FANTASMAS

não lembro não era não entendo quem fui
não tenho permissão para ver
descaminho por aí passado a limpo
descompassado nas trilhas do limbo
são íngremes ladeiras deserdadas beiras
quanto mais subo mais desço
para o vale dos paralelepípedos das lamentações
de tristezas e de desalentos
as ruas desatentas de seus transeuntes
enquanto anjos vingadores de cinza armados
observam pares trios quartetos de deserdados
deitados em papelões em posição fetal
quando abrirem olhos voltarão ao deserto de seus corpos
desabastecidos de vibração dementados
somos um grupo unidos na perdição
nem sei quando foi a última vez que chorei
porque me vou sem querer desperdiçar
qualquer coisa do meu poder de não sentir
moo minhas emoções chove chovo lavo
meu odor de urina fezes rotas roupas
sou um ninguém entre tantos todos
nulidades ausências pouco peso ignorados
vivemos para abastecer a morte em vida
somos como recados dados aos passantes
apesar de seus calçados é um povo a tudo alheio
à nossa presença dedicada em demonstrar
que tudo é passageiro não temos
ponto final apenas esvaímos
tênues seres feitos fantasmas…



Pelos (Des)Caminhos

Passageiro passo
Eu e mais tantos coletivamente motorizados
Por uma pracinha de uma única árvore larga
Do tamanho do abraço de oito homens
Nela
uma placa propagandeia:
“Alianças
a moda antiga”…
Terei lido errado
Na rapidez da minha passagem?
Uma lanchonete
Uma igreja
Um posto de gasolina
Pontos comerciais à direita do meu olhar
À esquerda
Padaria
Loja de tintas
Uma oficina
Quantas funções
Serviços
Precisões
Consórcios
Empresas
Dos quais somos presas
Não bastam as necessidades básicas
Temos que adquirir novas e variadas
Outras muitas
Vender e comprar desejos de consumo
Sem eles
O que nos move?
Amar?
Atravessar pontes sem ultrapassar portais?
Nos desvestirmos de roupas
E posições sociais?
Nos apoderarmos de emoções
E sentimentos?
De sermos mais do que o corpo
Nos proporciona de prazer
E transcender o gozo?
Alcançar o prazer de ser
Sem ter?
O que somos além de animais
Racionais que praticam irracionalidades
Identidade e idade
Cor e nacionalidade?
Já buscou dentro si o universo
E o multiverso?
O que você É
Sem o nome que carrega?
A ouvir o som eterno do silêncio
Consegue se imaginar sem tamanho
Sem o apego ao ego
Indefinido e infindo?
Deixaria de ser servo
E se tornar um com Deus?

Kombis Ou Pães De Forma

“Eu e a outra em minha vida — a velha Matilde que nos trouxe até o alto da Aldeia da Serra, em evento da Ortega Luz & Som“: foi a legenda que coloquei para identificar esta imagem, de 2013. Kombis tem tido uma participação importante durante toda a minha vida. Produzida de 1950 até 2013, muitas delas continuam circulando por aí. Meu irmão e eu temos duas, utilizadas em nossas atividades profissionais — a feia Tímida e a linda Tigresa.

Quem conhece esta última não deixa de admirar a sua elegância felina. Sim, essas carrocerias parecem todas iguais, mas a depender do ano de fabricação, conservação e “personalidade”, são diferentes. As denominações em outros países se diferenciam igualmente. São conhecidas como Hippie Bus, Hippie Van, Volkswagen Bus, Volkswagen Campmobile, Volkswagen Microbus, Volkswagen Samba, Volkswagen Transporter, Volkswagen Westfalia e Volkswagen Pão de Forma, em Portugal, o meu preferido. Justamente porque a Kombi está diretamente ligada ao meu ganha-pão.

Quando garoto, foi a Gertrudes (a qual em empurrei muito) que papai dirigia que carregava os recicláveis que coletávamos nas ruas. O Sr. Ortega preferia se deslocar para os bairros mais sofisticados porque o lixo era bem melhor em variedade e quantidade. Foi lá que angariei uma parte de minha biblioteca, além de vinis, revistas raras, álbuns de figurinhas e brinquedos. Mas eram os livros que me faziam “perder tempo” quando separava o que seria vendido ou não. O prejuízo não foi pouco. Aprendi a valorizar aqueles objetos com capas duras (ou nem tanto), títulos e páginas como se fossem seres vivos. Mesmo rasurados, os preservava da aniquilação.

Na Ortega Luz & Som, depois de anos utilizando a locação de transporte alheio — normalmente caminhões — para o deslocamento de nosso equipamento, compramos a nossa primeira Kombi — Bailarina. Peruas (outro nome pela qual é conhecida no Brasil) tem a tendência de apresentarem folga na direção. Quem não consegue “pegar a manha” em sua condução, pode até bater. E a Bailarina fazia jus ao nome. Inquieta, apenas o Humberto conseguia manobrá-la. Matilde, a da foto, chegou depois de cinco anos e ficou conosco outros cinco.

Com a chegada da Tigresa, após breve convivência das duas, ficamos apenas com a última. Porém, como fomos multados por ser de passageiros, imprópria para transporte de equipamentos, adquirimos a Tímida, que como o nome indica, além de fechada (furgão), demorou a engrenar em nosso relacionamento mecânico-pessoal. Porque, da mesma forma que nos devolve em eficiência e praticidade, também pode dar dor de cabeça quando enguiça. Ao mesmo tempo, suas peças são facilmente encontradas (a depender da idade) e não são complicadas de serem consertadas.

Para mim, a personalidade da Kombi é feminina — robusta, confiável, corajosa e, quando preciso, impetuosa. Mesmo quando está mecanicamente no limite, sempre entrega o serviço. Apenas uma vez, chegou e saiu do local do evento em cima de um guincho. A exceção que confirmou a regra. Tudo isso, vivencio e continuo a vivenciar sendo passageiro. Não dirijo. Creio que não tenha a habilidade para tal, como a maioria das pessoas pareça acreditar ter. Do alto de uma Kombi, vejo as barbaridades que os motoristas, na condução de suas extensões existências em forma de motor e cheiro de combustível, cometem. Por enquanto, conseguimos chegar e voltar a bordo de nosso veículo preferido. E não vejo (ou não quero ver) o prazo final para que esse relacionamento venha a terminar.