BEDA / A Paulista & Eu

Quando frequento a Avenida Paulista como visitante, fico na expectativa de que me revele alguns dos segredos por trás de cada parede. Não será os mesmos segredos de antes, porque por esta artéria de São Paulo passa sempre sangue novo. Não sei se lá estive antes de 1980, quando fui funcionário do primeiro McDonald’s de São Paulo – se tornando o meu primeiro e único emprego de carteira assinada. Aquela era a segunda unidade do Mac no Brasil. A primeira, do Rio de Janeiro, logo foi suplantada em movimentação financeira pela loja da Paulista e eu, que recebera a promessa de revezamento nas várias funções dentro da loja para entender todo o processo – com eventual progressão de carreira, fiquei restrito a uma só função. Foi o preço pago pela eficiência – que consistia em fornecer os ingredientes para os setores de finalização: carregar e descascar batatas (hoje, elas já vem cortadas), entrar nos frigoríficos – New York e Chicago – para pegar pães, latas de morango e chocolate para o Milk-Shake, carnes embaladas, xaropes de refrigerantes e outros itens. Cheguei a fazer sozinho todo o fornecimento. Decidi dar adeus àquele moedor de carne. O mais estranho de tudo aquilo é que eu era vegetariano desde os 17 anos. Prestes a completar 19, não via mais nenhum propósito naquilo, nem como experiência humana.

Paulista, construída pelas mãos de milhões – foto registrada em 2015.

Voltei a trabalhar na Paulista numa função totalmente informal. Passei a vender ingressos de peças de teatro através de um programa mensal. Mantinha o meu ponto em frente ao Teatro Gazeta no qual viria trabalhar algumas vezes no futuro acompanhando a movimentação intensa de estudantes do Curso Objetivo, frequentadores do cinema, do teatro e da Fundação Cásper Líbero. Apesar de não ter horário fixo, permanecia por oito horas na barraquinha. Ao final, eu a desmontava e a colocava num canto da entrada da portaria da Fundação, com o consentimento do pessoal. Cheguei a ser entrevistado o momento violento pelo qual passávamos, início dos Anos 90, por uma repórter sobre o tema. Logo fui deixado de lado, quando respondi: “a violência começa em casa…”. Não era essa a resposta que ela queria ouvir.

Pôr-do-sol, visão ao oeste da Paulista, num agosto de 2015.

Nos últimos 35 anos, em minha atividade de locador de equipamentos de sonorização e iluminação para eventos ao vivo, passei a trabalhar em vários pontos da mais paulista das avenidas e adjacências. Num velho casarão dos Anos 10 do Século XX realizamos uma “rave”, festividades em hotéis das alamedas abaixo, cerimônias em edifícios comerciais (como o da FIESP) e residenciais, SESC, bailes em clubes, diversos shows em outros espaços e ao ar livre. Pude conhecer a Paulista em todos os suas fases e facetas. Luzes e sombras. Percorri por caminhos por dentro do solo e pela superfície, assim como milhões de seres subterrâneos. Na Paulista, olhamos para frente, para o lado, para baixo e para cima. Sempre encontraremos algo que nos moverá do Presente para o Passado que nem sei se é o meu ou da consciência coletiva dos que viveram e morreram nesta via de várias mãos, construída por milhões de mãos.

Visão para o alto e além, ao final de mais um evento na madrugada, em 2018.

Outra lembrança que me pertence diz respeito a outra empreitada que me define escrever. Nas imediações da Paulista, mais propriamente na Alameda Campinas, tive os meus primeiros contatos com aquele ser ainda a ser desvendado, uma outra sagitariana na minha vida, Lunna Guedes. Foi lá que pude privar de sua convivência, conversamos sobre projetos futuros, o planejamento na participação em lançamento de coletâneas pela Scenarium. Como La Lunna é dada a humores, em determinado momento mudamos para uma paralela da mesma Paulista onde lancei Rua 2 , mais perto do Paraíso. Mas escrever fica longe desse mítico lugar o bíblico ainda mais que conversamos bastante com a Serpente no selo.

Texto participante do BEDA: Blog Every Day August

Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Bob F / Lunna Guedes / Suzana Martins / Cláudia Leonardi / Denise Gals

BEDA / Cabeça De Cachorro*

Vivo em uma cidade que é um ser vivo. Mutante. Uma cabeça de cachorro autônoma a ganhar vida como se fosse contaminada por um agente químico que faz caminhar seres inanimados. Como vem a ser desproporcionalmente grande, o seu corpo-cabeça é esquartejado em partes para ser mais bem compreendida. Fatalmente, falhamos nesse intento. Ela é um organismo incompreensível em seu dinamismo energético que se estende de dentro para fora tanto quanto ao contrário, entropicamente. Não a compreendemos totalmente porque enquanto a vemos crescer de um lado, a percebemos necrosar em outras frações, de outro.

