzida pelas sociedades modernas, principalmente nas Capitalistas de forma mais premente, mas também naquelas que buscou adotar o Socialismo como caminho. Eu deverei morrer sem ver alguma mudança para melhor no meu País com relação a essa questão. Não ajudou em nada a eleição de um sujeito despreparado, sub-reptício e claramente propenso a não cuidar da sua nação em que existe, na verdade, a vontade de radicalizar as diferenças.
Incisivamente, percebo que no segundo ano de seu mandato, o Ignominioso investe no quanto pior, melhor. Desconfio que as falas toscas que caga por sua boca visa provocar a situação em que ele se sente mais à vontade — a desorganização, a mentira e o engano — a confusão, enfim. Mas não apenas por palavras, mas também com ações, o Ignominioso busca aplicar exatamente o plano que alardeou na campanha — o desmonte de todo o sistema de suporte à população em estado vulnerável, a invasão da Amazônia por motosserras e a liberação indiscriminada de garimpos nas reservas indígenas. A chegada da Pandemia de Covid-19 para ele foi praticamente um bônus que aliviou o caixa do INSS no pagamento de muitas aposentadorias com o “cancelamento de CPFs” (numa expressão comum entre os milicianos como ele) em massa de idosos.
Há a chance da chegada da vacina antes do previsto, até o final de 2020. Se pudermos manter o distanciamento social, o uso constante de máscara (apesar do capitão de milícias a tê-la como símbolo de oposição à sua diretiva) e álcool em gel regularmente, nós poderemos iniciar uma vacinação no início de 2021. O que me preocupa é que a capacidade de produção mundial de imunizantes é de dois bilhões por ano. Seria importante haver a aquisição o maior número de doses possível para que, com o tempo, possamos atingir a imunidade vacinal em vez da tese ridícula de imunidade de rebanho por contágio propalada pelo Governo Federal, o que levaria a centenas de milhares de mortos.
Sozinho, refugiado na casa da praia, sem poder ir às águas do mar que tanto amo, mesmo neste frio de inverno, fico a viver um humor pendular ao sabor das notícias cada vez piores que prevê que cheguemos a incríveis 90.000 mortos até o final do mês. Estamos sem ministro da Saúde e não sei que pessoa séria assumiria a pasta neste governo inoperante e sinistramente adepto de uma política negacionista que poderá levar o Brasil a um estado de indigência planetária.
*Texto de 20 de julho de 2020, que deixei de lado por achar cansativo ao repisar assuntos repetitivos. Quase um ano depois, não perdeu a atualidade. É como se estivéssemos presos num Limbo.