A terra existe, mas em sua maior parte é coberta por asfalto, cimento, plástico, madeira morta e metal. A minha cidade se espraia em retângulos, círculos, pirâmides e figuras assimétricas, a se consubstanciar em diferentes facetas, a se organizar em cidadelas e favelas. A Natureza é um acontecimento. Artificialmente, só se manifesta como distúrbio, em nebulosidade e água, em muito ou pouco calor, a luz do sol a se reproduzir em espelhos, a chuva a afogar as emoções. Desviamos as suas veias e artérias, canalizamos o seu sangue e o envenenamos. Expomos os seus órgãos ao ar. Invadimos as suas entranhas.

Percorremos caminhos artificiais para chegarmos a cada célula de seu organismo.  E, nos mesmos, somos organismos menores, gregários – comensais e autóctones. Estabelecemos relações de inquilinismo e simbiose, predatismo e parasitismo. Todos os seus organismos dependentes detêm, em algum momento de suas vidas, algumas dessas prerrogativas. Mas com frequência, todos servimos como substrato de sobrevivência ao monstro que urra em milhões de vozes enquanto nos consome. Cedo ou tarde, deixaremos o seu solo mais fértil, em escamações e ossos. Inutilmente. Nem como adubo serviremos…

Todavia, há o amor, ainda que coisificado pelo organograma geral que insiste em nos conduzir as diretrizes… O amor é buscado como se fosse a melhor fruta a ser adquirida nas feiras livres, o melhor carro a ser conduzido pelas avenidas, a melhor roupa a se vestir pelas calçadas da Paulista. Se todos nós pudéssemos perceber que mais do que amor, há o amar, tão diferente em cada olhar, em cada andar, em cada falar. Se pudéssemos saber nos entregar, nos identificar amados e amantes. Se pudéssemos saber alcançar, ao amar, as nuvens por sobre as nuvens de fumaça das fábricas e do vapor dos motores. Se pudéssemos beijar o Sol e devolver o calor de amar em igual proporção…

Então, e só então, escaparíamos de uma cidade que nos aprisiona e a refundaríamos mais do que imensa, grandiosa em sua melhor tradução, para além de esquinas e praças, parques e estádios, shoppings e dancings. Ocuparíamos os logradouros em danças loucas, avessas às regras, feito crianças travessas. Amaríamos por sermos além do que estamos ou temos. Seríamos felizes proprietários da felicidade, seguidores da alegria, a brincar. Nos tornaríamos inimigos da violência e da solidão, da fome e do ódio. Espalharíamos a virose do abraço apertado, da dissenção apartada. Bandeirantes de nova era, o que éramos se esqueceria. Matar não mais… Morrer, talvez, depois de amar demais…

*Texto de 2017

Participam do BEDA: Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia / Cláudia Leonardi / Darlene Regina

Outonos

O Outono é a estação ideal para quem quer ver entardeceres deslumbrantes. A inclinação e o posicionamento do Sol no horizonte evidencia formatos inusitados de grandes e pequenas nuvens banhadas de luz dourada. Aqui na Periferia da ZN, ainda de horizontes não ocupados por edifícios residenciais, são os morros que terminam por delinear a paisagem. Por enquanto…

A Paulista entre as nuvens… Ao inaugurar os tempos outonais, as tardes caem como folhas das árvores que desmaiam suas verduras para revigorar suas energias. No entanto, a avenida no alto da cidade nunca perde o seu vigor – tardes, noites e manhãs…

Foto resgatada de um velho celular, sem muita resolução, de 2007. Amanhecer visto da Ponte da Freguesia do Ó sobre o Rio Tietê, quando voltava para a casa, depois de um evento. Passados quinze anos, entre altos e baixos – dias seguidos sem parar e os recessos causados pela Pandemia – este Outono é definidor para saber como caminharemos para novas Primaveras. Sei que teremos cada vez menos pela frente…

B.E.D.A. / Rave*

Eu, trajado à caráter para uma rave em casarão mal-assombrado… (meados dos Anos 90).

Há alguns anos, nós, da Ortega Luz & Som, fizemos uma Rave em um casarão da Avenida Paulista. Fiquei impressionado com o ambiente, que exalava outrora grandeza. Os pés direitos não tão altos quanto o de várias construções antigas que conhecia, mas que abrigava diversos ambientes que desativados-limpos, apenas imaginava para que serviriam. Nosso equipamento ficou abrigado da sanha dos convidados no que era provavelmente um dos banheiros.

Nas paredes desbotadas encontramos desenhos e motivos em papéis de parede, que representavam rostos, provavelmente dos antigos moradores. Nos era interditado subir ao sótão ou descer ao porão, onde estavam guardados os móveis da antiga mansão e o escritório da empresa que o alugava para eventos.

Procurei saber um pouco mais sobre aquele lugar. Soube que se tratava da “residência do Coronel Joaquim Franco de Mello. Localizada na Avenida Paulista, 1919, o imóvel é da família do agricultor e fundador da cidade de Lavínia, nome dado em homenagem à sua esposa. Viviam na residência com seus 3 filhos, Dr. Raul Franco de Mello, Dr. Raphael Franco de Mello e Dr. Rubens Franco de Mello. O palacete foi construído em 1905 pelo construtor licenciado Antônio Fernandes Pinto, cidadão português. A casa é o único exemplar remanescente da primeira fase residencial da Avenida Paulista (1891-1937). Está num terreno de 4720m², com uma grande área verde particular que a família Franco de Mello ainda mantém. O casarão tem 35 cômodos. Sua fachada é em estilo eclético, com influências da arquitetura da época de Luís XV nos enfeites rococó do frontão curvo e nos caixilhos das janelas e mansarda renascentista com telhas francesas e torreão” (Wikipédia).

Quanto à Rave em si… foram doze horas de loucura, loucura, loucura… Meu irmão, eu e meu traje nos recolhemos ao pequeno espaço inicial sem quase nenhuma possibilidade de escape, a não ser pela janela para ir aos banheiros químicos e só… Dessa “torre” protegida vislumbramos (ou imaginamos ver) às guerras de corpos em luta sôfrega em meio à semi-escuridão — homens-mulheres, mulheres-mulheres, homens-homens — apenas constatada por paredes que pareciam se mover. Perdi bastante de minha inocência naquela ocasião…

*Imagem de acervo pessoal e texto de 2012


Buscando um pouco mais, encontrei uma página que mostra os vários palacetes construídos naquela que é considerada a “mais paulista das avenidas”, justamente porque representa essa voragem típica desta São Paulo que “ergue e destrói coisas belas”…

http://netleland.net/hsampa/mansoesPaulista/mansoes.htm?fbclid=IwAR00fTFm4QhaMd7g7tbCyToHCaxfyl0hgyA3j2BArZDKsK2mmSJJLGKNVvM

Participam do B.E.D.A.:
Lunna Guedes
Roseli Pedroso
Mariana Gouveia
Cláudia Leonardi
Darlene Regina
Adriana Aneli

Duas Faces*

Trabalho em eventos. Sou locador e operador de equipamentos de som e luz para bandas e, eventualmente, sou tocador de música mecânica. Não confundir com DJ, que considero uma atividade que envolve o estudo de processos interativos entre as músicas, a transição bem feita entre os andamentos e os temas, além da produção de “tracks”, quando o profissional conhece melhor o trabalho pelo lado da sua construção. Semelhantemente àquele que trabalha na composição de quadros sonoros, trabalho sobre a canção invisível que ouvimos quando uma paisagem se apresenta diante de nossos olhos. Eu me expresso no coletivo, mas percebo que não sou acompanhado por tantos assim. Poucos são os que presenciam harmonia no caos ou fortes rumores de vida na calma visão de um panorama natural. Trabalhei neste final de semana em dois lugares diferentes por dois dias seguidos. O primeiro local, foi em uma sala no 16º andar de um prédio na região da Avenida Paulista, símbolo da expressão do que é esta cidade. Há menos fotos dessa primeira sessão em relação à segunda, porque creio que se tornaria uma “batida” repetitiva e sem nuances, já que estava cercado por todos os lados pelo mesmo diapasão. O segundo, foi na região da Represa Guarapiranga, na extrema Zona Sul, que não parece, mais ainda é São Paulo — seu perfil campestre. Uma de suas faces, de muitas. Pelo caminho e já no lugar, qualquer detalhe me chamava mais atenção do que o apelo urbano me causava. Em cima desses dois temas, espero que apreciem a música visual que estou a tocar.

Região da Avenida Paulista

Pela janela, cercado de cimento e vidro. Ouço conversas de janelas para janelas.

Abóboda no teto do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista
Região da Avenida Paulista

Vista da torre de uma igreja, em meio aos prédios. E, ao longe, à direita, o antigo Banespão, no Centro Velho ou Centrão.

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

Ainda manhã, na transição entre o escuro da noite e a claridade do dia que se anunciava, estava a caminho do lugar onde trabalharia mais tarde.

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

Estrada, árvores e cerquinha branca…

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

Já clareando o dia, a neblina deu a nota neste tema.

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

A luz do dia a “nascer” e o sol a parecer brincar de esconde-esconde com o observador…

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

Finalmente, o astro-rei se elevou esplendoroso dentre o arvoredo. No entanto, isso é tudo ilusão. Na verdade, o Sol é apenas uma pequena estrela na Via Láctea e é a Terra que se desloca pelo espaço, enquanto gira sobre si mesma. Porém, a canção que ouvimos é bela e queremos ser envolvidos por seu andamento.

*Texto de 2015